Desmedida do valor, Estado de “mal-estar” social e crise do capitalismo global: reflexões críticas sobre o fardo do tempo histórico
A crise do capitalismo global a partir de 2008/2009 colocou novas contradições econômicas e geopolíticas para o manejo da programática neodesenvolvimentista que levou, no caso do Brasil, ao golpe de 2016.
Por Giovanni Alves.
A partir da crise financeira de 2008, que provocou uma Grande Recessão no núcleo orgânico do capital (EUA, União Européia e Japão), o capitalismo global entrou numa longa depressão que percorre a década de 2010. Em 2014, os efeitos desse processo chegaram às economias ditas emergentes. A longa depressão da economia mundial não significa a estagnação da economia. Na verdade, após a Grande Recessão, os EUA, a União Europeia e o Japão chegaram a crescer, entretanto, as retomadas de crescimento da economia ocorreram a taxas inferiores àquelas observadas antes de 2008. Enfim, uma longa depressão representa uma incapacidade das economias capitalistas de terem um movimento de acumulação do capital sustentável.
O capitalismo industrial só teve três longas depressões na sua história: a primeira (1873-1898) impulsionou o desenvolvimento do capitalismo monopolista e do imperialismo e levou à Primeira Guerra Mundial; a segunda (1929-1940) levou ao surgimento do fascismo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial; e a terceira, atual, deflagrada em 2008. O problema que se coloca é: como o capitalismo global vai conseguir superar a longa depressão do século XXI? Para que isso ocorra é preciso retomar as taxas de lucratividade que impulsionem um novo movimento de acumulação do capital que se sustente.
Desde a Grande Recessão de 1973-1975, o capitalismo mundial não conseguiu recuperar as taxas de lucratividade de outrora. O movimento de acumulação de capital que iniciou-se logo após a Segunda Guerra Mundial perde fôlego em meados da década de 1960 e leva a primeira recessão global do pós-guerra. A crise financeira de 2008 representou uma fragilidade da economia global que nunca se recuperou da Grande Recessão de meados da década de 1970. Na verdade, o capitalismo global se caracteriza pela claudicância estrutural decorrente de pressões sobre a taxa de lucratividade que impede uma retomada do desenvolvimento da economia mundial nos moldes do último pós-guerra.
Mesmo a globalização e a ofensiva neoliberal que ocorreu a partir da década de 1980 não conseguiram recuperar o patamar de lucratividade dos trinta anos dourados do capitalismo mundial no centro dinâmico do sistema do capital. É claro que as economias cresceram, mas o crescimento foi caracterizado por instabilidade sistêmica decorrente da financeirização da riqueza capitalista. Apesar do formidável crescimento da taxa de exploração por conta da ofensiva neoliberal sobre o mundo social do trabalho, o capitalismo global predominantemente financeirizado demonstra ser incapaz de elevar a um patamar superior, a taxa de lucratividade que contribua para aumento do investimento produtivo que garanta um crescimento sustentável do movimento de acumulação de capital.
Existem pressões estruturais sobre a taxa média de lucros que impedem a sua retomada num patamar superior – mesmo o crescimento da massa de mais-valia não garante o aumento da lucratividade por conta do aumento da composição orgânica do capital decorrente das revoluções tecnológicas dos últimos trinta anos de capitalismo global (a revolução informática e a revolução informacional). A perspectiva da Quarta Revolução Industrial representa a expectativa de desvalorização massiva do capital constante, provocando uma desvalorização moral (obsolescência) do valor do capital constante que, aliada ao aprofundamento da exploração da força de trabalho, possa permitir a queda da composição orgânica do capital e o aumento significativo da taxa de lucratividade, fazendo com que o capitalismo global possa ter a partir da década de 2020 a superação da longa depressão do século XXI e a abertura de novo ciclo de expansão capitalista – e por conseguinte, o aprofundamento de candentes contradições sociais.
Neste artigo buscamos identificar as contradições candentes do capitalismo global no século XXI. Trata-se do acumulo de contradições estruturais que caracterizam a evolução do capital como “sujeito automático”. Mesmo que a economia global consiga retomar taxas de crescimento sustentáveis na década de 2020 por conta do aumento da taxa de lucratividade ocasionada pela queima de capital em função da Quarta Revolução Industrial e pelo aprofundamento da taxa de exploração do trabalho vivo – e por conseguinte pelo aumento da concentração de renda –, o capitalismo global no século XXI vai exacerbar suas características estruturais que aprofundam a irracionalidade social (o que vemos ocorrer nos trinta anos perversos de capitalismo global).
A irracionalidade social se caracteriza pela contradição candente entre indicadores de crescimento da economia global e a expansão da miséria social decorrente da expansão do novo e precário mundo do trabalho. Diferentemente da abordagem keynesiana que não acredita que o capitalismo neoliberal possa se sustentar com a contração da demanda efetiva, a abordagem marxista clássica observa que o que determina a expansão de investimento é a perspectiva de lucratividade. É o lucro que move a expansão do capitalismo.
A questão é que o crescimento da economia capitalista nas condições do capitalismo global do século XXI cada vez mais vai contrapor-se às necessidades sociais. A saída da longa depressão do capitalismo do século XXI – que vai ocorrer com o aumento da perspectiva de lucratividade – vai significar o aprofundamento da miséria humana global (desigualdade social e concentração de renda). É ilusão acreditar que o capitalismo do século XXI possa permitir uma ação política capaz de construir um Estado de bem-estar social – pelo contrário, a crise estrutural do capital significa o fim da era do Estado de mal-estar social (o que explica o anacronismo histórico do neodesenvolvimentismo e pós-neoliberalismo nos marcos do capitalismo dependente como o capitalismo brasileiro).
O crescimento do PIB não vai se reverter em bem-estar social. Pelo contrário, vai alimentar o rentismo que caracteriza o capitalismo predominantemente financeirizado – rentismo que favorece as altas classes médias e os ricos do sistema mundial do capital. Diz Göran Therborn no artigo “Dynamics of Inequality” (New Left Review 103, janeiro-Fevereiro de 2017), comentando o livro Global Inequality – A New Approach for the Age of Globalization, de Branko Milanović:
“Branko Milanović oferece uma notável ilustração de como a renda do mundo tem sido redistribuído por todo o planeta. Existem dois principais vencedores. O maior, grupo A, representa a “classe média emergente” da China, Índia, Tailândia, Vietnã e Indonésia. Sua renda tem aumentado em 70% ou mais desde a década de 1980. Os outros ganhadores – o grupo C – são o 1% de cima, cujos rendimentos subiram por uns 65%. Os grandes perdedores – grupo B – são os setores da classe operária e da classe média baixa nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. Esta é a base econômica da flutuabilidade globalista na Ásia emergente, o ressentimento popular na Europa e nos EUA e a arrogância dos plutocratas do mundo.”
Um primeiro traço das contradições estruturais do capital no século XXI é a desmedida do valor no interior da plena afirmação da relação-valor. É o que presenciamos com vigor com o desenvolvimento histórico do capitalismo global. Existe uma correlação dialética entre desmedida e expansão da forma-valor. O fenômeno da desmedida de valor explica a financeirização da riqueza capitalista ocorrida na área do capitalismo global. É interessante abordarmos a natureza da desmedida de valor como característica do capitalismo tardio e como elemento compositivo do complexo causal da crise estrutural de valorização do valor. Ela é a decorrência lógico-ontológica da evolução do capital como “sujeito automático” da modernização histórica.
A explicação marxiana da desmedida do capital parte do princípio de que “quanto maior é a força produtiva do trabalho, menor é o tempo de trabalho requerido para a produção de um artigo, menor a massa de trabalho nele cristalizada e menor seu valor” (Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I, p. 118). Portanto, na ótica da teoria do valor-trabalho de Marx, a grandeza de valor de uma mercadoria varia na razão direta da quantidade de trabalho que nela é realizada e na razão inversa da força produtiva desse trabalho.
O capitalismo tardio se caracterizou, de modo inédito na história humana, pela ocorrência de duas revoluções industriais em pouco mais de cinquenta anos de desenvolvimento capitalista: a Terceira Revolução Industrial e a Quarta Revolução Industrial. Elas promoveram significativas mudanças tecnológicas que impulsionaram o aumento da força produtiva do trabalho e a redução do tempo de trabalho necessário para a produção das mercadorias com impactos decisivos na formação do valor.
Essa mutação orgânica da base técnica do sistema produtor de mercadorias, o aumento do capital fixo na produção de valor e, por conseguinte, a redução do capital variável, ou ainda a maior presença do trabalho morto em detrimento da redução – em termos relativos, mas não absolutos – do trabalho vivo na esfera de produção do valor, teve impactos na composição orgânica do capital (em termos de valor), levando à operação de movimentos contratendenciais à queda da taxa média de lucros (o próprio movimento de expansão e crise do capitalismo global é expressão histórica disso).
Na perspectiva da “lei” tendencial de queda da taxa média de lucros, o capital operou no tempo histórico do capitalismo global, contratendencias efetivas que alteraram a natureza histórica da dinâmica capitalista, levando à hegemonia do capital financeiro ou capital especulativo-parasitário no plano do sistema mundial. Na perspectiva da desmedida do valor, o capital encontrou irremediavelmente seu limite estrutural.
A desmedida de valor provocou alterações nos parâmetros estruturais da própria composição orgânica do capital e nos elementos estruturantes do processo de trabalho como processo de valorização (a “implosão” do complexo categorial do capital variável, tais como a jornada de trabalho, remuneração salarial e contratação, com a vigência do trabalho informal ou trabalho precário). Portanto, a nova precariedade salarial é explicada pela desmedida do valor, complexo causal que produz a precarização estrutural do trabalho vivo.
Para apreendermos a natureza da desmedida do valor, isto é, a mudança qualitativamente nova que “altera” a medida do valor como fundamento do capital, vale a pena comentar a longa passagem dos Grundrisse em que Marx discute capital fixo e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. Diz ele:
“Consequentemente, quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais trabalho excedente criou, tanto mais extraordinariamente tem de desenvolver a força produtiva do trabalho para valorizar-se em proporção ínfima, i.e., para agregar mais-valor – porque o seu limite continua sendo a proporção entre a fração da jornada que expressa o trabalho necessário e a jornada de trabalho total. O capital pode se mover unicamente no interior dessas fronteiras. Quanto menor é a fração que corresponde ao trabalho necessário, quanto maior o trabalho excedente, tanto menos pode qualquer aumento da força produtiva reduzir sensivelmente o trabalho necessário, uma vez que o denominador cresceu enormemente. A autovalorização do capital devém mais difícil à proporção que ele já está valorizado. O aumento das forças produtiva deviria indiferente para o capital; inclusive a valorização, porque suas proporções teriam se tornado mínimas; e o capital teria deixado de ser capital. Se o trabalho necessário fosse 1/1000 e a força produtiva triplicasse, o trabalho necessário só cairia 1/3000 ou o trabalho excedente só teria crescido 2/3.ooo. No entanto, isso não ocorre porque cresceu o salário ou a participação do trabalho no produto, mas porque o salário já caiu muito, considerado em relação ao produto do trabalho ou à jornada de trabalho vivo. (O trabalho objetivado no trabalhador manifesta-se aqui como fração de sua própria jornada de trabalho vivo, pois essa fração é a mesma proporção que há entre o trabalho objetivado que o trabalhador recebe do capital como salário e a sua jornada de trabalho inteira)”.
Primeiro, Marx ressalta que o capital se move no interior do contínuo de tempo da jornada de trabalho, tendo, por um lado, a fração da jornada que expressa o [tempo de] trabalho necessário, e, por outro, a fração da jornada de trabalho total. Eis os dois elementos cruciais para o movimento do capital como “sujeito automático” da autovalorização do valor: o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria e o tempo da jornada inteira de trabalho.
O aumento da força produtiva do trabalho por conta de alterações na base técnica do sistema de exploração da força de trabalho e do trabalho vivo, propiciado pelas revoluções industriais, leva à redução do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias. As alterações na base técnica do sistema produtor de mercadorias podem ocorrer não apenas pela introdução de novas tecnologias de produção – por exemplo, máquinas – mas também pela adoção de novos métodos de organização do trabalho vivo (gestão) que contribuem para administrar a intensificação do trabalho (o estresse da força física e espiritual do trabalho vivo).
Por um lado, a redução do tempo de trabalho socialmente necessário provoca a redução da massa de trabalho cristalizada nas mercadorias e por conseguinte reduz seu valor. Ao mesmo tempo, ao reduzir-se o tempo de trabalho necessário, mantendo-se o tempo da jornada inteira de trabalho, amplia-se o tempo de trabalho excedente ou tempo de trabalho não-pago (mais-valia relativa). É a ânsia de extrair mais-valor que faz com que o capital promova inovações tecnológicas capazes de reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias – mesmo que se mantenha o limite político e histórico-moral da jornada de trabalho.
Entretanto, como contradição viva, embora a redução do tempo de trabalho socialmente necessário aumente o tempo de trabalho não-pago ou o mais-valor relativo, ela provoca a redução do valor cristalizado nas mercadorias (na ótica da teoria do valor-trabalho, máquinas não produzem valor – elas apenas o transferem). Entretanto, Marx salienta uma contradição a mais – quanto mais incorpora máquinas na produção, mais ele precisa incorpora-las “para valorizar-se em proporção ínfima”. É quase uma pulsão recorrente para reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário e, por conseguinte, criar trabalho excedente, ao mesmo tempo que reduz a base material da valorização do valor. Diz ele: “Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais trabalho excedente criou, tanto mais extraordinariamente tem de desenvolver a força produtiva do trabalho para valorizar-se em proporção ínfima.” (Karl Marx, Grundrisse).
Eis a tragédia do capital. Diz Marx: “A autovalorização do capital devém mais difícil à proporção que ele já está valorizado” (Grundrisse, p. 269). Marx vislumbraria a desmedida do valor como o limite do capital autovalorizado contraditoriamente. Ele afirmaria logo a seguir: “O aumento das forças produtiva deviria indiferente para o capital; inclusive a valorização, porque suas proporções teriam se tornado mínimas; e o capital teria deixado de ser capital.” (Grundrisse) No limite da desmedida do valor, o aumento da força produtiva não seria capaz de impulsionar a valorização do capital, tornando-se indiferente para ele mesmo. É que o que identificamos como sendo a crise estrutural de valorização do valor diante do aumento da composição orgânica do capital na era da desmedida do valor.
Deste modo, o aumento extraordinário da força produtiva do capital por conta das Revoluções Industriais ocorridas desde o fim da Segunda Guerra Mundial (em 1945), a Terceira Revolução Industrial e a Quarta Revolução Industrial que ocorre no auge do capitalismo global, provocaram não apenas o aumento da composição orgânica do capital e seus movimentos contratendenciais visando recuperar a lucratividade das corporações industriais (como salientamos a seguir), mas provocaram a desmedida do valor, o fenômeno estrutural do processo de produção do capital destacado acima por Marx nos Grundrisse.
Na medida em que o valor do produto-mercadoria se reduziu a uma proporção ínfima de si, tendo em vista a redução exponencial do trabalho socialmente necessário para produzi-la, o progresso técnico se descola (ou torna-se indiferente) para a autovalorização do capital. Pelo contrário, mesmo sendo indiferente a si, o desenvolvimento das forças produtivas do capital prossegue irremediavelmente como uma pulsão sinistra do capital que opõe o processo tecnológico à totalidade viva do trabalho.
Marx observou – e vale a pena repetir – que o “aumento das forças produtivas deviria indiferente para o capital; inclusive a valorização, porque suas proporções teriam se tornado mínimas; e o capital teria deixado de ser capital.” (Grundrisse) A indiferença do processo tecnológico à valorização do valor acusa a desmedida do valor provocada pelo aumento das forças produtivas do capital e a redução quase-infinita do trabalho socialmente necessário na produção das mercadorias.
A transformação do processo de produção do simples processo de trabalho em um processo científico ou processo de produção do capital, com o capital fixo subsumindo o trabalho vivo, continha o para-si da “negação da negação” do capital como processo de valorização. Noutra passagem dos Grundrisse, Marx expõe a mesma lógica da desmedida do valor que faz com que o capital deixe de ser capital no sentido do capital como processo de valorização do valor propriamente dito (a crise estrutural de valorização do valor). Disse ele:
“Na mesma medida em que o tempo de trabalho – o simples quantum de trabalho – é posto pelo capital como único elemento determinante de valor, desaparece o trabalho imediato e sua quantidade como o princípio determinante da produção – a criação de valores de uso –, e é reduzido tanto quantitativamente a uma proporção insignificante, quanto qualitativamente como um momento ainda indispensável, mas subalterno frente ao trabalho científico geral, à aplicação tecnológica das ciências naturais, de um lado, bem como [à] força produtiva geral resultante da articulação social na produção total – que aparece como dom natural do trabalho social (embora seja um produto histórico). O capital trabalha, assim, pela sua própria dissolução como a forma dominante da produção.” (Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I, Boitempo, 2013) [o grifo é nosso]
O movimento do capital na sua ânsia de substituir trabalho vivo por trabalho morto, capital variável por capital fixo, faz desaparecer o processo de trabalho e o trabalho imediato e sua quantidade como o princípio determinante da produção. O processo de trabalho como processo de valorização se interverte em processo científico – expressão de Marx – ou processo tecnológico na medida em que o processo de produção do capital torna-se processo de tecnologização da ciência aplicada à produção de mercadorias.
O processo cientifico de produção de mercadorias é um processo problemático para o modo de produção do capital, na medida em que o tempo de trabalho, único elemento determinante de valor, se reduz a uma “proporção insignificante”. Como diz ele, o trabalho é “um momento ainda indispensável, mas subalterno frente ao trabalho científico geral, à aplicação tecnológica das ciências naturais, de um lado, bem como [à] força produtiva geral resultante da articulação social na produção total – que aparece como dom natural do trabalho social (embora seja um produto histórico).” Não se trata de dispensar absolutamente o trabalho vivo, mas torna-lo efetivamente subalterno ao arcabouço tecnológico do capital, produto histórico da força social de produção do capital social total.
Na medida em que o tempo de trabalho, único elemento determinante de valor, “desaparece”, o capital deixa de ser capital ou, noutras palavras, “o capital trabalha, assim, pela sua própria dissolução como a forma dominante da produção” (Marx, O capital, Livro I). Estamos na plenitude da lógica dialética com a desmedida de valor provocando o “desaparecimento” do tempo de trabalho como quantum ou medida da riqueza.
O movimento dialético do ser do capital, que existe somente no devir, conduz da qualidade à quantidade e, logo após, à medida que, na lógica hegeliana, é “a verdade da qualidade e da quantidade, unidade na qual toda mudança quantitativa indica simultaneamente uma mudança qualitativa”. No plano material, ocorrem mudanças qualitativas no movimento da essência do capital que fazem com que a indiferença da medida chegue ao seu limite – “e, por sua transgressão através de um mais ou um menos suplementar, as coisas deixem de ser o que eram.” A lógica da dialética hegeliana expõe o “para além do capital” no plano lógico-ontológico da essência do ser: “Essa determinação-progressiva é, a um tempo, um pôr-para-fora (Heraussetzen) e portanto um desdobrar-se do conceito em si essente; e, ao mesmo tempo, o adentrar-se em si (Insichgehen) do ser, um aprofundar-se do ser em si mesmo.” (Hegel, Ciência da lógica).
Deste modo, o movimento do capital que deixa de ser capital ou, noutras palavras, o movimento do capital que trabalha pela sua própria dissolução como a forma dominante da produção, é o movimento do capital no interior da crise estrutural de valorização do valor. Trata-se, como diria Ruy Fausto, da “negação” do capitalismo no interior do capitalismo, como capitalismo “negado”.
Assim, no plano da materialidade histórica, o capitalismo global é o capitalismo histórico em sua etapa de crise estrutural que, no plano do ser (e da sua essência) é um “capitalismo negado” no sentido de que a crise estrutural da produção do valor salientada acima, representa o aumento da composição orgânica do capital (com a pressão sobre a taxa média de lucro) e seus movimentos contratendenciais no interior da era da desmedida do valor.
O capitalismo global com suas determinações fundantes (e fundamentais) – capitalismo neoliberal, capitalismo predominantemente financeirizado e capitalismo flexível – é o capitalismo histórico em que o movimento das leis tendenciais da acumulação de capital operam no interior da negação (ou suprassunção) de sua determinação-progressiva (o tempo de trabalho como único elemento determinante de valor).
Na era da desmedida do valor, na perspectiva da lógica dialética, o movimento do capital “negado” significa, por um lado, um “pôr-para-fora” – diria Hegel: “um desdobra-se do conceito em si essente” , ou seja, um desdobrar-se do capital em seus elementos essenciais mesmo que opere no plano do “capital que deixou de ser capital”. Apesar da desmedida de valor, o aumento da composição orgânica do capital (em valor) põe para fora movimentos contratendenciais históricos à queda da taxa média de lucros.
A “desparametrização” do conceito do capital em si, com seus elementos essenciais medidos em termos de valor (por exemplo, composição orgânica do capital, jornada de trabalho, salário, etc) não significa sua invalidação ontológica na determinação do devir da forma do ser do capital. Pelo contrário, o “passar para outra” do capital mantém operando, sob a forma exótica, o conceito em si essente do capital (o capital em seus elementos essenciais). Por exemplo, consideramos a financeirização da riqueza capitalista como uma forma exótica contratendencial à crise estrutural de valorização do capital (o “pôr-para-fora” representa o ex-otismo do capitalismo global).
Por outro lado, na era da desmedida do valor, na perspectiva da lógica dialética, o movimento do capital “negado” significa o “adentrar-se em si” do ser” – ou como diria Hegel, “um aprofundar-se do ser em si mesmo”, ou seja, o capital em sua etapa de crise estrutural, não é apenas ex-ótico, mas autocentrado em si mesmo como movimento de valorização do valor – hoje, negado – mas posto-para-fora como capital fictício. A dominância do capital especulativo-parasitário é a forma histórica do capital “aprofundado em si mesmo”, explicitando na totalidade de ser suas determinações estranhadas.
Finalmente, dando continuidade à reflexão sobre a longa depressão da economia mundial, torna-se necessário, mais uma vez, afinarmos a consciência crítica apresentando a título de hipótese de trabalho, uma nova periodização histórica do desenvolvimento do capitalismo global.
Por capitalismo global entendemos uma nova forma de ser do capitalismo histórico que pode ser caracterizado por um complexo de determinações conceituais salientadas por vários autores que adjetivam o novo capitalismo de modo unilateral. Por exemplo, o capitalismo global é o capitalismo neoliberal (Gerard Duménil e Dominique Lévy), o capitalismo flexível (Richard Sennet), o capitalismo cognitivo (Maurizio Lazzarato e Antonio Negri), o capitalismo senil (Jorge Beinstein), o capitalismo zombie (Chris Harman), a sociedade em rede (Manuel Castells), etc.
Como determinações de fundo da nova forma de ser do sistema mundial do capitalismo histórico que se origina da crise estrutural do capital (István Mészáros), temos seu caráter radicalmente manipulatório (Georg Lukács), predominantemente financeirizado (François Chesnais) e lastreado em duas revoluções tecnológicas – a revolução informática (Adam Schaff) e revolução informacional (Jean Lojkine) – elementos que compõem, dentre outros, a ante-sala da Quarta Revolução Industrial (Klaus Schwab) que deve percorrer o século XXI. O capitalismo global foi apreendido também por Gilles Lipovetsky, um dos mais prolíficos sociólogos do capitalismo global, como a era do vazio (1993); os tempos hipermodernos (2004), a sociedade da decepção (2006), a civilização da leveza (2015), ou ainda pela filosofia de Byung-Chul Han como a sociedade do cansaço (2010) ou a sociedade da transparência (2012). Todo complexo de determinações salientadas acima se desenvolveram de modo pleno a partir de 1990, tornando-se mais visível no plano social e cultural.
Esta nova perspectiva histórica de desenvolvimento do capitalismo global é uma revisão crítica da periodização adotada em escritos anteriores que situava como marco histórico originário do capitalismo global o ano de 1980 com a eleição de Ronald Reagan nos EUA. Naquela perspectiva, a partir da recessão global de 1973-1975, iniciou-se a crise estrutural do capital (István Mészáros) e o período de transição de modelo hegemônico de desenvolvimento capitalista, caracterizado pela agudização da luta política e sindical nos países capitalistas centrais, e a derrota do receituário fordista-keynesiano com a vitória das plataformas neoliberais. A eleição de Thatcher no Reino Unido em 1979 e Ronald Reagan nos EUA em 1980 foram indicativos da nova virada política do modo de desenvolvimento capitalista.
Enquanto na primeira perspectiva, a transição para a hegemonia neoliberal no plano global ocorreu na última metade da década de 1970, na nova perspectiva, ela se alonga pela década de 1980, a ser considerada como uma década de disputas político-ideológicas entre EUA e URSS, em sua última etapa histórica, que se concluirá em 1989-1991 com a Queda do Muro de Berlim e o fim da URSS.
Na perspectiva anterior, teríamos hoje (2018) quase quarenta anos de capitalismo global na sua acepção plena. Deste modo, a década de 1990 representaria uma década de mero prolongamento (e aprofundamento) da programática neoliberal, não apenas no capitalismo central, mas na sua borda periférica (América Latina, Europa Oriental e Rússia). A passagem da década de 1980 para a década de 1990 representaria mero prosseguimento daquilo que seria o capitalismo global. Entretanto, neste pequeno ensaio, iremos apresentar uma nova periodização histórica que situa a explicitação do capitalismo global propriamente dito como tendo ocorrido não em 1979/1980, mas sim 1989/1991.
Ao invés do marco histórico do capitalismo global como sistema hegemônico de desenvolvimento da mundialização do capital ter sido as eleições de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, foi a Queda do Muro de Berlim e a débâcle da URSS (1989/1991). Eric Hobsbawm tinha intuído que o século XX acabara nesta época de drásticas mudanças geopolíticas no mundo. Portanto, nossa hipótese é que o capitalismo global tem como marco histórico o ano de 1989-1990. Deste modo, o século XXI seria o século do capitalismo global que, ao nascer, logo depois, iria expor sua insustentabilidade (como demonstraram os acontecimentos das décadas seguintes). Deste modo, o capitalismo global teria hoje trinta anos de desenvolvimento histórico (1990-2020) – os “trinta anos perversos” (em contraposição, por exemplo, aos “trinta gloriosos” (1945-1975)).
Portanto, se o capitalismo da década de 1980 não é o capitalismo global propriamente dito, o que representou efetivamente a década de 1980 para o desenvolvimento do novo capitalismo?
A década de 1980 representou uma década de transição iniciada após a derrota da programática fordista-keynesiana na última metade da década de 1970. Estavam sendo colocadas os pilares daquilo que consideramos a terceira modernidade. O período anterior (1980-1990) foi um período de formação do neoliberalismo como sistema hegemônico mundial. A década de 1980 foi a década da pós-modernidade e seus sonhos liberais, logo frustrados na década seguinte, quando surgiu efetivamente o capitalismo global.
Assim, o que presenciamos com o capitalismo global é a crise estrutural do capital em sua dimensão superior (Mészáros identificara com a crise de 1973-1975, a crise estrutural do capital, um longo depresso, de acordo com ele – entretanto, o sistema do capital na década de 1980 se reestruturaria, dando resposta histórica às contradições expostas no período anterior). A ofensiva do capital se sedimentaria com os acontecimentos históricos de 1989/1991, projetando portanto a civilização do capital noutra temporalidade histórica: o capitalismo global.
Os tempos hipermodernos, eufemismo para o capitalismo global, pode ser caracterizado pela posição/afirmação hegemônica do capital financeiro com sua programática neoliberal. Nesse período de euforia liberal (“fim da história”, diria Fukuyama), a efusão capitalista tornou-se plena com a queda da URSS, expansão da globalização, a nova base tecnológica (Internet) e os pilares da Quarta Revolução Industrial (Informacional). Além disso, temos a presença da China no mercado mundial. Ao mesmo tempo, temos com o Plano Brady e Consenso de Washington, a integração da América Latina, Europa Oriental e Rússia no circuito de capital; e as crises financeiras recorrentes no sistema do capital (1996-2001 e 2008-2009).
Essas crises financeiras abaterão o novo sistema neoliberal a partir de 1996-2001, abrindo novas dinâmicas de conjunturas regionais (América Latina e Rússia) e provocando reação geopolítica, com o capitalismo global entrando na sua fase de longa decadência a partir da depressão da economia mundial da década de 2010. Na América Latina, a crise das experiências pós-neoliberais e neodesenvolvimentistas. Enquanto isso, na Ásia, a Rússia se desloca geopoliticamente, recompondo-se em meados da década de 2000 com Vladimir Putin, aproximando-se da China e Índia, indicando um novo modelo de desenvolvimento do capital.
Podemos dizer, numa perspectiva retrospectiva que foi breve a ascensão do capitalismo global; e podemos afirmar, do mesmo modo, que será longa sua queda histórica, que tem como marco histórico, a Grande Recessão de 2008/2009 e a longa depressão da economia mundial. É o que buscaremos caracterizar pois vivemos a era histórica da crise estrutural do capitalismo global como etapa superior da crise estrutural do capital.
Como salientamos no artigo anterior, vivemos hoje (2018) a terceira longa depressão da economia mundial que deve nos projetar no decorrer do século XXI, para uma nova dinâmica global do capital. Nada podemos prever. A tarefa do cientista social é dar sentido à cena histórica. Podemos especular – no bom sentido dialético – e apresentar hipóteses que clarifiquem o processo de desenvolvimento histórico no qual estamos inseridos.
Talvez a próxima década – 2020 – represente efetivamente a transição histórica para um novo (e senilizado) capitalismo global que elevará, numa escala inédita, as contradições oriundos da crise estrutural do capital. Após trinta anos de desenvolvimento e crise do capitalismo global, ela pode representar, por exemplo, o mesmo que a década de 1980 representou no plano da longo durée do capitalismo tardio. Entretanto, nada pode garantir que assim ocorra. Trata-se apenas de hipóteses, pois os “acidentes” desempenham um papel importante no curso do desenvolvimento histórico do capitalismo.
Depois de “trinta anos” de desenvolvimento e crise do capitalismo global (1990-2020) podemos apreender hoje, devido o adequado distanciamento histórico, os traços estruturais significativos do novo capitalismo do século XXI, o dito “tempos hipermodernos”. Trata-se do novo capitalismo senil que se vislumbra nos primórdios do século XXI e que deixa muito distante o capitalismo fordista-keynesiano do pós-guerra, ápice do desenvolvimento civilizatório do capitalismo histórico – pelo menos nos países capitalistas centrais.
Ao invés de ficarmos aprisionados na tradição das gerações mortas, devemos vislumbrar as novas condições da luta de classes no novo patamar da crise estrutural do capital postas pelo novo capitalismo senil e pelo movimento do sistema do capital que deve surgir da crise do capitalismo global no século XXI. Os “trinta anos perversos” do capitalismo global foram tempos de mudança históricas drásticas só comparáveis àquelas ocorridas com a Primeira Revolução Industrial na virada do século XVIII para o século XIX na Europa Ocidental. Tivemos transformações estruturais – que ainda prosseguem – na economia global, sociabilidade burguesa, base tecnológica, estrutura de dominação política, morfologia do mundo do trabalho e sua representação sindical e social, cultura e psicologia das massas e formas de estranhamento social
Anuncia-se a Quarta Revolução Industrial e constituição de novo e precário mundo do trabalho. Na verdade, a ampliação da robotização, fábricas automáticas, Inteligência artificial, nanotecnologia, biotecnologia, Internet das coisas e impressão 3D, devem provocar mudanças radicais na estrutura de produção de valor, agudizando tendências histéricas verificadas na última metade do século XX que fez aumentar a composição orgânica do capital no plano mundial, aumentando a pressão sobre a taxa média de lucros das unidades concentradas de produção de valor no sistema mundial do capital.
O movimento de “fuga para frente” do capitalismo global, com a perequação das taxas média de lucro num movimento único de queda da taxa média de lucro no plano global, afirma cada vez mais, no plano da lei do valor, a integração (e interdependência) da economia global dependente dos vários movimentos contratendenciais à queda da lucratividade global (com destaque para a crônica financeirização da riqueza capitalista, que hoje, por exemplo, lastreia-se nas moedas virtuais como o bitcoin).
Ao mesmo tempo, afirma-se como necessidade da valorização do valor, a integração regional do comércio, reformas trabalhistas que corroem diretos trabalhistas equalizando a taxa diferencial de exploração da força de trabalho, o aprofundamento da obsolescência planejada de mercadorias – aquilo que Mészáros denominou de queda da taxa de utilização do valor de uso, tendo em vista a aceleração do giro do capital em sua forma financeira (por exemplo, o sociólogo alemão Hartmund Rosa, ao dedicar sua reflexão sociológica à aceleração social exprime, no plano contingente, o que tornou-se uma obsessão da lógica de crise do capitalismo global).
Ao mesmo tempo, desenvolve-se de modo ampliado, como fenômeno histórico inédito, a barbárie social decorrentes do aprofundamento do estranhamento no sentido lukácsiano do termo. Esta é a base sociometabólica do Estado de mal-estar social.
No plano político, esgota-se a democracia política representativa, originando cada vez mais conflitos entre a esfera pública corroída e a esfera dos interesses privados da oligarquia financeira global e seus aliados internos.
No plano geopolítico, a decadência do capitalismo neoliberal e o surgimento de nova forma social do capital na Ásia – com destaque para a China, indica possibilidades de desenvolvimento contraditório do fetiche do valor na sua forma pós-capitalista como Estado político do capital.
Em 2018, a economia global vive o pico de ascensão de um ciclo de negócios iniciado em meados de 2016. Prevê-se que a partir de 2019 verifiquemos fenômenos de desaceleração da economia global, como indicado pelo próprio relatório do FMI. Na verdade, a economia global ainda não superou problemas estruturais oriundos da Grande Recessão de 2008/2009.
Deve-se esclarecer que, no interior da longa depressão da economia capitalista pode-se admitir ciclos de crescimento e desaceleração das economias capitalistas. Em 2019 o que pode ocorrer é desaceleração que pode – ou não! – levar a um novo crash (como 2008). Entretanto, o que vários economistas marxistas constatam é que, a vulnerabilidade do sistema do capitalismo global em sua etapa de crise deve continuar por conta do acumulo de contradições postas pela crise do capitalismo global (endividamento estagnando o investimento privado e investimento público, demanda e a nova alavancagem da especulação provocando riscos).
E o Brasil?
Em 2018, a economia brasileira rasteja numa conjuntura de longa depressão da economia global, com profundos impactos sociais (desemprego e nova precariedade salarial). De 2015 a 2016, o Brasil enfrentou uma das maiores recessões de sua história – pelo menos desde 1930. O golpe de 2016 construiu-se no interior da conjuntura de queda das economias capitalistas ocorridas de 2013 a 2016 – a mesma conjuntura que elegeu, por exemplo, Donald Trump nos EUA, levou ao Brexit no Reino Unido e levou a extrema-direita francesa ao segundo turno das eleições na França.
Como dissemos acima, em meados de 2016, o movimento da economia global, no caso dos países capitalistas centrais, mostrou uma pequena recuperação que deve alcançar seu pico em 2018. No caso do Brasil, o governo golpista implementou de modo veloz, reformas estruturais voltadas para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho (Terceirização e Reforma Trabalhista) e o redução do gasto público e equilíbrio orçamentário do Estado visando beneficiar os detentores do capital improdutivo – que comandam o bloco no poder do capital no País (Lei do Teto do gasto público e principalmente a Reforma da Previdencia).
A economia brasileira sai da recessão em 2017, estagnando-se e projetando um crescimento medíocre em 2018 – aproveitando o movimento de ascensão da conjuntura da economia global, como relatamos acima. O choque das novas reformas neoliberais paralisou o investimento público e mesmo numa etapa de ascensão do ciclo de negócios no centro capitalistas – o que não deve ocorrer em 2019 – não conseguirá retomar o crescimento que havia antes da profunda recessão de 2015-2016. A perspectiva é de impasses na economia brasileira em 2019, com o agravamento do quadro social, aumentando as lutas sociais e provocando um estresse profundo no caduco sistema político brasileiro.
Vejamos o desenvolvimento do capitalismo brasileiro no interior da nova etapa do capitalismo global iniciada em 1990. Com a derrota da Frente Brasil Popular em 1989, o Brasil insere-se na nova etapa do capitalismo mundial a partir de 1990 com o projeto de reformas neoliberais do governo Collor e depois FHC (estabilização monetária, reforma do Estado, reforma trabalhista – não conseguiu efetuar a reforma da previdência, feita em 2003 por Lula) (repete-se hoje com Temer, de modo mais profundo, o projeto neoliberal dos anos 1990).
Entramos na era do capitalismo global com os governos neoliberais da longa década de 1990. É o que ocorre com a América Latina. Com a crise do modelo neoliberal no começo da década de 2000, como resultados da crises financeiras da última metade da década de 1990, temos resultados políticos que abrem uma fratura no projeto neoliberal. Daí surgem na América Latina o fenômeno das experiências pós-neoliberais e experiências neodesenvolvimentistas.
Não se trata de rupturas com o sistema mundial hegemônico do capitalismo global, tudo em vista seus limites políticos, principalmente no caso do Brasil, elo mais forte do imperialismo na América Latina. Mas as experiências neodesenvolvimentista e principalmente pós-neoliberais na década de 2000 alteraram o movimento da ofensiva neoliberal dos anos 1990, incomodando setores dominantes do bloco no poder, mesmo que sua programática política tímida e conciliadora.
A crise do capitalismo global a partir de 2008/2009 colocou novas contradições – não apenas econômicas, mas inclusive geopolíticas – no manejo da programática neodesenvolvimentista que levou, no caso do Brasil, ao golpe de 2016.
Apesar de não ameaçar as relações de propriedade privada, o neodesenvolvimentismo, em sua fase terminal, teve que enfrentar a partir de 2013 o conflito pelo Orçamento Público, as necessidades empresarias pelo aumento da taxa de exploração e os interesses imperialistas no quadro de um capitalismo dependente. Com a queda da economia na última metade do ano de 2014 e os erros flagrantes do governo Dilma, intrínsecos à lógica lulista da conciliação de classe, criou-se o cenário necessário para a “aliança dos canalhas” – incluindo grupos do aparelho de Estado ligados a classe medias – sair vitoriosa com o impeachment de meados de 2016.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
excelente texto.
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