Uma Olimpíada na minha vida
"Queria falar apenas desse sentimento romântico que as Olimpíadas proporcionam. Mas quando o evento se colocou mais próximo, o imaginário cedeu lugar à realidade concreta, pois um dos maiores efeitos dos megaeventos é o de nos mostrar, de forma mais evidenciada, a realidade que nos cerca lentamente. E, no real, o evento está carregado de situações que exigem a contenção dos nossos delírios."
Até onde minha memória alcança sempre fui um esportista. Jogo bola “desde sempre” e até os 21 anos me arrisquei em diversas modalidades. Mesmo sem a mínima condição técnica e física, claro que sonhava em participar de uma Olimpíada e assistia a cada evento dos jogos como se fosse o último. Fiquei verdadeiramente fascinado com inúmeras performances e situações.
Para citar apenas alguns poucos exemplos que me marcaram: João do Pulo (1976-1980), Nadia Comaneci (1976), Carl Lewis (1984), Joaquim Cruz (1984-1988), Gabrielle Anderson (última colocada na maratona – 1984), Ben Johnson (1988, que tempos depois foi pego no antidoping), Dream Team (1992), seleção brasileira masculina de Vôlei (1992-2004), Javier Sotomayor (1992), Gustavo Borges (1992-1996), Jacqueline Silva e Sandra Pires (1996), Fernando Meligeni (1996), 4×100 no atletismo masculino (2000), Adriana Behar e Shelda (2000 e 2004), Vanderlei Cordeiro de Lima (2004), Michael Phelps (2004), César Cielo (2008), seleção brasileira feminina de Vôlei (2008-2012); Usain Bolt (2008) etc.
Mais recentemente acompanhei a trajetória de alguns atletas e treinadores brasileiros, que hoje estão compondo a equipe de natação, e bem sei da seriedade e da intensa dedicação dessas pessoas, como dos demais atletas e profissionais envolvidos, o que me obriga a torcer pelo seu bom desempenho.
Queria, então, falar apenas desse sentimento romântico que as Olimpíadas proporcionam.
Mas quando o evento se colocou mais próximo, o imaginário cedeu lugar à realidade concreta, pois um dos maiores efeitos dos megaeventos é o de nos mostrar, de forma mais evidenciada, a realidade que nos cerca lentamente. E, no real, o evento está carregado de situações que exigem a contenção dos nossos delírios.
Lembrem-se, por exemplo, das remoções ilegais e absurdas ocorridas na Vila Autódromo; dos 11 trabalhadores mortos nas obras; das péssimas condições de trabalho, muitas análogas às de escravo, a que foram submetidos milhares de trabalhadores; das relações promíscuas que geram desvio indevido de verbas públicas; do superfaturamento e das obras inacabadas.
Queria, também, só falar bem da festa de abertura das Olimpíadas no Rio, porque, afinal, foi mesmo lindíssima de se ver, abalando, inclusive, o nosso dito “complexo de vira-lata”, conforme expressão atribuída a Nelson Rodrigues.
A festa se amoldou ao denominado “espírito olímpico” e efetivamente comoveu. É que, bem ao contrário do que se dá em uma Copa do Mundo de futebol, que serve unicamente aos interesses particulares da Fifa e seus aliados, as Olimpíadas possuem a força estranha de arrancar a fórceps o que há de melhor nas pessoas e instituições.
O aspecto verdadeiramente fulminante do esporte olímpico é que ele nos faz perceber como seres humanos, cuja existência só tem sentido na correlação saudável e honesta com outros seres humanos. É por isso que o “mundo olímpico” precisa estimular a igualdade de condições, até para que as vitórias tenham sabor. Vitórias que, ademais, não representam um aniquilamento do outro, mas uma superação dos próprios limites estimulada exatamente pelas “ameaças” do “adversário”.
As Olimpíadas, ademais, não são só magia, pois apesar de se juntarem países com diversos problemas em um mesmo local, onde problemas não faltam, ainda se consegue realizar um grandioso evento em que as coisas dão certo e chegam a emocionar.
Uma Olimpíada, além disso, nos faz pensar para além das fronteiras que foram criadas para a satisfação de interesses econômicos e nos força a estabelecer senso crítico de uma realidade hostil à condição humana, marcada por guerras, ganância, concorrência, individualismo, intolerância e xenofobia.
Isso explica, aliás, o desconforto daquele cujo nome não pode ser dito (e não foi) na festa de abertura, na medida em que sua presença representava exatamente tudo aquilo que quebra o espírito olímpico, afinal sua “vitória” (momentânea) foi fruto do desrespeito às regras do jogo.
Na linha do bom astral, sobre a festa de abertura queria apenas destacar que o evento, tendo sido obrigado a retratar uma pequena parte (devido a limitação de tempo) do que a cultura brasileira produziu de melhor, especialmente na música, não foi apenas um espetáculo muito bonito, como também se prestou a ser revelador da inconsistência de, na política, se ter dado voz e vez a um sentimento que reverbera o que de pior o sentimento humano pode produzir, conforme se verifica nas falas dos reacionários de direita que, diante do cenário político favorável, hoje se põem de plantão e encontram lugar na grande mídia.
Para verificar o despropósito dessa ameaça de retrocesso, aproveitemos do espírito olímpico e imaginemos como seria uma festa de apresentação realizada por essas pessoas. Fariam um “espetáculo” passando a versão histórica machista, branca, homofóbica e xenófoba dos senhores de escravos, dos oligarcas, dos reacionários de cada período e dos opressores e ditadores, repercutindo, inclusive, o interesse das grandes corporações. Pregariam o fim da diversidade, a expulsão dos estrangeiros, a supressão da liberdade de expressão e buscariam as razões para justificar a escravidão, a desigualdade, as diversas formas de opressão, a eliminação de direitos trabalhistas e a violência policial contra os movimentos sociais, fazendo loas, inclusive, às teorias raciais. Seria grotesco, mas, enfim, é isso que muita gente, muitos sem perceber, tem defendido, e um megaevento exaltando tais “valores” seria uma “bela” oportunidade para se perceber o absurdo da pregação reacionária.
Um tal evento evidenciaria, ainda, a contradição entre o reacionarismo e os desafios que se impõem à elevação da condição humana, afinal, o esporte Olímpico, buscando extrair o que há de melhor nos seres humanos, exige uma postura que, embora não seja assumidamente de esquerda, é, ao menos, de tolerância, de estímulo à diversidade, de unidade, de solidariedade e da soma de esforços em atuação coletiva para a construção de um mundo melhor. Vide, a propósito, o comovente acolhimento dado aos refugiados pelos organizadores e pelo público na abertura do evento.
O espetáculo da abertura talvez por esse aspecto tenha incomodado tanta gente que se tornou meio insensível nos últimos meses e que tem se dedicado a torcer para que o Brasil não dê certo.
De todo modo, a tentação audiovisual da festa não pode conduzir a um otimismo exagerado e, portanto, não é possível parar nos elogios. Na linha de uma crítica exigente, seria necessário dizer que faltaram na festa Noel e Pixinguinha. Além disso, não foram convidados Machado de Assis, Drummond e Graciliano Ramos, assim como não se abriu espaço para Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes e com isso não se retratou a dizimação dos índios e o sofrimento dos escravos e dos excluídos em geral, fazendo crer que a nossa história não é marcada por diversas formas de opressão, violência, submissão e exploração.
Reconheço que, em se tratando de uma festa, talvez não fosse mesmo o momento de expor abertamente essa autocrítica. No entanto, como tanta referência se fez aos voluntários, cabia ao menos um agradecimento aos trabalhadores que realizaram as obras para os jogos, assim como seria de bom tom um pedido de desculpas às vítimas das remoções ilegais e aos milhões que, por razões econômicas, foram impedidos de se integrarem aos jogos.
Além disso, foi completamente despropositado tentar convencer a população mundial de que o plantio de árvores representa um autêntico legado da Olimpíada, como se os problemas culturais, sociais, políticos e econômicos do país e do capitalismo não se tivessem reproduzido na preparação para o evento e como se todos esses problemas pudessem ser resolvidos por meio de uma postura voluntarista de plantar árvores.
Mas as Olimpíadas lançam, como dito, uma força estranha no ar. Estimulam sentimentos generosos e esperançosos, sobretudo pela oportunidade de convívio maior com a diversidade cultural. Na última sexta-feira tive a chance de dar a mão para alguns atletas chineses e desejar-lhes boa sorte e isso me fez muito bem.
Desse modo, vou assistir tudo o que conseguir e vou torcer, e muito, para as atletas e os atletas brasileiros, até porque estes, na sua maioria, replicam a história cotidiana da nossa população. Os abnegados atletas brasileiros, que também chacoalham em trens da Central, lutam contra o abandono, a descrença, a desigualdade, a discriminação, o preconceito e a exploração, e ainda assim não se entregam não, embora, por conta de uma deficiência educacional institucionalizada, muitas vezes não demonstram ter o conhecimento de outras boas razões pelas quais poderiam lutar e que por isso, muitas vezes, depois de tantas batalhas a lama nos sapatos é a medalha que têm para mostrar.
Também torcerei, sinceramente, para que tudo dê certo em termos de organização, até para que se afaste de vez a urucubaca dos pessimistas, que tentam provar a todo instante que nada de bom ocorre do lado de baixo do equador, mas sem deixar de consignar a crítica de que a preparação para as Olimpíadas, desde que anunciado o seu destino em 2009, foi uma grande oportunidade perdida para se uma implementar uma política pública eficiente de integração da educação com o esporte e com isso perdemos grandes talentos no esporte e na vida.
Bom, você que está me escutando, é mesmo com você que estou falando agora. O negócio é o seguinte, queira-se, ou não, somos uma sociedade de anjos tortos, onde, apesar de todas as mutilações na consciência e onde pais se colocam contra mães por questões de sobrevivência, o ser humano vinga e, assim, mesmo com tantos problemas, ainda temos belíssimas histórias de luta para contar: Quilombos; Conjuração Baiana, ou Conspiração dos Alfaiates (1798); Revolução Pernambucana (1817); Cabanagem, de 1833-1836, no Pará; Guerra dos Farrapos ou Farroupilha, no Rio Grande do Sul, de 1835-1845; Revolta dos Malês, na Bahia, em 1835; Sabinada, de 1837-1838, também na Bahia; Balaiada, no Maranhão, em 1837-1840; Revolução Praieira (1848); Guerra de Canudos (1896); Revolta da Vacina (1904); Guerra do Contestado (1912), sem falar nas inúmeras greves gerais desde a primeira em 1907.
Uma sociedade na qual não há terroristas, a não ser que se possa denominar como tais aqueles que desviam para fins privados o dinheiro público que serviria à satisfação dos Direitos Sociais e que utilizam a força bruta do Estado para impedir que as vítimas do abandono das políticas públicas exijam, pela ação coletiva, o respeito aos seus direitos.
Por isso é essencial também torcer pelas mobilizações sociais na Olimpíada da vida real que corre em paralelo. A luta do dia-a-dia que impulsiona a maioria da população brasileira em uma corrida por casa, transporte, saúde e educação públicas de qualidade, trabalho digno, respeito e efetividade de direitos trabalhistas, estabilidade no emprego, organização sindical e igualdade material com eliminação da exclusão e das diversas formas de opressão, tudo para que se possa dizer que se está efetivamente construindo um mundo melhor: se não socialista, o que exigiria a distribuição igualitária dos meios de produção, ao menos solidário!
E quem sabe nesse meio tempo o Senado Federal resolva fazer um espetáculo à altura das Olimpíadas e na festa final a legítima Presidenta eleita esteja presente para encerrar os jogos.
É mundo, não queremos abafar ninguém: só queremos mostrar que entendemos das coisas também.
Jorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro de intervenção Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas (R$10, impresso; R$ 5,00, e-book).
Onde encontrar?
R$10 impresso | R$5 e-book (disponível nas livrarias de todo o país)
Impresso (R$10,00)
E-book (R$ 5,00)
Confira abaixo a intervenção de Jorge Luiz Souto Maior no debate sobre megaeventos e o legado da Copa e das Olimpíadas no seminário Cidades Rebeldes da Boitempo, com outros dois autores do livro Brasil em jogo, o urbanista Carlos Vainer e o cientista político Luis Fernandes, que atuou como Secretário Executivo do Ministério do Esporte durante a realização da Copa do Mundo de 2014:
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
Formidável toda essa análise
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Excelente relato. É o lado humanitário das olimpíadas.
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