O consumo da culpa
Por Isleide Fontenelle.
Em uma entrevista que concedeu ao site brasileiro que traz o seu nome, o filósofo esloveno Slavoj Žižek fez uma pergunta instigante: “Será que estamos realmente numa sociedade de consumo? Caso se queira criticar a sociedade moderna, não é preciso se agarrar a essa ideia de consumo.” É preciso entender que Žižek não está propondo que nos afastemos de uma análise do consumo, mas de uma leitura redutora da sociedade de consumo, centrada na crítica à maneira como ela nos aliena ao nos oferecer pequenas satisfações que nos privam dos nossos “verdadeiros desejos”. É nesse contexto que a ideia de consumo como ato puramente alienado, segundo Žižek, não dá conta de explicar certos fenômenos da sociedade contemporânea.
Quanto à razão de sua pergunta, Žižek se refere ao modo atual de consumir marcado pelo medo – “o medo de consumir verdadeiramente. A gente quer comer, mas sem pagar o preço” – coerente com um modelo de mercadoria que é o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, o creme fresco sem gordura. Seria preciso criticar, diz ele, a própria ideia de consumo. Como Žižek tem um jeito próprio de escrever, marcado por curtos-circuitos, é interessante voltar um pouco à entrevista, quando ele começa falando do consumo do chocolate kinder ovo, aquele conhecido por trazer um brinquedinho “surpresa” em seu interior. Segundo o autor, a surpresa é o que leva as crianças a comprar o kinder ovo, e não o chocolate. Tratar-se-ia, portanto, de uma lógica do desejo e não do consumo, já que os ovos kinder “são o modelo de todos esses produtos que nos prometem alguma coisa ‘a mais’ do que aquilo que poderíamos consumir”.
Mas o que nos promete o café sem cafeína, a cerveja sem álcool ou o creme sem gordura? Nesse caso não estariam, ao contrário, nos tirando algo? A proposta, no entanto, é que o desenvolvimento desses produtos atinja um nível tal de sofisticação no qual seja possível gozar dos seus sabores sem sua substância “perigosa”, ou seja, gozar sem pagar o preço por isso (aumento de peso, alcoolismo ou sua ressaca, entre outras consequências indesejáveis). Segundo Žižek, aceitamos a explicação psicanalítica da sociedade contemporânea como uma sociedade do “Goza!”, no sentido de uma injunção superegóica que leva as pessoas a se sentirem culpadas por não estarem aproveitando suficientemente tudo que a vida é capaz de lhe oferecer. Portanto, o que tais produtos nos oferecem é a possibilidade do gozo sob uma forma regulada.
É exatamente esse o discurso que emerge na atual sociedade de consumo quanto a certa responsabilização do consumidor por suas escolhas. Não é disso que se trata quando, diante dos excessos da sociedade de consumo atual, surgem discursos aparentemente contraditórios que sugerem um freio, limites, ao nosso modo atual de consumir? O consumir sem sua substância perigosa torna-se o resultado desse “hedonismo ‘não repressor’ de hoje, a provocação constante à qual estamos expostos, que ordena ir até o fim e explorar todos os modos de jouissance.” (Žižek em Primeiro como tragédia, depois como farsa, p.57).
Nesse contexto, de fato, fica difícil sustentar uma análise da sociedade de consumo que parta de uma crítica ao seu modo de nos alienar. A prova disso está no próprio discurso mercadológico que, agora, evoca um consumidor ciente de seus atos e escolhas e que se torna responsável por elas. Em uma pesquisa que realizei sobre como a mídia de negócios constrói o consumidor responsável, verifiquei como o consumidor que sai das páginas dessas revistas é um ser solitário, mas bem informado, que sabe escolher bem as empresas e produtos que podem lhe fornecer a possibilidade de um consumo sem culpa, qual seja, que lhe permita consumir sem pagar o preço de sua escolha.
Pode-se argumentar que essa nova abordagem do consumo está coerente com o novo espírito do capitalismo que incorporou a crítica do consumo alienado. No livro de Žižek ao qual me referi acima, ele analisa como a partir da década de 1970, o capitalismo começou a absorver a crítica anticapitalista tão presente nos movimentos de contestação rotulados de “maio de 68”. No nível do consumo, constata Žižek, esse novo espírito passou a ser o do capitalismo cultural que passou a privilegiar a “experiência autêntica”: compramos mercadoria para termos a “experiência que oferecem, consumimos para tornar a vida prazerosa e significativa”. (p.53). Nesse quesito, o prazer de consumir precisa se somar ao fato de que também nos tornamos pessoas melhores, como ele exemplifica com a “ética do café” da Starbucks.
Trata-se, a meu ver, da fusão de duas grandes tendências contemporâneas de consumo: o consumo de experiência e o consumo responsável. Sobre como essas duas tendências se fundem, o exemplo dado pela distopia de Paul Verhoeven, em O vingador do futuro, é esclarecedor: “uma agência oferece instalar lembranças de férias ideais no cérebro. Ninguém precisa mais viajar para outro lugar, é muito mais prático e barato simplesmente comprar lembranças de viagem” (Žižek, p.53). Se o que realmente importa é a experiência, por que não comprá-la diretamente, evitando assim a rota desconfortável da realidade e, diria eu, promovendo, também o fato de sermos ecologicamente corretos?
Há algo nesse discurso da “experiência autêntica e responsável” a ser investigado. É preciso contrapor o “querer gozar sem pagar o preço” que o consumo de café sem cafeína nos permite ao discurso de uma responsabilização através do consumo. Talvez o ponto de partida seja buscar entender como a promessa da compra direta da experiência parece ser a garantia de que podemos acessar o “algo a mais” que a mercadoria prometia sem, necessariamente, consumi-la, o que parece subverter, de fato, a ideia de mercadoria e de consumo. Por outro lado, isso levaria, segundo Žižek, à “experiência do Outro, mas privado de sua Alteridade”, um Outro idealizado que nos fascina, por exemplo, pela sua dança exótica, embora nada queiramos saber, substancialmente, sobre a realidade dos fatos em que vive.
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Isleide Fontenelle é formada em Psicologia, com Doutorado em Sociologia pela USP. Professora adjunta da Fundação Getúlio Vargas-SP, em cursos de graduação e pós-graduação, integrante do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração. É autora de O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável (Boitempo Editorial, 2002) e diversos artigos e ensaios. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Se a intenção da autora foi homenagear Zizek, está de parabéns, porque fez inclusive o que ele opera com maestria: a “eterna repetição” (não pude evitar o trocadilho) de suas próprias obras em outras, com trechos inteiros copiados sem qualquer desenvolvimento posterior. O texto da coluna serve até de boa introdução para quem nunca se aproximou de Zizek, mas, para quem o conhece, deixa a desejar por não ousar avançar um milímetro sequer em qualquer direção sobre a bibliografia do filósofo. Uma pena.
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