Em busca da “América”
Luiz Bernardo Pericás narra a fantástica "road trip" realizada por Ilf e Petrov, dois escritores soviéticos nos EUA dos anos 30, e depois repetida pelo humorista Ilya Shatunovsky no final dos anos 1960.
Por Luiz Bernardo Pericás.
Moscou, outono de 1969. No quarto andar do Pravda, um grupo de jovens redatores conversava sobre uma célebre reportagem realizada 34 anos antes por Ilya Ilf (Ilya Arnoldovich Feinzilberg) e Evgeny Petrov (Evgeny Katayev), dois famosos escritores enviados por aquele periódico para cruzar os Estados Unidos da costa leste à oeste, no intuito de conhecer de perto a realidade da “América”.
Ambos os jornalistas nascidos em Odessa àquela altura já eram celebridades na União Soviética e seus livros (um par de trabalhos elaborados em coautoria, especialmente o romance satírico As doze cadeiras), imensamente populares na época.
Como enviados internacionais, seguiram de trem para Le Havre, abordaram o navio francês Normandie e atravessaram o Atlântico por cinco dias. Seu primeiro destino foi Nova York, onde presenciaram os contrastes dos hotéis de luxo e de Wall Street com a pobreza e a rotina dos despossuídos… E também as sutilezas do cotidiano da grande metrópole: os táxis que circulavam nas avenidas, Times Square, a multidão nas ruas… Munido de uma câmera Leica, Ilf registraria todo o trajeto dali em diante, através dos 25 Estados e das dezenas de cidades por onde passaram…
O périplo foi realizado de carro. Ao longo do caminho, eles visitaram a capital, Washington; estiveram em Hartford, Connecticut (onde um de seus heróis literários, Mark Twain, havia morado); denunciaram a difícil situação de vida dos indígenas e dos negros; e na Califórnia, conheceram Hollywood (onde se depararam com Betty Davis em pessoa num estúdio de cinema). Sempre aceitavam dar carona a quem pedisse… E assim iam se inteirando, aos poucos, da dinâmica do “Colosso do Norte”: o racismo, as desigualdades, a opulência. Além disso, ainda se encontraram com Henry Ford, Upton Sinclair e Ernest Hemingway. Uma experiência singular… Retornaram à “Grande Maçã” e de lá à Europa no Majestic, no começo de 1936.
O resultado dessa road trip foi a publicação de uma série de sketches e “capítulos” na imprensa local, material que deu origem, pouco depois, ao livro Odnoetazhnaya Amerika, lançado em 1937. Por muito tempo, aquela foi a única narrativa de viagem sobre os EUA à disposição dos leitores soviéticos…
Então, em 1969, nos escritórios do mesmo Pravda, alguém sugeriu que o diário enviasse um emissário para refazer os passos de Ilf e Petrov, ou seja, para atualizar seu retrato dos Estados Unidos e mostrar o que ocorria por lá naquele momento. Só era preciso saber quem seria o indicado para cumprir a nobre tarefa. Não houve dúvida: o humorista Ilya Shatunovsky foi o escolhido!
Malas prontas, ele partiu imediatamente para Nova York, só que desta vez, em um “moderno” Iliushin 62. Após onze horas de voo, lá estava ele, na terra do Tio Sam. Mas aquele quarentão se deu conta de que explorar sozinho tamanha imensidão teria suas dificuldades. Afinal, não haveria qualquer problema em compartilhar o roteiro com algum colega que falasse russo e que, ao mesmo tempo, dominasse o inglês. Muito pelo contrário; uma boa companhia certamente seria bem-vinda. Shatunovsky não hesitou e seguiu direto para a capital, onde sabia que encontraria a pessoa certa para a empreitada: o correspondente Boris Strelnikov. A partir daí, a dupla percorreria milhares de quilômetros (também num automóvel, como Ilf e Petrov), ainda que em apenas trinta dias…
Não custa recordar que ambos nasceram em 1923, lutaram na Segunda Guerra Mundial e foram condecorados por bravura. Só se conheceram depois do conflito, na época em que estudaram na seção de periodismo da Escola Central da Komsomol. Mais tarde, trabalharam nos meios de comunicação, tornando-se grandes amigos e noticiaristas renomados: enquanto Shatunovsky ganhou o Prêmio da União dos Jornalistas da URSS (além das Ordens da Bandeira Vermelha do Trabalho e o Distintivo de Honra), Strelnikov, autor de Cem dias no Vietnã e As tardes de Nova York, recebeu o Prêmio Vorovski e a Ordem de Lênin. Eram, portanto, personalidades bastante conhecidas e respeitadas em seu círculo profissional.
A jornada começou na Casa Branca e de lá para o resto do vasto território norte-americano. E foi narrada, posteriormente, no livro Os Estados Unidos de costa a costa. O relato, muitas vezes em tom sarcástico e entremeado por digressões históricas, discorre sobre as características dos centros urbanos, a natureza, os amish, a cultura do automóvel…
De Washington se dirigiram a Illinois. Na Windy City presenciaram o julgamento dos Chicago Eight. Descreveram em detalhes as arbitrariedades das autoridades judiciais, dando especial ênfase à forma como Bobby Seal (um dos mais conhecidos líderes do Black Panther Party) foi algemado no tribunal e acorrentado com truculência à cadeira pelos agentes de segurança. Aquilo, entretanto, não era o suficiente: sua voz precisava ser calada. Por esse motivo, ele ainda teve sua boca amordaçada com fita adesiva, num ato de extrema covardia e barbárie. Tudo isso enquanto o juiz que presidia a corte sorria cinicamente…
Nunca deixavam de fazer paralelos com o itinerário de seus predecessores. O rio Mississippi recebeu atenção especial: lembranças da Guerra Civil; evocações do criador de Tom Sawyer e Huckleberry Finn… Depois disso, as Montanhas Rochosas, o Grand Canyon, postos de gasolina, autoestradas… No capítulo sobre os povos originários expressaram toda sua indignação…
Já na Costa Oeste (como Ilf e Petrov, décadas antes) viram Hollywood de perto. Chegaram inclusive a assistir, nos estúdios da Fox, ao diretor Russ Meyer terminando de gravar mais uma cena do filme Beyond the Valley of the Dolls, lançado pouco tempo depois. Os dois acharam aquilo tudo pavoroso: o regente, a película, o ambiente… Mas continuaram seu périplo e até turistas brasileiros encontraram ao longo de seu passeio.
No Sul profundo, por sua vez, penetraram o “território” da Ku Klux Klan e testemunharam o preconceito com a população negra. Tudo exposto de forma intensa e minuciosa.
Enquanto viajavam, escreviam suas matérias, que eram transmitidas por telefone, altas horas da noite, para Moscou. Os textos, ditados para a redação do Pravda, foram publicados paulatinamente em 11 edições. Até a revista Time se interessou pela aventura, imprimindo em suas páginas, naquele período, o artigo “Soviet Portrait of America”.
Strelnikov permaneceu como correspondente em Washington nos anos seguintes e ainda fez mais um giro de carro pelos EUA, desta vez em 1973. Estados Unidos de costa a costa foi lançado em 1975, incluindo belas ilustrações do premiado cartunista e artista gráfico Ivan Maksimovich Semionov, que com seu traço original representou com elegância os personagens e os cenários referidos na obra.
Quando se fala em narrativas de viagem pela “América”, em geral se pensa nos clássicos como Jack Kerouac e seu On the Road, Henry Miller e The Air-Conditioned Nightmare e John Steinbeck com Travels with Charley. Mas, quem sabe, vale a pena ler também os apontamentos produzidos pelos cronistas soviéticos. Mesmo que não tão conhecidos, eles mostram um olhar distinto e uma dimensão diferente da realidade ianque, com todas as suas contradições, idiossincrasias, preconceitos e enorme diversidade cultural.
***
Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. Seu livro mais recente, Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, 2016), lhe rendeu o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano e o Prêmio Jabuti de Melhor Livro na categoria Biografia. Pela Boitempo, também publicou Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010), do romance Cansaço, a longa estação (2012) e da coletânea Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado em conjunto com Lincoln Secco. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
Deixe um comentário