Programa Bolsa Família como política de emancipação feminina

A Lei do Bolsa Família, sancionada em 2003 pelo ex-presidente Lula, define que o “pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito preferencialmente à mulher”. Para muitas mulheres, o benefício garantiu possibilidades materiais de romper com relações abusivas. Em casos mais extremos, o rompimento significou a preservação da vida.

Eu não serei livre enquanto houver mulheres que não são.
– Audre Lorde

No último sábado, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva participou de um encontro com artistas e intelectuais no Rio de Janeiro. A proposta de Lula era construir um projeto de governo que pudesse representar todos os setores de esquerda nas eleições de 2018. No entanto, um projeto de unificação se torna difícil, porque ainda é somente em termos de negação que se pensa a resistência em alguns setores da esquerda.

Talvez por isso, seja necessário afirmar a importância de uma resistência criativa em torno do sim. Ou seja, a possibilidade de criar e de recriar, participar ativa e positivamente dos processos de resistência. Quando falamos em equidade de gênero, por exemplo, estamos dizendo sim a alguma coisa. Resistindo positivamente. No entanto, continuamos no campo da abstração: como construir fundamentos que garantam autonomia e liberdade concreta às mulheres?

Em o Segundo Sexo, Simone de Beauvoir nos lembra que todos os importantes avanços alcançados pelas mulheres se tornam abstratos, se eles não são acompanhados pela autonomia econômica. A dependência econômica em relação ao homem contribui para que mulheres sejam confinadas em uma condição de submissão e consequentemente se tornem reféns de relacionamentos violentos. Portanto, é preciso criar condições efetivas para que mulheres alcancem autonomia e liberdade concretas. Obviamente, o ciclo da violência é mais complexo e envolve outras formas de dependência, como a afetiva. Mas ter condições materiais para romper o ciclo já é um passo importante.

A.S., 46, anos, conta que foi refém de um relacionamento abusivo por quase 20 anos: “se eu largasse dele, não tinha para onde ir com as crianças, tenho cinco filhos, três dele e dois de outro. Apanhava calada”. Outros depoimentos, como o de J.T., 29 anos, também revelam que a dependência financeira é um dos fatores centrais de aprisionamento das mulheres em relações abusivas: “eu vim do Norte, não tenho família aqui, levei chutes grávida do menino, mas não tinha dinheiro nem para comprar a passagem de ônibus e voltar para casa”. Ambas são negras e moram em regiões periféricas do Rio de Janeiro – mulheres negras representam 60% das vítimas de violência doméstica no Brasil [1].

Programa Bolsa Família e a redução de mortes de mulheres por “causas externas”

A Lei do Bolsa Família, sancionada em 2003 pelo ex-presidente Lula, define que o  “pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito preferencialmente à mulher”. Para muitas mulheres, o benefício garantiu possibilidades materiais de romper com relações abusivas. Em casos mais extremos, o rompimento significou a preservação da vida.

Um trabalho publicado em 2016 pelo Instituto de Economia da UFRJ aponta que “o Bolsa Família levou a uma redução na mortalidade por causas externas de mulheres entre 15 e 59 anos” [2]. Embora a pesquisa ainda esteja em fase inicial, os primeiros dados mostram a importância de relacionar políticas públicas de redistribuição de renda, emancipação feminina e redução de feminicídio.

Se o PBF criou condições materiais para que mulheres rompessem o ciclo da violência, o Programa Minha Casa, Minha Vida, ao garantir que as escrituras dos imóveis sejam registradas preferencialmente em nome das mulheres, promoveu mais uma etapa de emancipação: ter um teto todo seu. Ou seja, casos como os de A.S. e J.T. ganhariam novas perspectivas casos elas se tornassem beneficiárias dos programas.

Por fim, Beauvoir mostra que a emancipação econômica das mulheres faz com que toda uma estrutura de violência baseada na dependência financeira desmorone. Possibilidades antes sufocadas, escolhas antes mediadas pelo poder masculino, vidas antes aleijadas pela violência encontram possibilidades em um mundo que está mudando. É para as mudanças concretas como essas que precisamos dizer sim.


NOTAS

[1] GELEDÉS. 1,5 milhão de mulheres negras são vítimas de violência doméstica no Brasil.
[2] SABÓIA, Maria Cláudia Pinto Sales. O impacto do programa Bolsa Família sobre a violência contra a mulher.

***

Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em andamento). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review (2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles Blog do Instituto Moreira Salles, Carta CapitalMargem EsquerdaTerritórios Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete, biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista Jandira (2014). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

2 comentários em Programa Bolsa Família como política de emancipação feminina

  1. Antonio Elias Sobrinho // 18/12/2017 às 6:07 pm // Responder

    A Daniele tem uma capacidade incrível de sintetizar, em poucos parágrafos, e de forma tão clara e simples, um dos eixos fundamentais explicativos da dependência das mulheres; acentua, também, uma das possíveis saídas. Sabemos que essa é uma questão complexa, que possui suas raízes mergulhadas em séculos de dominação do macho, que contaminou a totalidade social, inclusive as próprias mulheres. Porém, como ela própria sinaliza, é preciso começar pelo eixo e pelo mais visível.

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  2. Trocaria a palavra emancipação por resistência …

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