Na galeria dos esquecidos, Gondin da Fonseca
Pense num ativo e polêmico personagem da cena político-cultural brasileira que, em aproximadamente quinze anos (1950-1965), vendeu cerca de um milhão de exemplares de seus livros. Repita-se: um milhão de exemplares.
Por José Paulo Netto.
Pense o leitor num ativo e polêmico personagem da cena político-cultural brasileira que, em aproximadamente quinze anos (1950-1965), vendeu cerca de um milhão de exemplares de seus livros. Repita-se: um milhão de exemplares – feito cuja magnitude se avalia melhor se se leva em conta que, num justamente famoso ensaio de 1969, Roberto Schwarz, ao tematizar à época a “cultura brasileira”, estimava que, “com regularidade e amplitude, ela não atingirá 50.000 pessoas, num país de 90 milhões”. Pois bem: esse ativo e polêmico personagem, cuja morte, em julho passado, completou quarenta anos, está praticamente esquecido – e não registro, depois da primeira metade dos anos 1970, reedições de quaisquer de seus livros. Ele está em algum lugar da enorme galeria dos esquecidos do Brasil e julgo que não é inoportuna uma referência a ele.
O personagem aqui recordado é Manoel José Gondin da Fonseca (1899-1977). A sua importância na cena brasileira, entre o lustro inicial dos anos 1950 e o golpe do 1º de abril de 1964, fica clara se referirmos o êxito da vendagem de alguns de seus títulos: Que sabe você sobre petróleo?, em três anos (1955-1958), saiu em 16 edições; o seu Machado de Assis e o hipopótamo, lançado em 1960, tirou 20 edições até 1974; já o opúsculo A miséria é nossa, entre 1961 e 1963, teve 10 edições.
É evidente que, por si só, o favor do público leitor – mutável favor, às vezes apenas conjuntural e frequentemente manipulado – não justifica a lembrança de um autor. Parte significativa de autores de grande sucesso não exerce nenhuma influência intelectual, cultural e/ou política para além de um impacto imediato e episódico sobre os seus leitores; geralmente, a contabilidade de suas vendas só é relevante para o departamento comercial das editoras. Mas este não foi o caso de Gondin da Fonseca, que teve uma longa trajetória na imprensa brasileira, da quarta à sétima décadas do século XX.
A destacada faceta da intensa atividade intelectual de Gondin foi exatamente o jornalismo e, sem dúvida, o reconhecimento que seus contemporâneos lhe conferiram neste campo facilitou a sua relação com o universo letrado do Rio de Janeiro e de São Paulo. Dos anos 1930 à primeira metade dos anos 1950, ele foi assíduo colunista da grande imprensa da época (Correio da Manhã, Folha da Noite). Tornou-se, porém, notória e nacionalmente conhecido sobretudo pelas suas intervenções n’O semanário, o combativo jornal criado no Rio de Janeiro em 1956 por Oswaldo Costa e Joel Silveira – com circulação que cobria todo o país e tiragem de 60.000 exemplares. Em suas 376 edições, O semanário, órgão corajoso e livre de quaisquer posições partidárias, sustentou teses nacionalistas, democráticas e populares – e, não por acaso, foi das primeiras vítimas da truculência desatada em abril de 1964.
O articulismo de Gondin, vazado em linguagem ágil, carregado de verrina e verve, teve muito de panfletarismo, com alguns alvos prediletos, como Assis Chateaubriand, que ele considerava o pai da “imprensa sadia”, e Carlos Lacerda, o “Corvo”, e ainda aqueles (os “entreguistas”) que se dobravam aos interesses dos monopólios estrangeiros, como Roberto Campos, que ele dizia ser um norte-americano nascido em Mato Grosso. Mas a sua dedicação à comunicação pela imprensa não se esgotou na polêmica fácil: pesquisou sua evolução no Brasil (é de 1941 a sua pioneira Biografia do jornalismo carioca. 1808-1908) e foi talvez o primeiro a fazer a crítica regular dos jornais (manteve na Folha da Noite, de 1950 a 1954, a coluna “Imprensa”).
De fato, o jornalista Gondin, que estudou em Coimbra e viajou pela Europa, esteve longe de ser um pasquineiro de língua viperina. Dotado de invulgar domínio do idioma, foi uma vocação de escritor – assentada no cultivo dos clássicos brasileiros e portugueses e no conhecimento de outras literaturas (lia diuturnamente o Dom Quixote e traduziu poetas importantes no seu Poemas da angústia alheia, de 1931, várias vezes reeditado). Seu gosto pessoal, no entanto, era, para dizer o mínimo, discutível: nos anos 1930, não compreendeu Carlos Drummond de Andrade e o movimento modernista, considerou Gilka Machado a maior poetisa brasileira e sempre teve Camilo Castelo Branco na conta de o maior romancista da nossa língua.
Seu interesse pela história, manifestado na sua investigação sobre Santos Dumont (livro que, publicado em 1940, chegou a uma 15ª edição em 1967) e na citada Biografia… de 1941, prosseguiu ao longo de sua vida: escreveu A Revolução Francesa e a vida de José Bonifácio e ainda Eça de Queiroz: sua vida e sua obra vistas sob novo aspecto (este, em 1972, registrava 11 edições). Mas o essencial do seu esforço, nesta área, objetivou-se nas suas obras sobre Camões, Camilo e Machado de Assis: dos três, reconstruiu suas trajetórias de vida, acompanhando-as de uma proposta crítico-analítica de suas realizações estéticas. Este foi, a meu ver, o empreendimento mais original e ambicioso de Gondin e, provavelmente, o mais problemático.
O juízo acerca destas três obras de Gondin – Camilo compreendido (1953) e as posteriores Camões e a Miraguarda e Machado de Assis e o hipopótamo – deve evitar submetê-las a demandas anacrônicas. Ademais de considerar que à época o impressionismo ainda dominava a apreciação literária, há que lembrar que os estudos sobre as/a partir das ideias de Freud, fora de um restrito círculo especializado, eram entre nós incipientes. Gondin, que se aproximou de textos de Freud no final dos anos 1930, pretendeu abordar a vida e a obra daqueles três autores empregando o que acreditava ser o método e a teoria psicanalítica – e tudo indica que a sua pretensão (que já se desenhara no trabalho sobre Santos Dumont) foi, em nosso meio, pioneira. Mesmo com tais cuidados cercando a sua leitura, não me parece, entretanto, que os principais resultados das suas operações críticas resistam a uma avaliação rigorosa, em razão do seu caráter fortemente especulativo. De qualquer modo, não faz mal percorrê-las com os olhos de hoje: em meio a hipóteses ousadas e inclusive temerárias, há percepções interessantes que atestam a argúcia de Gondin e a sua paixão pela literatura. No que toca à concepção de história (e de arte literária) com que trabalhou, fica claro que a Gondin faltavam instrumentos teórico-metodológicos afinados e que ele operava mais com intuição que com categorias analíticas temperadas mesmo por um ecletismo qualquer (aliás, diga-se de passagem, ignorava o bê-a-bá do marxismo e nunca o teve em boa conta, assim como nunca estabeleceu uma relação simpática com os comunistas).
A aludida paixão pela literatura é parte constitutiva da vocação de escritor de Gondin da Fonseca; ele jamais resistiu às imperativas requisições que a página impressa lhe dirigia – daí o seu imparável impulso a escrever, atestado pelo seu enorme espólio literário, que vai do articulismo jornalístico e do biografismo à redação de panfletos políticos e até mesmo livros dirigidos ao público infantil. Produziu sobre uma infinidade de temas – mas o seu diversificado exercício de escritor não fez dele um diletante que borboleteava sobre assuntos os mais diferentes: em todas as suas páginas, pôs tudo de si mesmo e do que pesquisava com seriedade. O leitor que examinar a sua abundante produção (e, nesta nota, nem de longe esgotamos os seus títulos: deixamos muitos de lado, como, por exemplo, o importante Senhor deus dos desgraçados) constatará que Gondin, em cada linha que redigiu, sempre se jogou e se apostou inteira e honestamente.
É provável que os apontamentos dos parágrafos acima não sejam suficientes para argumentar persuasivamente no sentido de retirá-lo da aludida galeria dos esquecidos – nesta, há muitos outros personagens merecedores de maior evocação. Contudo, Gondin não é lembrado aqui pela ausência de qualquer alusão a ele na passagem dos 40 anos de sua morte nem somente pela sua volumosa bibliografia, que em seu tempo foi de fato largamente aceita: é lembrado pelo relevante papel que protagonizou como publicista do nacionalismo brasileiro.
O nacionalismo no Brasil, configuração ídeo-política tão heterogênea e variegada quanto importante no quadro das lutas sociais do imediato pré-1964, já foi objeto de expressivas análises, de fôlego e orientações muito diversos, no quadro da nossa cultura política – análises justa e especialmente voltadas para os anos 1950-1960. Suas agências de fomento (o ISEB, partidos de esquerda etc.) e os seus principais formuladores foram alvos de estudos significativos. Parece-me, todavia, que boa parte dos seus publicistas – aqueles que trataram de converter tais formulações em palavras de ordem que ganharam forte apelo popular – ainda requerem mais atenção. Entre estes, Gondin seguramente tem destaque especial: sua intervenção na campanha “O petróleo é nosso”, em defesa da criação da Petrobrás, foi de monta – com Que sabe você sobre petróleo? (subintitulado “a bíblia do nacionalismo”), Gondin contribuiu decisivamente para fazer da luta pela soberania nacional um ponto fundamental da agenda das forças progressistas e populares do pré-1964.
O Brasil de hoje é muito diferente daquele dos tempos de Gondin, assim como a questão da soberania nacional se põe sob novas condições no quadro da planetarização do capitalismo tardio. Todavia, exceto para os que acreditam piamente no ideário chamado neoliberal/globalizante, a questão da soberania ganha saliência inédita. Basta considerar a alienação de ativos nacionais que está em curso nos últimos meses para avaliar dos seus impactos na continuidade e no aprofundamento do caráter heteronômico da nossa economia, vitalmente comprometedores da soberania.
Numa situação como a que agora enfrentamos, com a propaganda neoliberal operando na mídia quase que sem contraponto, a lembrança de publicistas do nosso nacionalismo pode ser útil. É fato que são homens do passado, como Gondin. Não servem como exemplo, mas servem como lição.
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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.
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Li Gondin da Fonseca ainda adolescente, sem uma compreensão mais lúcida à época, mas com bastante curiosidade (anos 60). A menção a outros “esquecidos” ressalta a necessidade de que sejam ao menos mencionados, como nessa matéria. Poderia suscitar uma série específica a respeito, com textos representativos.
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Parece que André Torres e eu somos contemporâneos. Assino embaixo de seu post, principalmente em relação à série “esquecidos”.
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Caro José Paulo Netto. Sou neto de Gondin da Fonseca e muito me alegra ler aqui seu texto sobre meu avô. Gostaria de enviar ao Sr, cópias preservadas e nunca folheadas de alguns títulos. Se puder entrar em contato gondin.leo@gmail.com
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