Maria Rita Kehl associa tortura a ‘gozo proibido’: entrevista para a Folha de S.Paulo
Acontece hoje, a partir das 11h, cerimônia de instalação da Comissão da Verdade. Após a solenidade no Palácio do Planalto, haverá a primeira reunião da comissão, já empossada. A psicanalista Maria Rita Kehl, autora de diversos livros publicados pela Boitempo Editorial, integrará o grupo. Leia abaixo entrevista concedida ao jornalista Morris Kachani, publicada na edição de hoje da Folha de São Paulo.
***
“Em menos de 40 anos, a presidente Dilma Rousseff estava no pau de arara e hoje está chefiando as Forças Armadas. Isso é uma glória para o Brasil. Mais importante do que ela ser mulher é o fato de ser ex-guerrilheira.” Com estas palavras, a psicanalista Maria Rita Kehl, 60, recebeu ontem a Folha em seu consultório para uma conversa sobre a Comissão da Verdade, da qual fará parte.
“Certamente altas patentes militares sabem que essa comissão não tem caráter punitivo. Então por que a mera divulgação os incomoda tanto? Há hipóteses. A otimista seria a de que têm vergonha do que fizeram. Mas a pessimista, ou realista, é: existe um gozo na teoria psicanalítica, que é o gozo proibido. Tão sem freios que no limite é mortífero”, disse.
Utilizando Marquês de Sade como exemplo, ela explicou: “A pessoa que está diante do corpo inofensivo dispondo dele a seu bel-prazer, está gozando. Então me parece que o grande vexame, e não a culpa ou o medo, é o sentimento que pode predominar entre aqueles que terão seus nomes citados eventualmente. Como se fossem devassados no seu sentimento mais íntimo”.
Para ela, o discurso de que muitos agentes da ditadura se consideravam a serviço do Brasil não cola. “Isso já é uma construção secundária, que te permite dormir em paz.” Kehl, que diz sempre ter votado no PT, afirmou que não participou da luta armada por tê-la considerado uma opção que significava quase ir para a morte, à época. “Não me parecia que havia condição para virar a mesa, destituir os militares, mesmo com mortos nessa batalha.” Indagada sobre a fala do ex-ministro da Justiça José Calos Dias, seu futuro colega de comissão, que defendeu a apuração das ações do regime e também da luta armada, a psicanalista afirmou: ”Não vejo simetria. Você falar em anistia para os dois lados implica supor igualdade de forças, dizer que o outro lado também tinha gente presa e condenada”.
Kehl lembrou que o Brasil é o único país da América Latina que perdoou os militares sem exigir ao menos o reconhecimento de crimes. Utilizando a linguagem psicanalítica, disse que “o problema surge quando você recalca algo que está mais ou menos sabido mas não é falado”. Esse processo, segundo ela, autoriza implicitamente o abuso da violência – “principalmente das instituições repressivas, que estão contaminadas”, acrescentou.
“O país passou por três séculos de escravidão e duas ditaduras, que terminaram do jeitinho brasileiro. Há um certo incômodo. É como se você abrisse as portas para a interdição inconsciente. Quando certos tabus da sociedade como o ‘não matarás’ são infligidos sem consequência, a conivência permanece.”
***
Recomendamos também a leitura de dois textos escritos pela psicanalista e publicados no Blog da Boitempo:
Mulher ou militante (publicado originalmente na revista CartaCapital), acerca da importância da eleição de Dilma Rousseff como ex-presa política torturada durante a ditadura militar;
Comentários sobre K., de Bernardo Kucinski, sobre o romance que investiga o passado histórico do país através da história da busca de um pai pela filha, desaparecida durante o regime militar.
ebooks
Todos os livros de Maria Rita Kehl publicados pela Boitempo estão à venda em versão eletrônica (ebook), custando metade do preço dos livros impressos. Confira abaixo alguns links para livrarias onde os títulos podem ser adquiridos:
O tempo e o cão: a atualidade das depressões – R$20 (Livraria Cultura | Livraria da Travessa | Gato Sabido | Livraria Saraiva)
18 crônicas e mais algumas – R$15 (Livraria Cultura | Gato Sabido | iba | Livrarias Curitiba)
Videologias: ensaios sobre a televisão, em coautoria com Eugênio Bucci – R$22 (Livraria Cultura | Livraria da Travessa | Gato Sabido | Livraria Saraiva)
O que resta da ditadura: a exceção brasileira, coletânea organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle – R$26 (Livraria Cultura | Livraria da Travessa | Gato Sabido | Livraria Saraiva)
***
Outras leituras sobre a ditadura militar brasileira
Além de O que resta da ditadura, a Boitempo Editorial também publicou outros livros sobre o tema:
Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura, de José Caldas da Costa (2007)
Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir (2004)
Dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar – a responsabilidade do Estado, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio (2008)
Memórias, de Gregório Bezerra (2011)
Ousar lutar: memórias da guerrilha que vivi, de José Roberto Rezende e Mouzar Benedito (2000)
Seria grandioso por demais atribuir minhas colocações o título de um comentário, prefiro estabelecer como ‘um falar sobre esta psicanalista de conduta ilibada’. Sim, não posso dizer que o que escrevo é um comentário, mas posso afirmar que é um elogio- não o da Loucura- e se assim o for, será da locura de ter discernimento em saber o quê, como e do que falar.
É mais que imperativo, poderi-se-ia dizer histórico, ver e ouvir uma encenação de perdão, desculpas… Foi sem querer querendo… escapuliu…Uma encenação não como a teatro.mas um ato real e não simbólico.
É a primeira vez na história de minha existência que assisto à um ato de reparação entre vivos e vivos, pois as homenagens de desculpas e de valor só são reais na relação entre vivos e não-vivos. Tenho visto muitas cerimônias direcionadas à falecidos. E, creio que depois de mortos o que se faz ‘daqui para lá’, parece-me não ter significado algum.
Mas,cada um pensa e age como quer. Penso que nosso país necessita muito disto, destas expressões de humildade, nossos heróis estão perdendo as virtudes, estão sofrendo o processo de globalização junto as massas.
A psicanalista Maria Rita Kehl é de fato um manual de psicanálise vivo, é a psicanálise viva e atuante, sem desmerecimento dos demais psicanalistas. Ser psicanalista é mais que fazer o curso e montar um consultório, assim é a caracterítica de um trabalhador que precisa ganhar dinheiro.
Acredito que aqui está o segredo, se assim o posso denominar, as atitudes de Maria Rita Kehl, que exerce a psicanálise com liberdade, são ditadas pelo fato de não depender única e exclusivamente da Psicanálise, mas ter outra profissão.
Belíssimo trabalho, o da presidente Dilma Roussef, de escolher Maria Rita Kehl para compor a Comissão da Verdade, é mais que justo, é sensato, equilibrado e mostra o compromisso com a Verdade, atributo dos justos.
CurtirCurtir