Žižek: Violência policial e violência divina
Será que as manifestações violentas e “irracionais” (isto é, desprovidas de demandas programáticas concretas e sustentadas tão somente por uma vaga reivindicação de justiça) contra a violência policial racista não seriam justamente os casos contemporâneos exemplares daquilo que Benjamin chamou de “violência divina”?
Por Slavoj Žižek.
Em agosto de 2014, uma onda de protestos violentos explodiu em Ferguson, um subúrbio de St. Louis nos EUA, depois que um policial matou a tiro um adolescente negro desarmado, supostamente suspeito de algum roubo. Ao longo de vários dias, a polícia se viu na tarefa de dispersar e reprimir manifestantes, em larga medida negros também. Ainda que os detalhes do incidente fossem incertos, a maioria da população da cidade, preta e pobre, tomou o acontecimento como mais uma prova da sistemática violência policial contra eles.
Nas favelas e nos guetos norte-americanos, a polícia efetivamente opera cada vez mais como uma força de ocupação – algo que ecoa mesmo a presença das tropas israelenses nos territórios palestinos na Cisjordânia. A própria mídia ficou estarrecida ao constatar que a polícia e o exército compartilhavam inclusive alguns dos mesmos armamentos. A questão é que mesmo quando ações policiais visam tão somente impor paz, disseminar ajuda humanitária, ou organizar medidas médicas, seu modus operandi é o de controle sobre uma população estrangeira.
Em uma matéria intitulada “A polícia nos EUA está se tornando ilegítima”, a revista Rolling Stone tirou a inevitável conclusão que se impôs após o incidente de Ferguson:
“Ninguém quer admitir ainda, mas depois de Ferguson, e especialmente depois do caso Eric Garner que explodiu em Nova Iorque após mais um não indiciamento de um policial que matou um civil mantido sob custódia, e ainda por uma infração menor, a polícia de repente se deparou com um problema de legitimidade neste país. Os recursos de execução penal [law enforcement] são agora distribuídos de maneira tão desigual, e a justiça está sendo administrada com tal inconsistência descarada, que pessoas em toda parte vão começar a questionar o princípio básico de autoridade política da lei.”
Matt Taibbi, “The police in America are becoming illegitimate”, Rolling Stone, 5 dez. 2014.
Em uma situação como essa – em que a polícia deixa de ser vista como o agente da lei, representando a ordem legal, mas simplesmente como mais um ator social violento –, os protestos contra a ordem social predominante também tendem a tomar uma guinada diferente: a de uma explosiva “negatividade abstrata” – isto é, num vocabulário mais pedestre: violência crua e desprovida de objetivo.
Quando Sigmund Freud, em Psicologia das massas e análise do eu, descreveu a “negatividade” inerente ao desatar dos laços sociais (Tânatos, em oposição a Eros), ele acabou jogando a totalidade das manifestações desse desatamento como sendo puro e simples fanatismo “espontâneo” das massas (e “espontâneo” aqui aparece em oposição a agrupamentos humanos construídos “artificialmente” como a Igreja e o Exército). Contra Freud, devemos insistir na ambiguidade desse movimento de desatamento: ele é um grau zero que abre o espaço para a intervenção política. Em outras palavras, esse desatamento é a condição pré-política da política, e, em relação a ela, toda intervenção política propriamente dita já vai “um passo mais além”, se comprometendo com um novo projeto (ou significante-mestre).
“Mas eles não ferem os inocentes?”
Hoje esse assunto aparentemente abstrato volta a ser relevante: a energia de “desatamento” está em larga medida monopolizada pela Nova Direita (o movimento do Tea Party nos EUA, onde o Partido Republicano está cada vez mais dividido entre a Ordem e seu Desatamento). No entanto, aqui também, todo fascismo indica uma revolução fracassada, e a única forma de combater esse desatamento direitista seria com a esquerda levando a cabo seu próprio desatamento – e já temos sinais de coisas do tipo (as enormes manifestações por toda a Europa em 2010, da Grécia à França e o Reino Unido, onde protestos estudantis contra tarifas universitárias tornaram-se inesperadamente violentas).
Ao afirmar a ameaça de “negatividade abstrata” à ordem existente como sendo um traço permanente dela que nunca pode ser Aufgehoben, Hegel se mostra mais materialista que o próprio Marx: em sua teoria da guerra (e da loucura), ele está ciente do retorno repetitivo da “negatividade abstrata” que violentamente rompe, desata elos sociais. Marx reata a violência no processo do qual uma Nova Ordem surge (a violência como a “parteira” de uma nova sociedade), enquanto em Hegel, o desatamento permanece não-suprassumido.
Mas será que essas manifestações violentas “irracionais” – isto é, desprovidas de demandas programáticas concretas e sustentadas tão somente por uma vaga reivindicação de justiça – será que elas não seriam justamente os casos contemporâneos exemplares daquilo que Walter Benjamin chamou de “violência divina” (em oposição à “violência mítica”, i.e. a violência estatal fundadora da lei)? Tratam-se, como Benjamin colocou, de meios sem fins: não integram uma estratégia de longo-prazo. O contra-argumento imediato aqui é: mas essas manifestações violências não são muitas vezes injustas? Elas não ferem, por vezes, os inocentes?
Se quisermos evitar as explicações politicamente corretas forçadas segundo as quais as vítimas da violência divina devem humildemente abrir mão de resistir a ela em função de sua responsabilidade histórica genérica, a única solução é simplesmente aceitar o fato de que a violência divina é brutalmente injusta: ela é frequentemente algo aterrador, e não uma intervenção sublime de bondade e justiça divinas.
Um amigo meu, progressista, de esquerda, professor da Universidade de Chicago, me relatou sua triste experiência: quando seu filho chegou à idade do colegial, ele o matriculou numa escola ao norte do campus, perto de um gueto negro e com uma preponderância de estudantes negros. Em poucos dias seu filho passou a voltar para casa quase cotidianamente com feridas ou dentes quebrados… Mas, então: o que fazer? Transferir o filho para uma escola com predominância de jovens brancos ou mantê-lo nesta mesma? A questão é que este dilema está mal posto. Ele não pode ser resolvido neste nível. A própria lacuna entre o interesse privado (a segurança de meu filho) e a justiça global é a evidência de uma situação que tem de ser superada por inteiro.
* Publicado originalmente em inglês no The European em 9.3.2015.
A tradução é de Artur Renzo, para o dossiê Violência policial: uso e abuso,
do Blog da Boitempo.
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Confira o dossiê especial “Violência policial: uso e abuso“, no Blog da Boitempo, com artigos, reflexões, resenhas e vídeos de Ruy Braga, Luis Eduardo Soares, Edson Teles, Mauro Iasi, Christian Dunker, Gabriel Feltran, Maurilio Lima Botelho, Marcos Barreira, , Antonio Candido, Mouzar Benedito, Jorge Luiz Souto Maior, José de Jesus Filho, Raquel Rolnik, Guaracy Mingardi, Silvio Luiz de Almeida, Marcelo Freixo, Ciro Barros, Maria Lúcia Karam, Pedro Rocha de Oliveira, David Harvey, Vera Malaguti Batista, Laurindo dias Minhoto e Loïc Wacquant, entre outros.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013) e o mais recente Violência (2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
O que dizer da violência e truculência na desapropriação de posses de áreas e imóveis residenciais, que por muito tempo ficam sem pagamento dos devidos impostos visando unica e exclusivamente a especulação imobiliária? Quem não lembra do pinheirinho em São José dos Campos.
Terreno de um mega ladrão da petrobrás (Nagi Nahas)?
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APENAS UMA ESQUERDA RADICALIZADA PODE SALVAR A EUROPA
A austeridade não é “tão radical” assim, como alguns críticos esquerdistas reclamam, mas, ao contrário, demasiadamente superficial, um ato para evitar as verdadeiras raízes da crise, diz Slavoj Zizek.
https://bloglavrapalavra.wordpress.com/2015/08/26/apenas-uma-esquerda-radicalizada-pode-salvar-a-europa/
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O uso da violência serve a quem? Quem sofre mais com a violência a classe pobre ou a classe rica? É apenas a existência de “bandidos” que justifica a existência da polícia? A polícia existe apenas pra manter a tranquilidade? Qual classe social que mais reivindica por “segurança”? Porque o problema da violência nunca foi resolvido? Penso que a violência é parte principal do sistema econômico capitalista, é através dela que a polícia mantém todos os que produzem riqueza dominados. Quero deixar claro aqui a minha certeza de que a polícia não é a única instituição social que usa a violência, a família também faz parte do sistema violento de dominação capitalista. Penso que o Estado se legitima na família, a primeira instituição que impõe as leis de um governo é a família. A ditadura militar se concretizava com o uso da violência na família, entre os membros familiares.
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Eu não gosto que falem mal da Polícia. Quem fala mal da Polícia são os ricos na universidade.
Policial é antes de tudo um trabalhador que não pôde fazer o que queria e sobrou ser polícia da mesma forma que uma prostituta não tem escolha e tem que ser prostituta e eu que venero o trabalho tenho que ser desempregada.
Universitário rico é que fala mal da polícia.
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