Emancipação e contrainsurgência na América do Sul: o capítulo paraguaio

Por Carlos Eduardo Martins.

As ciências sociais latino-americanas têm se voltado crescentemente à geopolítica para compreender as relações de poder que se desenvolvem na região ou que incidem sobre ela. O conceito se originou das pretensões expansionistas e imperialistas dos Estados europeus, formulado pelo sueco Johan Rudolf Kjellén para dar fundamento à busca de espaço vital do império alemão. Foi assumido, desde o pós-guerra, pelos Estados Unidos como elemento chave para formular as bases de sua hegemonia mundial e acolhido na América Latina, nos anos 1960-70, por ditaduras militares da região face às suas pretensões de autonomia relativa no cone sul. Nas últimas décadas tem sido articulado à defesa do Estado democrático e à soberania nas Américas do Sul e Latina.

A América Latina é uma região excepcionalmente dotada de recursos naturais. Detentora de vastas reservas de minerais e metais estratégicos, hidrocarbonetos e das principais reservas de água doce do mundo, é uma das principais fontes de biodiversidade do planeta, em razão de sua vasta inserção tropical. Possui cerca de 80% das reservas mundiais de lítio, presente nas baterias de eletroeletrônicos e indispensável para baterias de alto desempenho, que poderão viabilizar em futuro muito próximo o automóvel movido à eletricidade.

Trata-se de um extraordinário potencial econômico que se destaca se tomarmos em consideração duas tendências que marcarão as próximas décadas: o fortalecimento da multipolaridade nas relações internacionais, que poderá conferir aos regionalismos papel estratégico na economia mundial do século XXI; e a transição do paradigma tecnológico microeletrônico para o biotecnológico, que deverá superá-lo e absorvê-lo, articulando intensamente desenvolvimento científico e recursos naturais. Abre-se importante janela de oportunidade para a América Latina e o Brasil, como forte articulador do regionalismo na América do Sul. Não se pode aproveitá-la sem cumprir requisitos básicos: fundar no desenvolvimento humano a nossa projeção econômica, política e cultural; o que requer estruturação de mercado de massas, drástica diminuição da desigualdade, forte investimento em educação e saúde públicas, em ciência e tecnologia e em seguridade alimentar. Este projeto deve apoiar-se em importante grau de nacionalização dos recursos produtivos e significativa presença da empresa estatal, em razão dos baixos níveis de internacionalização da P&D, da dependência tecnológica e da financeirização do grande capital nacional latino-americano.

A ascensão da centro-esquerda e esquerda na região o coloca no horizonte possível e significa forte ameaça às oligarquias locais que enriquecem com a superexploração do trabalho e às potências estrangeiras que utilizam nossos países como instrumento para um poder internacional assimétrico. Elas reagem a sua expansão reativando a estratégia de contrainsurgência, sob liderança estadunidense. Esta busca preferencialmente atuar como força de dissuasão para manter o processo democrático dentro de marcos liberais-conservadores, sem descartar interrompê-lo se for necessário depurá-lo das pressões nacionais populares. Para isso é fundamental dar ao golpe aparência institucional e conferir-lhe certa base de massas, mobilizando os setores médios. As grandes empresas midiáticas, as forças políticas conservadoras no parlamento, segmentos do Poder Judiciário e do aparato repressivo são mobilizados e articulados por este enfoque formando um bloco histórico liberal-conservador reacionário. Esta fórmula de golpe foi aplicada com êxito em Honduras e está sendo testada no Paraguai. Mas fracassou estrepitosamente na Venezuela. Sua implementação requer baixo nível de organização dos trabalhadores e dos segmentos populares para resistir ao ato de violência por meio de processos de mobilização de massas, o insulamento dos militares e segmentos do aparato repressivo dos mesmos – para isso se aprofundam os vínculos de cooperação técnica aos Estados Unidos e a presença destas tropas na região – , e relativa capacidade de neutralização das pressões internacionais.

No caso paraguaio as primeiras condições se cumprem, mas o forte rechaço dos países do Cone Sul através do Mercosul e Unasul, de quem depende fortemente em termos econômicos, impacta o ambiente internacional e limita o alcance do golpe e o seu apoio externo, que se faz com a máxima discrição possível. O acolhimento do recurso contra a deposição de Lugo – pelo mesmo Supremo Tribunal que o havia rejeitado inicialmente – e o pronunciamento judicial pela legalidade de sua candidatura ao Senado em 2013 sinalizam a tentativa em aparentar normalidade democrática e constitucional. Grande parte da atenção regional se dirige para a eleição de abril próximo e coloca a oligarquia paraguaia na mira da opinião publica internacional. Caso ceda às pressões externas para a realização de eleições livres e democráticas muito provavelmente estará quebrada a tradição bipartidária e a concertação que reúne os partidos Colorado e Liberal na disputa pelo Estado, assumindo a esquerda importante representação parlamentar, que poderá se conjugar com a conquista do Poder Executivo.  Caso o golpe venha cumprir a sua função de devolver o controle do Estado às oligarquias tradicionais por meio de eleições irregulares e da violação às liberdades, provavelmente se acentuarão o isolamento e as sanções regionais ao país, colocando os Estados Unidos em difícil situação diplomática para tentar minorá-las ou neutralizá-las.

A rápida manobra dos países do Mercosul, viabilizando a entrada da Venezuela no bloco, coloca o embate nos seguintes termos: caso se estabeleça a primeira alternativa, os governos de esquerda e centro-esquerda terão logrado uma contundente vitória sobre a contrainsurgência, caso se estabeleça a segunda, na pior das hipóteses, um empate.

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O livro mais recente de Carlos Eduardo Martins, Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo, 2011) está à venda em versão eletrônica (ebook), pela metade do preço do livro impresso, na Gato Sabido.

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Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.

2 comentários em Emancipação e contrainsurgência na América do Sul: o capítulo paraguaio

  1. Olá Carlos Eduardo,

    Parabéns pelas considerações deste importante tema da conjuntura latino americana.

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  2. Carlos Eduardo Martins // 24/07/2012 às 2:30 am // Responder

    Obrigado Mauro. Nos veremos breve na próxima plenária docente da UFRJ. Parabéns pela sua participação destacada no comando de greve.

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