A grande tarefa do marxismo é o sexo

Ou “Entre Stálin, Trótski, a Coreia do Norte e a lésbica bolsonarista: um divã para a esquerda revolucionária”

Por Marília Moschkovich.

Entre acirradas tensões internas, a esquerda brasileira fechou o ano de 2019 – ano I de um novo regime burguês proto-fascista no país, ano XI da última grande crise cíclica do capitalismo global – na urgência de rever alguns ou muitos de seus principais limites. O limite da social democracia com roupagem vermelha, o limite da crença liberal nas instituições democráticas burguesas, o limite da tática na atuação cotidiana dentro e fora das redes sociais, o limite do processo eleitoral burguês, o limite do sindicalismo em sua atual configuração, e daí em diante. Entre eles, em especial para a esquerda revolucionária, talvez o mais importante limite a ser transposto seja o limite político e material imposto pelos discursos sobre as experiências socialistas. Nos últimos meses, os debates e várias tensões em torno do lançamento da revista Jacobin no Brasil e da homenagem da câmara municipal carioca a Kim Jong-un mostraram algumas contradições que precisam ser superadas neste século com urgência. Logo em seguida, a reação de diversos grupos diante da agressão homofóbica sofrida por uma militante bolsonarista lésbica reafirmou da mesma maneira um prenúncio nem sempre óbvio: enquanto se gasta energia com autocríticas ultrapassadas, ignora-se, tal qual um paciente que resiste ao processo analítico, a autocrítica pendente dos séculos anteriores. A grande tarefa do marxismo é o sexo.

Um dos maiores desafios teóricos da esquerda e, em especial, dos marxistas, em nosso tempo, é pensar o sexo, as práticas sexuais, a sexualidade, de maneira revolucionária e por meio do materialismo dialético. Mais ainda: reestruturar as próprias relações táticas e políticas no campo da esquerda, de fato, a partir dessa compreensão. Esse trabalho precisa ser coletivo, minucioso. Cumpre quase uma função analítica, fosse possível colocar o acúmulo, as pessoas, as práticas, movimentos, partidos, instituições – quer dizer, colocar a própria história – num divã.

Comunistas e socialistas foram historicamente alvo de pressões diversas por trazerem esse tipo de debate à tona – a própria Pagu, ao publicar Parque Industrial enfrentou tensões de um PCB que à época era marcadamente obreirista; Alexandra Kollontai relata em sua autobiografia a resistência que suas visões revolucionárias sobre sexualidade e casamento provocavam na União Soviética; Lênin repreendeu Clara Zetkin por coordenar, em grupos de mulheres na Alemanha no início do século XX, discussões de questões relativas a seus casamentos; tampouco é segredo que a vida de pessoas LGBT em países socialistas (assim como nos países capitalistas das mesmas épocas) não era exatamente um mar de rosas no que dizia respeito à sua sexualidade. Embora esses problemas sejam comumente atribuídos aos limites sociais e culturais das respectivas épocas, esse fator não é suficiente para compreender com minúcia como de fato os socialistas e comunistas foram levados a reproduzir de maneira acrítica certas violências enquanto se opunham a outras para com esses mesmos grupos.

Essas tensões podem ser explicadas e entendidas de forma um pouco mais complexa quando observamos as relações sociais em diferentes países, sociedades e épocas a partir do século XIX, mas também quando observamos o acúmulo de reflexões e pesquisa sobre o tema de maneira geral (e não apenas entre socialistas e comunistas), com uma perspectiva científica, nesses diferentes contextos, épocas e sociedades. Os socialistas e comunistas, afinal de contas, debatem e estudam a partir do que é produzido até sua época, assim como politicamente se engajam nas questões latentes da classe em cada época – o que também varia histórica e culturalmente. Seria um anacronismo sem sentido esperar ou exigir que fosse diferente apenas por se tratar de socialistas e comunistas; seria, a bem da verdade, um idealismo pressupor que a mera tomada de consciência revolucionária sobre a classe a que se pertence automaticamente reorganizasse todas as relações sociais em torno de outros sistemas de exploração que se associam à exploração de classe (e que operam a partir do simbólico, como o sistema de Gênero); seria, por fim, um economicismo tacanho imaginar que a retomada dos meios de produção pela classe trabalhadora desembocaria sempre e necessariamente em novas relações sociais quanto ao gênero e à sexualidade.

Muito do que hoje associamos como pautas necessárias da esquerda socialista – como a inclusão de pessoas LGBT, de mulheres e da questão racial e colonial quando pensamos na diversidade do proletariado – apenas ganharam esse espaço de legitimidade no final do século XX. Embora os processos que resultaram nesse espaço ganho (mas não definitivamente conquistado, vale lembrar) sejam extensos, chama a atenção o peso do feminismo e do próprio movimento de trabalhadores em como as pautas LGBT e relativas a direitos sexuais e reprodutivos foram delineadas mesmo fora do contexto do socialismo e do marxismo. O marxismo foi o epicentro de uma relação dialética que construiu os estudos de gênero, e os estudos de sexualidade, assim como os movimentos feminista, LGBT e de trabalhadores, sobretudo ao longo do século XX. Como propôs Amanda Palha em seu artigo no dossiê “Marxismo e lutas LGBT” da revista Margem Esquerda, trata-se agora de realizar a operação inversa. Diante de uma separação nos caminhos desses movimentos e naqueles trilhado pela esquerda revolucionária, o que esta última tem a aprender (e, com o aprendizado, transformar estruturalmente em suas práticas) com as bichas, travestis, mulheres que não são “parte” da classe trabalhadora, mas a classe trabalhadora como um todo?

De maneira mais dialética do que em geral a esquerda revolucionária, os movimentos do campo do gênero (escolho chama-los assim, uma vez que o Gênero é, em última instância, o sistema simbólico que regula as práticas corporais tendo em vista a arena reprodutiva – ou seja, o domínio da sexualidade, do desejo, das práticas sexuais e até mesmo do parentesco e da família, todos têm cruzamentos centrais com o sistema de gênero) enfrentaram política e teoricamente o real. As categorias negativas que tensionam e escapam à posição – como a bissexualidade, a transgeneridade, o não-binarismo de gênero, a impossibilidade de definir “mulher”, as práticas BDSM – foram e são grandes questões estruturantes do feminismo e do movimento LGBT em seus espaços revolucionários. Assim como a racialidade, as existências negras, os desejos marginais e, enfim, tudo aquilo que nega e foge à lógica, à continuidade da norma; o que se quer anti-norma; o que exige uma dialética que mobilize cada fibra e ossatura; dialética da boca para dentro. Embora essas tensões não tenham sido resolvidas em definitivo (claro) por esses movimentos, é notório que a disposição em observar e lidar com elas tem sido historicamente um motor de avanços na compreensão de como funciona o Gênero (sendo o conceito de gênero, inclusive, uma criação impulsionada por essa mesma força motriz). Essa é a dinâmica que tem faltado entre as práticas e análises da esquerda revolucionária de maneira geral.

Investe-se muita energia em defender ou atacar, criticar ou reivindicar a experiência de certos países ou outros, o legado histórico de tal figura ou outra, como se a experiência concreta (e o real) de nosso país, e o fazer do nosso tempo histórico estivessem resolvidos. O resultado é que as análises sobre a classe trabalhadora e quem ela é escapam por entre os dedos, e pelos espaços e pausas entre palavras nos discursos estruturados por chavões (chavão, a reificação do conceito). Como quando se repete à exaustão uma palavra até que ela perca o sentido. O que queremos dizer quando dizemos trabalhador? De quem estamos falando quando falamos em classe? As respostas a essas perguntas não podem ser dadas sem grandes revoluções poéticas, rítmicas e linguísticas. Por que tanta resistência em abandonar um universal quando sabemos, já, que universalidades não passam de singularidades em posição de poder? A classe trabalhadora não é em parte mulher, em parte LGBT; a classe trabalhadora é mulher, é LGBT, assim como é negra, e tudo o que isso implica. O homem cisgênero heterossexual branco é a minoria da minoria entre nossa classe – por que, então, trata-se as questões de gênero e a questão LGBT como “particularidades” de “parte da classe”? Trata-se de uma revolução epistemológica que nenhum grupo ou partido de esquerda conseguiu, ainda, incorporar; reestruturar as práticas, visões de mundo, análises, em torno dessa compreensão tão verdadeira sobre nosso tempo. O desafio em operar essa revolução é enfrentar, de uma vez por todas, a materialidade latente que nos grita (enquanto tapamos os ouvidos) que o sexo, ao produzir a vida, o corpo, produz também a mercadoria mais valiosa e indispensável do sistema capitalista: a força de trabalho. A tarefa revolucionária precisa ser, hoje, antes de mais nada, sexual.

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O mais recente número da revista semestral da Boitempo traz um dossiê de capa sobre “Marxismo e lutas LGBT”, coordenado por Lucas Bulgareli, com textos de Amanda Palha, Renan Quinalha, Rafael Dias Toitio e Isadora Lins França. A edição abre com uma entrevista exclusiva com a filósofa e ativista Judith Butler, e traz ainda textos de Angela Davis, Mario Mieli e Clara Zetkin, entre outros. O ensaio visual é do artista plástico Carlos Motta.

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Marília Moschkovich é socióloga, mestra e doutora em educação pela Unicamp, tendo trabalhado também no Museu de Antropologia da Universidad Nacional de Córdoba (UNC), na Argentina, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. Autora do posfácio à nova edição de A origem da família, da propriedade privada e do Estado (Boitempo, 2019), atualmente reside em Berlim onde é Research Fellow da Fundação Alexander von Humboldt em parceria com o festival de cinema Berlin Feminist Film Week, dedicando-se a pesquisa sobre não-monogamia, gênero e violência doméstica. Compartilha os resultados desse projeto em suas redes sociais e no podcast Libre, lançado no segundo semestre de 2019. Também é poeta (Gaveta, Urutau: 2017) e editora (Editorial Linha a Linha). Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), escreve e faz comentário político online desde 2010 (Blogueiras Feministas, Biscate Social Clube, Outras Palavras). No YouTube, Instagram, Twitter, Medium e outras redes sociais é @MariliaMoscou. Escreve mensalmente para o Blog da Boitempo, às terças-feiras.

3 comentários em A grande tarefa do marxismo é o sexo

  1. Allison Duarte // 10/01/2020 às 7:32 pm // Responder

    “A tarefa revolucionária precisa ser, hoje, antes de mais nada, sexual.” Ou seja, deixa o proletariado tomando no cu que isso é revolucionario.

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  2. Ennio Rafael Costa Lima // 14/01/2020 às 1:47 pm // Responder

    Preocupante esse tipo de texto, não que não seja uma luta, mas é final de fila. Talvez seja mais coerente quando se reside na Alemanha. Enquanto nós aqui temos que nos preocupar em quando estivermos trabalhando de bengala, não percamos um membro, esperando uma aposentadoria que vai demorar a chegar.

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  3. Gerson Costa // 15/01/2020 às 11:47 am // Responder

    Discordo retumbantemente dos companheiros acima; o convite de Marília é absolutamente pertinente: primeiro na admoestação à tão necessária dinamização da luta popular, trazendo exemplos tão vigorosos que a própria ordem capitalista se esmera diuturnamente em cooptar e recuperar (não passa um dia que a negritude alegórica e a diversidade de gênero não sejam exploradas pelo marketing); segundo, ou antes de tudo, pelo fato de que nosso horizonte emancipatório merece e precisa ser “total”, sob pena de não ser nada (e nosso acúmulo de fracassos revolucionários e reformistas não dá margem a tergiversação nesse ponto). Parabéns Marília, manda mais!

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