O sapo Gonzalo no Sítio da Dona Benta
Por Luiz Bernardo Pericás.
Gonzalo, o indefectível batráquio argentino, entrou em casa, exausto, deixou o casaco em cima do sofá e caminhou lentamente até o quarto. Sempre quisera morar no campo: o ar puro, o leite morno na mesa do café da manhã, os raios de sol entrando pela janela… Mas acabara naquela quitinete infecta, no centro da cidade. Tudo bem… Ainda tinha esperanças de que sua sorte mudaria e que em algum momento sua vida daria uma guinada para melhor. De qualquer forma, aquele era seu “lar”, o único que possuía, e era nele que andava agora, a passos pesados: se arrastava. Cheiro de tabaco na roupa; a barba por fazer, como sempre; e a cabeça… girava e girava, talvez por ter fumado demais durante todo o dia. Quatro pacotes inteiros, da marca mais vagabunda! Isso não é coisa para amadores! Tinha de dar um tempo no seu vício. Tossia.
Já nos aposentos, jogou-se na cama, com todo o peso dos anos que carregava nas costas. Esticou as pernas finas, compridas, bocejou e, em poucos minutos, dormia como uma criança. Dava para ouvir seu ronco a quilômetros de distância. A partir daí nosso herói esverdeado começou uma viagem para as profundezas de sua mente, naquela que seria uma de suas mais emocionantes jornadas existenciais.
Foi só ele fechar os olhos para, em seguida, acordar numa estradinha do interior, em frente a uma sólida porteira de madeira, semiaberta. Como não sabia onde estava, decidiu entrar na propriedade e ver se alguém poderia lhe dizer que raio de lugar era aquele.
Na frente de um casarão de telhas vermelhas, viu crianças brincando. Percebeu a presença de uma mulher de cabelos grisalhos que parecia estar de olho nas traquinagens da garotada. Imediatamente perguntou, com um carregado sotaque portenho:
“Mi señora, perdoneme… Acho que estou perdido… Queria saber onde estamos…”
A velha retrucou na mesma hora:
“Você não sabe, seu sapo?”
Gonzalo não gostou muito da intimidade.
“Não…”
“Isso muito me admira! Ainda não percebeu? Aqui é o Sítio do Picapau Amarelo!”
Ora vejam só, ele estava no famoso sítio!
A senhora continuou:
“Estamos às voltas com um problema agora. Talvez você possa nos ajudar…”
“A senhora é…”
“Dona Benta!”
“Não diga! Será um prazer! Um pedido seu é uma ordem!”, retrucou Gonzalo, animado, batendo continência.
Quando garoto, ainda girino, ele visitara, por vários anos seguidos, a República do Repolho com seus pais. Todas as férias, dirigiam o Buick enferrujado da família até as praias do país vizinho. Lá, certa vez, seus velhos haviam comprado um livro de Monteiro Lobato, o qual leu com grande prazer, ainda que com alguma dificuldade, pelas diferenças e sutilezas das duas línguas. Depois, de volta à Argentina, adquiriu diversas obras lobatianas, publicadas em espanhol pelas editoras Claridad, Americalee e Acteon. Era um verdadeiro fã do criador do Sítio. Por isso, nunca se furtaria a auxiliar Dona Benta em pessoa!
O anfíbio hermano quis saber o que estava acontecendo e a velhinha apontou o dedo para um sapo-boi, gordíssimo, chamado Brutus, que andava atazanando todos ali. Brutus era funcionário do Ministério da Educação, assessor do ministro Rashid. Burocrata profissional, ex-dirigente sindical, agora ocupava um cargo respeitável e recebia polpudos salários: intanha do tipo mais decrépito que se possa imaginar. Os chifres na testa confirmavam a feiúra do bufonídeo.
Aquele esférico funcionário público federal era o oposto de Gonzalo, o longilíneo paladino dos fracos e oprimidos. Se fosse mais jovem, seria um ágil espadachim: o Zorro vermelho! Já Brutus… Galgara posições no sindicato, depois no governo… E agora despachava ao lado do gabinete do ministro.
Pois o sapo-boi estava no Sítio para dar um jeito no que considerava ser uma baderna. Já havia conseguido colocar uma advertência num livro sobre aquele moleque, Pedrinho, que caçava onças! Pois aquele era um animal ameaçado de extinção! Como o guri ousava matar um bicho daqueles! Mesmo que a primeira versão do livro tivesse sido escrita na década de vinte! A mensagem impressa na obra avisava às crianças que nossa pintada era protegida pelo IBAMA, e que nunca deveriam exterminar animais como aquele. Talvez os leitores não tivessem capacidade de discernimento… Agora, alguém havia alertado o ministro Rashid que alguns trechos e expressões usadas por Monteiro Lobato no mesmo livro eram preconceituosos e seriam inadmissíveis para os leitores de hoje, e por isso… mais ressalvas para o público mirim…
Gonzalo na mesma hora lembrou-se que haviam tentado fazer algo parecido com Mark Twain e As aventuras de Huckleberry Finn nos Estados Unidos, um bom tempo atrás. Isso, portanto, não era novidade.
Ele também se recordou que Lobato, na época do Estado Novo, já sofrera com arbitrariedades. Mas aqueles eram outros tempos… Agora, sugeriam que se deixasse de distribuir um dos livros mais conhecidos do escritor para as escolas públicas da República do Repolho.
Brutus, o sapo burocrata, foi logo falando:
“Temos de dar um jeito nessa esbórnia! Olhe que absurdo este Sítio! Aquela boneca, Emília, cheirando pó de pirlimpimpim para realizar suas ‘viagens’… Um claro incentivo ao uso de drogas! E o Visconde de Sabugosa, feito de uma espiga de milho transgênico! Dá para ver que ele é geneticamente modificado. Por sinal, temos de acabar com os resquícios da Monarquia e com os títulos de nobreza! Mandemos esse visconde de araque e o Marquês de Rabicó para um campo de trabalhos forçados! Ou melhor, que os dois sejam assados no forno, e depois servidos como prato principal num banquete no Palácio do Arvoredo! Essa senhora, Dona Benta, por seu lado, mantém em cativeiro o rinoceronte Quindim, um animal selvagem africano! Outro insulto às normas do IBAMA! Que seja devolvido às savanas… Tem mais: o Tio Barnabé, fumante inveterado, nunca larga o cachimbo da boca… Péssimo exemplo para as crianças! A Tia Nastácia não fica atrás… sempre fazendo frituras! Desde o governo do nosso querido ex-presidente Borbulha insistimos em garantir uma alimentação saudável para todos! Por sinal, está na cara que a menina do Narizinho Arrebitado fez uma rinoplastia… e parece anoréxica. Não é modelo para o público mirim. E olhe para essa gurizada: todas as crianças desse sítio brincando descalças, no chão de terra batida. Um perigo para a saúde! Finalmente, aquela velhota, Dona Benta, que está travando o progresso e o avanço do agronegócio nesta região!”
Aqui vale explicar um pouco a história daquela simpática idosa. Por anos a fio, desde que era bem jovem, a senhorita Benta havia lutado junto aos sem-terra, em busca de um lugar que fosse seu. Viveu por anos em barracas de lona preta, na beira da estrada, participou de ocupações, pegou chuva e sol, combateu políticos, fazendeiros e policiais. Após décadas suando a camisa, conseguiu seu pedaço de chão e lá, a muito custo, levantou seu Sítio, uma cooperativa, que cuidava juntamente com Nastácia, Barnabé e Zé Carneiro, e onde criava alguns porcos e galinhas. Fazia questão de manter intacta a mata cerrada atrás da propriedade, que ainda tinha onças e outros bichos a correr soltos por entre as árvores (e que há muito tempo já não eram mais caçados); e intocado o singelo rio de águas cristalinas. Pois desde o governo do presidente Borbulha (que, dizem por aí, era grande amigo dos banqueiros, latifundiários e “coronéis”) tentavam tirá-la dali e passar suas terras para o vizinho, que cogitava grilar o local e plantar eucaliptos ou soja; tudo, é claro, com muito agrotóxico. Dona Benta se recusava a vender seu rancho e iria combater essa gente custasse o que custasse.
Mas o sapo burocrata insistia:
“Nosso ministro Rashid sabe o que faz, é um homem curto (acho que ele quis dizer, ‘culto’), foi professor da Universidade de São Priápico e até mesmo escreveu um livro (que ninguém viu nem leu)! Ele e sua equipe vão dar um jeito nesse Lobato!”
Gonzalo se cansava da ladainha. Mas escutava, pacientemente. Ele sabia que Monteiro Lobato era um homem que sempre lutara contra as ditaduras e o autoritarismo; que resgatara o folclore nacional; que havia sido reverenciado pela ANL; que publicou o escritor Lima Barreto, por quem tinha grande admiração e amizade; que criou personagens como a sábia Nastácia e a contestadora Emília; que ajudou a fundar, juntamente com Tarsila do Amaral e Jorge Amado, o Instituto Cultural Brasil-URSS, do qual foi diretor; que se pronunciou várias vezesem favor de Luiz CarlosPrestes; que era amigo íntimo do maior historiador brasileiro, o intelectual marxistaCaio PradoJúnior; que foi preso por defender suas ideias; que via no socialismo, de acordo com um comentarista, a possível solução para corrigir a injustiça disseminada pelo mundo; que denunciava “os interesses do imperialismo da Standard Oil e da Royal Dutch”, assim como o colonialismo cultural; que foi convidado pelo PCB para compor chapa eleitoral do partido em meados dos anos quarenta; que criou o Zé Brasil, um trabalhador sem-terra que combatia o latifúndio, personagem de um livreto lançado em 1947 pela Editorial Vitória, com ilustrações de Cândido Portinari (que foi apreendido várias vezes pela polícia); que sempre lutou pela liberdade de expressão; e que foi um dos maiores escritores deste país. Mas talvez o sapo Brutus ignorasse tudo isso…
Afeito às exclamações constantes, o burocrata suava bicas. Continuou:
“Sabemos o que estamos fazendo. Os melhores homens estão conosco, os mais inteligentes, íntegros e honestos. A população pode confiar! Estamos vigilantes!”
Gonzalo, fumando um cigarro de palha, sabia que tudo aquilo era balela. Ainda assim, deixava o sapo-boi falar.
Até que, nesse exato momento, uma explosão!!! Emília, lá longe, havia escutado tudo e não aguentara mais. Correu em alta velocidade e deu um violentíssimo chute no traseiro do assessor do ministro Rashid. Pois o chute foi tão forte que estourou o sapo em milhares de pedaços: vísceras voavam pelos ares! Uma cena dantesca. E que assustou a todos. Essa foi a deixa para que Emília, a boneca de pano, discursasse de punhos cerrados, erguidos, em alto e bom som:
“Todos nós temos de lutar implacavelmente contra todo tipo de preconceito!!! Que isso fique bem claro!!! Mas também temos de lutar com todas as nossas forças contra o grande mal que assola a República do Repolho há séculos: a CRETINICE!!!”
A boneca contestadora, com dedo em riste, os olhos esbugalhados e as mãos trêmulas, então, terminou o brevíssimo discurso, aproveitando o momento para denunciar a bancada ruralista e o agronegócio. E deu um viva à luta pela reforma agrária, que não saíra do papel no governo do ex-presidente Borbulha, e que, por sinal, continuava a andar a passos de tartaruga.
O grupo reunido ali rugiu, em polvorosa. A aprovação foi geral. Pedrinho, Narizinho, Tio Barnabé, Tia Nastácia, o Saci, Quindim, o Visconde de Sabugosa, Rabicó e Dona Benta pareciam uma torcida de futebol. E o sapo Gonzalo se uniu a eles, na comemoração delirante…
Até que, subitamente, despertou! Era, como sabemos desde o início, só um sonho. “Na vida real, nada daquilo poderia ter acontecido”, pensou. Sentou-se na cama por alguns minutos em silêncio, as olheiras mais profundas do que nunca. Depois levantou-se e colocou um disco do “polaco”, Roberto Goyeneche, na vitrola. Que me van a hablar de amor… Estava com saudades de Buenos Aires. Acendeu um cigarro sem filtro. E passou o resto da noite acordado…
***
Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas(Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) eMystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
Caro Luiz,
Bela fábula! Infelizmente o sonho do sapo é na verdade um meta-sonho, um sonho dentro de outro… Sonhar que o Sítio do Picapau Amarelo é referência de reforma agrária beira o psicodélico. Ainda mais por um sorumbático sapo argentino. Sugiro que Gonzalo conscientize Tia Nastácia para que expulse D. Benta e forme um núcleo com as outras e outros oprimidos e acabar com o domínio do Coronel Teodorico!
Let’s eat the rich!
Abs,
Mauro
CurtirCurtir
O texto é muito bom, crítico, provocador. Já estou aguardando a nova aventura do sapo Gonzalo. Parabéns ao autor.
CurtirCurtir