O quadro, a cena, a forca
A aprovação da Reforma Trabalhista e a condenação de Lula compõem os elementos de uma mesma equação cuja somatória nos leva ao golpe sofrido por Dilma Rousseff com sucessivos desdobramentos que se materializam em perdas e retrocessos, especialmente para os mais vulneráveis.
Por Rosane Borges.
Desde o parecer favorável do deputado Sergio Zveiter (PMDB-RJ) para que o Supremo Tribunal Federal (STF) possa julgar a denúncia de que o presidente golpista/ilegítimo cometeu crime de corrupção passiva no caso JBS, muita água rolou debaixo da ponte na semana que passou. Aos fatos: foi aprovada a Reforma Trabalhista, que abate impiedosamente os trabalhadores; o presidente Lula foi condenado a nove anos e meio de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro (sic); a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara rejeitou, por 40 votos contra 25, a denúncia contra Temer, contestando o parecer do relator.
Apesar da proeminência destes últimos acontecimentos na ordem dos fatos (cada dia somos premidos pelo fluxo do presente que desautoriza a fixação no ontem), considero importante retroceder à imagem que flagra Zveiter olhando para o quadro “Tiradentes ante o carrasco” que ornamenta a sala da CCJ. Desconfio que no conjunto desta imagem habitem elementos que recobrem a sucessão dos trágicos episódios da fatídica semana que passou e atingem como flechas parte expressiva da população brasileira.
Não é de agora que a obra, de autoria do pintor e professor Rafael Falco, vem se prestando a um sem-número de análises, com apelo proverbial. “Tiradentes ante o carrasco” obteve significativo relevo durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff: a traição do deputado Jovair Arantes (PTB-GO), antes da base aliada, sugerindo a cassação da presidenta, embasado (?) na inconsistente tese das pedaladas fiscais foi associada à história da Inconfidência Mineira. Acrescente-se o fato de que a votação do impeachment ocorreu às vésperas do 21 de abril, feriado de Tiradentes, oportunidade em que o presidente uruguaio José Mujica recebeu a Grande Medalha da Inconfidência e denunciou o golpe em curso no Brasil.
A imagem divulgada pela imprensa no último dia 10 mostra o deslocamento do olhar do deputado Sergio Zveiter para a obra, configurando uma espécie de “quadro dentro do quadro”, bem ao modo de As meninas, do espanhol Diego Velázquez. De mero observador, o deputado relator passa a ser, momentaneamente, componente da tela, permitindo renovadas anotações em torno das traições que a Casa Legislativa promoveu, o que resulta invariavelmente em um volumoso inventário.
Na véspera da votação da Reforma Trabalhista, o olhar de Zveiter parece prenunciar não exatamente a queda de Temer (que ganha sobrevida com a recusa do prosseguimento da denúncia pela CCJ, com a votação em plenário adiada para o 2 de agosto), mas a materialização de dois fatos que se constituíram como divisor de águas na nossa história sinuosa (o ineditismo da condenação sem prova por corrupção de um ex-presidente e a destituição solene da CLT pelo Senado). Decisões tramadas com o fio da traição, da sorrelfa, a serviço de interesses de uma elite predatória e de um capitalismo financeirizado que reduz esse governo a um serviçal sem escrúpulos.
Eleitos pelo povo, deputados e senadores aprovaram a Reforma Trabalhista mandando às favas qualquer parâmetro civilizatório nas relações trabalhistas, atendendo covardemente aos interesses do mercado (entidade que foi antropomorfizada) e das classes dominantes enraizadas no terreno dos privilégios e da expropriação, herdeiras diretas do patrimônio escravocrata. Sem nenhum constrangimento, nos fizeram retornar muitas casas no jogo da construção e do aperfeiçoamento da democracia e da República, flertando com o capitalismo em sua vida nua, em seu estado bruto.
A aprovação da Reforma Trabalhista e a condenação de Lula compõem os elementos de uma mesma equação cuja somatória nos leva ao golpe sofrido por Dilma Rousseff com sucessivos desdobramentos que se materializam em perdas e retrocessos, especialmente para os mais vulneráveis.
Quase todo o Congresso cabe neste quadro!
Venho reiterando que num país conflagrado entre ideias progressistas e reacionárias, o desprezo aos pobres, a reação virulenta à ascensão social de segmentos historicamente discriminados, o ódio racial e de classe encontram horizonte discursivo e moldura prática nestes dois episódios que maculam a nossa história, protagonizadas por instituições e pessoas (Judiciário e Legislativo) que deveriam laborar em prol da República.
Se nos detivermos na imagem do quadro poderemos notar que a Casa que o abriga sempre utilizou a reserva de ironia, desdém e deboche, traindo aquelas e aquelas que confiaram seu voto aos nobres deputados. Ultimamente, venho me dedicando a pensar sobre a forma das coisas. Palmilhando essa trilha, das formas, acredito que algo mais se mostra na peça decorativa: a pintura de Rafael Greco, de 1951, já nasce anacrônica, cheirando à naftalina. Em estilo neoclássico destoa da gramática estética da época que procurava estabelecer novas cláusulas sob os influxos da Semana de Arte Moderna de 1922 e dos acenos da arte abstrata e conceitual. A arte se empenhava em outras formas de pensar o país, livre dos códigos de representação do século XIX. Nos EUA a action painting despontava com força nas mãos de Pollock.
A despeito de outra atmosfera artística reinante, foi esse quadro tão século XIX do ponto de vista estético o escolhido para habitar as dependências da Câmara dos Deputados por um pensamento político retrógado e atrasado, mas ainda presente na segunda metade do século XX, como o é hoje, num país que se queria inovador, industrializado. Como tão século XIX é a Reforma Trabalhista que abre mão de defender os princípios de uma vida plena, para subscrever a subsistência. Como tão século XIX é a condenação de alguém apenas por convicção. Parafraseando Luiz Felipe de Alencastro, em sua notável análise de fotografias da escravidão*, é possível afirmamos: Quase todo o Congresso cabe naquele quadro!
Ao nos empurrarem para tempos pretéritos no que se refere à economia, ao direito trabalhista e à política de costumes, o desgoverno nos obriga a adotar como utopia primordial as boas vindas ao tempo presente. Sonhemos e lutemos para que possamos ressoar em alto e bom som “Bem vindo ao século XXI”, ao invés de balbuciarmos, como agora, o triste “Bem vindo ao deserto do real!”
*A frase do historiador Luis Felipe de Alencastro, “Quase todo o Brasil cabe nesta foto”, integra uma análise fotográfica bastante conhecida feita por ele em A história da vida privada no Brasil (vol.2). Os personagens da imagem são uma mulher negra escravizada, uma mucama, ladeada por um menino branco do qual era cuidadora. Tirada em Recife, em 1860, a foto, muito difundida e alvo de inesgotáveis apreciações, é perturbadora, dada as ambivalências que carrega, revelando e ocultando os meandros do servilismo, da política dos afetos, do corpo que se presta à captura do olhar do outro, mas que também se impõe. Em sua descrição, diz Alencastro: “A imagem de uma união paradoxal, mas admitida. Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. A violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho do senhor”.
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Rosane Borges é pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, professora do Celacc-USP (Centro de Estudos Latino-Americanos em Comunicação e Cultura), professora da Universidade São Judas Tadeu. Autora de diversos livros, entre eles Esboços de um tempo presente (2016), Mídia e racismo (2012) e Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro. Rosane Borges também assina um artigo sobre “Feminismos negros e marxismo” no dossiê “Marxismo e a questão racial” coordenado por Silvio Luiz de Almeida no número 27 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.
Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.
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A democracia aqui sempre foi atravessada por essas coisas. Afinal, ela é de baixa intensidade onde não existe quase nada à ver entre os representantes e representados, a iniciar pelo ato do voto. Nesse momento, ninguém se compromete efetivamente, com nada; o que existem são promessas vazias e abstratas, apenas pra cumprir as formalidades. Passado isso é cada 1 com seus interesses. Assim, após o pleito, os representantes, como não ficaram comprometidos com nada, ficam soltos para negociar e agir segundo as circunstâncias.
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Michel Temer não vai cair enquanto ele roubar para deputados votar a favor dele.
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Nome antigo do diabo é lucifer, nome atual do diabo é belzebu, nome do diabo em 2040 é abadom, nome do diabo em 2050 é belial, em 2080 o diabo vai preso um mil anos.
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Michel Temer vai melhorar.
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