Maringoni: Luiz Gê em seis tempos
Megaexposição de um dos maiores quadrinistas brasileiros traça panorama estético de quase cinco décadas.
Por Gilberto Maringoni.
UM
Olhe bem para um dos desenhos do Luiz Gê, aqui reproduzidos.
Não parecem saídos de pontas de lápis, pena, pincel ou de variadas geringonças da era virtual.
Tudo indica que ele se vale de algum material cortante, algo que molda seus traços com movimentos incisivos. Parecem traços resultantes de golpes de machado, de tão exclamativos, diretos e definitivos que são.
O machado gráfico desse artista paulistano de 64 anos é carregado de uma intensa cultura visual que faz de sua obra algo único. Os riscos nos remetem aos grandes gravuristas, aos gênios do expressionismo cinematográfico, aos movimentos de câmera de um Hitchcock, à tensão de um Fritz Lang, à percepção refinada de um Fellini e a muita coisa mais. Isso tudo sem cair na tediosa arena do quadrinho-cabeça. Luiz Gê é, antes de tudo, um especialista em gibi.
DOIS
Luiz Geraldo Ferrari Martins formou-se arquiteto pela FAU-USP. Rodou pelo melhor de nossa imprensa impressa, em tempos que ela era bem melhor do que os panfletos que se veem nas bancas. Ele sabe que, por mais intelectualizada que seja sua arte, ela não pode perder conexão com a origem popular e acessível do gênero história em quadrinhos.
Pode-se não gostar das páginas assinadas por esse sujeito meio cheio de manias, que adora debater as aventuras de Tintin, identificando cada carro ou avião utilizado pelo personagem de Hergé. Pode-se achar que a fixação quase obsessiva por caças da II Guerra e pelos detalhes que você nunca notou nos edifícios da avenida Paulista sejam paranoia ou mistificação.
Mas jamais se poderá dizer ter visto algo semelhante.
Luiz Gê é antes de tudo original.
TRÊS
De tempos em tempos, no mundo dos quadrinhos, aparece alguém que reinventa o gênero, ou lhe dá novas tintagens.
É gente como Winsor McCay, de Little Nemo, Milton Caniff, de Terry e os Piratas, Will Eisner, de Spirit, Jack Kirby, de Capitão América, Hugo Pratt, de Corto Maltese, Alberto Breccia, do terror argentino, Flavio Colin, do violento claro/escuro, Robert Crumb, o inclassificável, Moebius, dos mundos oníricos, ou Alan Moore, do Watchmen, entre outros. Depois deles, nosso fôlego teve de aumentar alguns graus para ler uma narrativa gráfica.
Pois essa é a turma do Luiz Gê.
Não é só quadrinho. É invenção.
Quando apareceu, no início dos anos 1970, Luiz Gê trouxe uma voltagem desconhecida ao que se fazia no Brasil.
Tínhamos talentos estelares, é bem verdade. Entre as décadas 1950-1960, florescera no mercado editorial do Rio e de São Paulo uma geração que criou um gênero de terror tropical, em revistas de papel vagabundo.
Meio afiliada das novelas radiofônicas e meio buscando numa fantasiosa mitologia popular das mulas sem cabeça e seres das florestas – resquícios de uma sociedade que abandonava o meio rural para se fixar nas metrópoles do sudeste –, esses artistas lutavam por pagar o leite das crianças, com uma produção caudalosa. Era gente como o citado Flavio Colin, o português Jayme Cortez, Ziraldo, Mauricio de Sousa e muitos outros. Foram logo atropelados pelo crescimento dos quadrinhos industriais norte-americanos, importados a preço de banana. Era uma espécie de Golpe de 64 gráfico.
A fuga – ou solução – voltou-se, nos anos 1970, para a pequena produção artesanal, plasmada em revistinhas universitárias vendidas de mão em mão.
Foi ali que Gê escapou da pasteurização das grandes editoras, Abril à frente.
E surgiu como clássico.
QUATRO
A primeira publicação do Gê era uma sequência de três páginas na revista Balão, impressa na gráfica da FAU, nos idos de 1972. Apresentava uma sequência de quadros do mesmo tamanho, com cenas em zoom out de um sujeito desesperado pulando um muro. Quanto mais a “câmera” – ou o olhar do observador – se afastava, mais se via que o muro era, na verdade, uma trama de paredes em cadeia, que faziam do esforço do personagem uma empreitada sem fim.
Poderia ser uma metáfora premonitória do que é a aventura de se fazer quadrinho autoral no Brasil. O esforço tem sempre como recompensa um esforço repetitivo e mais desafiador.
Esteticamente, condensava-se ali um pique cinematográfico, com novidades a cada nova história. E Luiz Gê fez de suas narrativas dos anos 1970-1980 – período que concentra o melhor de sua produção em histórias curtas – peças únicas, cada uma com pesquisa e apuro formal próprios.
Uma narrativa de 1975, intitulada “Ano santo, ano da mulher”, enfeixa em sete páginas uma maneira inovadora de se registrar um passe rumo ao gol, numa eletrizante partida futebolística. A perseguição a um balão de São João – brincadeira ainda vista nas ruas das periferias urbanas – se torna uma competição épica nas machadadas de nosso arquiteto de gibi. Tubarões que se esgueiram por arranha-céus infundiram um surrealismo mágico no caos citadino.
CINCO
Luiz Gê publicou em livro duas coletâneas de histórias curtas, Quadrinhos em fúria (1984) e Território de bravos (1993). Mas seu clímax estético foi atingido em Fragmentos completos (1992), novela visual de oitenta páginas sobre os cem anos da avenida Paulista (vertida em livro há três anos). Ali, ele exibiu seus dotes arquitetônicos e de conhecedor de estilos e escolas artísticas.
Página após página, com variação de traços e cores, é mostrada a via dos casarões do café, sua transformação em centro de finanças e de serviços, com um pique de Dziga Vertov da ilustração.
SEIS
Luiz Gê foi chargista da Folha de S.Paulo – entre 1977 e 1984 –, editor de arte, ilustrador e professor de narrativas visuais na Universidade Mackenzie.
Sua vasta e variada produção ganhou há pouco mais de um mês uma síntese tridimensional. Trata-se de uma exposição com seiscentos trabalhos, na qual assina também o projeto espacial. A mostra é, em si, uma obra à parte.
Está em Piracicaba, onde integra as atrações do 42o Salão Internacional de Humor. Envolve desde artes do balão e trabalhos na imprensa alternativa até trabalhos tridimensionais mais recentes.
Luiz Gê desenha com a vitalidade de um garoto e com um machado cada vez mais afiado.
A exposição vale a viagem. O último a ver fica sem gibi neste fim de semana.
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Exposição: Luiz Gê Quadro a Quadro
Armazém 14 do Engenho Central
De 22 de agosto a 4 de outubro
De terça a sexta, das 9 às 17 horas
Sábados, domingos e feriados das 10 às 20 horas
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Luiz Gê e Gilberto Maringoni integram o conselho editorial do Barricada, novo selo de quadrinhos da Boitempo, junto com Ronaldo Bressane e Rafael Campos Rocha. Como o próprio nome sugere, o selo se dedica a títulos libertários, de resistência, nacionais e internacionais, garimpados pelo conselho!
Quadrinhos no Blog | Gostou? Leia também “Surfista prateado“, sobre o quadrinho americano dos anos 60, “A rebeldia de Octobriana“, sobre a incrível personagem soviética de HQs e “O mundo louco de Basil Wolverton“, na coluna de Luiz Bernardo Pericás, no Blog da Boitempo!
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Gilberto Maringoni é doutor em História Social pela FFLCH-USP e professor adjunto de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC. É autor, entre outros, de A Revolução Venezuelana (Editora Unesp, 2009), Angelo Agostini: a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal – 1864-1910 (Devir, 2011) e da introdução do romance O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura. Cartunista, ilustrou algumas capas de livros publicados pela Boitempo Editorial na Coleção Marx Engels, como o Manifesto comunista. Integra o conselho editorial do selo Barricada, de quadrinhos da Boitempo.
Parabéns.
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