Essencialismos filosóficos e “ditadura do corona”: sobre Giorgio Agamben, mais uma vez

E se o pensamento, levado aos limites críticos, produzir um discurso que, se posto em prática, leva à morte em massa e penaliza as vidas mais vulneráveis? Continua sendo boa filosofia?

Por Yara Frateschi.

“Aos que se movem na política muito confiantes no caminho da reinvindicação de mais direitos, Agamben parece não ter mesmo nada a oferecer.”

Carla Rodrigues, Ana Carolina Martins, Caio Paz, Isabela Pinho e Juliana de Moraes Monteiro em “Agamben sendo Agamben: por que não?”.

Os textos de intervenção de Giorgio Agamben sobre a crise do coronavírus – parcialmente publicados em Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia – têm provocado intensas discussões entre intelectuais de áreas diversas e movimentado a comunidade filosófica brasileira. O meu artigo “Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia” suscitou diversas objeções, algumas nervosas e pedantes, outras genuinamente interessadas na disputa de ideias e não de egos, como as seguintes: “Agamben sendo Agamben: por que não?”, de Carla Rodrigues, Ana Carolina Martins, Caio Paz, Isabela Pinho e Juliana Moraes Monteiro; “Giorgio Agamben na Cidade de Deus”, de Ricardo Evandro S. Martins; “A filosofia pode manter vivas as tensões?”, de Ana Carolina Martins e “Agamben contra o neoliberalismo”, de Juliana de Moraes Monteiro.

Embora esses artigos sejam distintos no foco e dignos de serem abordados individualmente, proponho-me aqui a responder às objeções que compartilham contra as minhas proposições. São duas, fundamentalmente: (1) a objeção segundo a qual a filosofia de Agamben é mais potente para uma crítica das sociedades capitalistas contemporâneas do que eu estou disposta a conceder; (2) a objeção de que eu não teria compreendido o teor e o potencial crítico das reflexões do filósofo italiano sobre a crise do coronavírus, razão pela qual apressadamente o teria acusado de neoliberal e o comparado aos negacionistas da extrema direita, Jair Messias Bolsonaro, entre eles. A seguir procuro respondê-las.

O radicalismo e as raízes da crise

Aproveito a ocasião para explicitar algo que talvez eu não tenha feito com suficiente clareza no primeiro artigo. Estou de acordo a respeito da importância de nos colocarmos, desde já, alertas para o perigo da perenização das medidas de emergência que hoje adotamos (ou defendemos que sejam adotadas) para conter o contágio. Faz todo sentido pensar sobre esse perigo, refletir sobre os usos e os abusos das tecnologias de controle, ponderar como aquilo que hoje nos parece imprescindível para a sobrevivência poderá ser usado para impedir uma “vida politicamente qualificada” no futuro, para usar as palavras do próprio Agamben em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua.

O mesmo a respeito da ciência. Carla Rodrigues, Ana Carolina Martins, Caio Paz, Isabela Pinho e Juliana Moraes Monteiro lembram acertadamente que o século XX está repleto de exemplos nos quais a ciência se coloca a serviço de reforçar estereótipos negativos (vinculados às mulheres, aos negros, aos homossexuais) e a fornecer tecnologia para os campos de concentração. Ricardo Evandro S. Martins argumenta em termos parecidos e com razão: o fato de a ciência ter prestado serviço ao nazismo, é suficiente para nos mantermos desconfiados.

Estamos de acordo, portanto, que cabe à filosofia dedicar-se a evitar adesão acrítica à ciência e a qualquer outra forma de poder. Contudo, as concordâncias cessam aqui.

Diferentemente das minhas interlocutoras e dos meus interlocutores, não me parece que Agamben esteja suficientemente atento às trevas do presente (tarefa principal do filósofo, segundo ele mesmo) ao identificar a ciência como nova religião (Reflexões sobre a peste, cap. 4). Esse diagnóstico, com a abrangência que assume, deixa de considerar o extraordinário crescimento do negacionismo científico, muitas vezes combinado com água benta e propagado dos púlpitos. Também se exime de levar em consideração que o mesmo negacionismo científico, não raro, acompanha discursos reacionários nos costumes e neoliberais na economia, uma salada ideológica que ainda não compreendemos com clareza. Embora Agamben nos prometa “manter fixo o olhar nas trevas do presente”, ele olha apenas para o aspecto que interessa à crítica do biopoder e à manutenção do impulso vital da sua própria filosofia. Por isso, em seus textos de intervenção sobre a crise do coronavírus, ele não manifesta sinal de preocupação com o fato de que o negacionismo científico de certos governantes pode levar, e tem levado, milhares de pessoas à morte – as mais vulneráveis sobretudo.

Além do mais, admitir o perigo do aperfeiçoamento e da perenização das técnicas de controle social não significa dar assentimento à tese (previsível), avançada por Agamben no dia 22 de abril, de que o controle do isolamento social por telefones celulares “excede em muito toda forma de controle exercida sob regimes totalitários como o fascismo ou o nazismo”.

Agamben radicaliza no discurso, mas não vai às raízes da crise que enfrentamos. É possível e necessário admitir o perigo da consolidação das restrições atuais em dispositivos de controle permanentes sem precisar, para tanto, colar aos governos que monitoram o isolamento social a imagem do nazismo, esvaziar o perigo efetivo do contágio e tornar secundários os efeitos da disseminação do coronavírus. Na minha interpretação, os textos de Agamben sobre a invenção biopolítica da pandemia fazem justamente isso: tornam secundária a realidade de uma crise de dimensão sanitária, econômica, política e social que parece ter tudo menos uma solução fácil.

A tese segundo a qual o controle do isolamento social por telefones celulares “excede em muito toda forma de controle exercida sob regimes totalitários como o fascismo ou o nazismo” fere agudamente ouvidos com sensibilidade histórica e tende a perder de vista a monstruosidade inédita do nazismo. Devemos lembrar, contudo, que é coerente com a tese famosa de que o campo de concentração é o paradigma da política moderna1, que também parece não levar a sério o suficiente o que acontece em campos de concentração.

Os essencialismos de Agamben

Os artigos de Ana Carolina Martins e Ricardo Evandro Martins são enfáticos em defender a produtividade da teoria que vincula exceção e biopoder para pensarmos, por exemplo, a “democracia” brasileira. Especialmente, no caso de Ana Carolina Martins, para pensarmos a violência policial. Eu não discordo inteiramente deles nesse aspecto, e aceito que Agamben seja capaz de lançar, provocativamente, o nosso olhar para as exceções brasileiras e para os corpos matáveis (embora eu considere que Arendt e Butler o façam com mais acerto do que Agambem por não precisarem, para tanto, tornar os corpos dóceis).

Entretanto, o potencial crítico das reflexões do autor sobre a modernidade e a democracia contemporânea – inegável quando se dispõem a desvelar a autocompreensão narcísica da modernidade e a desmistificar um caminhão de ilusões das democracias capitalistas – tende a se perder ao desfazer as fronteiras entre democracia e totalitarismo, ao identificar o campo (de concentração!) como paradigma da política na modernidade e ao compreender o direito como congenitamente violento/excludente. Talvez o preço que Agamben pague pela crítica contundente à ideologia do progresso seja flertar com a da ruína, sendo que ambas são refratárias às contradições do presente e desenham diagnósticos que desmerecem as particularidades dos fenômenos, suas tensões e especificidades históricas, em nome de uma lógica ou de um processo aparentemente inexorável que cabe ao teórico desvendar.

O potencial crítico sucumbe à lógica, à inexorabilidade das forças que correm por trás das costas dos sujeitos e a um conjunto de essencialismos prescindíveis à filosofia política, como eu pretendo argumentar a seguir, em diálogo direto com as minhas interlocutoras e os meus interlocutores no caso Agamben.

O rio da biopolítica

Carla Rodrigues, Ana Carolina Martins, Caio Paz, Isabela Pinho e Juliana Moraes Monteiro defendem que a crítica de Agamben às democracias capitalistas espetaculares lança luz sobre a radical eliminação dos excluídos “sem apagar a diferença entre eles”. Eu não encontro amparo textual para essa afirmação, uma vez que a caracterização da democracia espetacular está baseada justamente no retrato de uma sociedade uniforme, inerte, portadora de um mesmo conjunto de opiniões e comandada pelo domínio integral da mídia. Nas palavras de Agamben: “A democracia contemporânea é uma democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar” (O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo [Homo Sacer, II], Boitempo, p. 278).

Este diagnóstico é conquistado no Homo Sacer II, por uma genealogia da governamentalidade que vai encontrar “nas doxologias e aclamações litúrgicas, nos ministérios e hinos angélicos a compreensão da estrutura da máquina governamental do Ocidente…” (O reino e a glória, p. 10, grifo meu). É sobre “O Ocidente” que fala Agamben, lançando mão do método que as minhas interlocutoras e os meus interlocutores avaliam como um instrumento potente para impedir o congelamento do pensamento. Da minha perspectiva, está congelado o pensamento que elabora diagnósticos totalizantes e sem sensibilidade histórica sobre “O Ocidente”, “A Sociedade”, “A Democracia”; está congelado o pensamento que insiste no apagamento das lutas, conquistas e eventos modernos e contemporâneos que contestam a definição da democracia espetacular e a teoria do estado de exceção.

Ricardo Evandro Martins me contesta afirmando que Agamben não é sociólogo ou cientista político, mas “está procurando o sentido ontológico do agir político”. A questão é saber se Agamben é feliz em elaborar uma ontologia filosófica na contemporaneidade sem reabilitar metafísicas fantasiosas e essencialismos estéreis. Ricardo Martins pensa que sim. Eu desconfio que não, pois, para isso, seria preciso uma atenção aos particulares que Agamben efetivamente não têm, como fica patente na famosa passagem:

“….antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século [século XX], o rio da biopolítica que arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo, mas contínuo. É como se, a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao poder soberano do qual desejariam libertar-se. […] E apenas porque a vida biológica torna-se por toda a parte o fato politicamente decisivo, é possível compreender a rapidez, de outra forma inexplicável, com a qual no nosso século as democracias parlamentares puderam virar estados totalitários e os estados totalitários converter-se quase sem solução de continuidade em democracias parlamentares.

Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007), p. 127-8.

Crítico contundente da ilusão moderna no progresso, Agamben troca seis por meia dúzia: no lugar do progresso, entra o “rio biopolítica”, um processo aparentemente inexorável, de significado único, que nos conduz para a ruína. O ar metafísico das filosofias da história continua no ambiente, o que muda é a direção para a qual caminha a humanidade. Tal qual os filósofos do progresso, Agamben não se deixa interessar pelas sutilezas do mundo fenomênico e da história que atrapalhariam a continuidade do movimento. A sentença é: todos os direitos que os indivíduos conquistam preparam “a cada vez, uma tácita, porém crescente, inscrição de suas vidas na ordem estatal”. Talvez seja o caso de considerarmos que a genealogia praticada como método por Agamben seja, no final das contas, pura teleologia (para outra abordagem dos resquícios metafísicos na filosofia de Agamben vale conferir o artigo “De onde fala a Filosofia”, de Filipe Campelo).

Para ser arrastada pelo rio da biopolítica, a sociedade contemporânea – melhor seria com maiúscula, Sociedade Contemporânea – precisa assumir a forma de um corpo compacto composto de sujeitos dessubjetivados desprovidos de “identidades reais”, que, quando muito, sustentam “a máscara hipócrita do bom cidadão democrático” (O que é um dispositivo?”). Quais distinções entre sujeitos resistem à atitude do filósofo que lhe confisca, supostamente por um diagnóstico fiel, as suas “identidades reais”? Noto que a arrogância com a qual Agamben se refere à sociedade italiana por deixar-se sentir facilmente empestada vem de longe, é apenas uma atualização do desprezo que ele devota há algumas décadas a essa massa compacta formada por corpos dóceis.

São dóceis os “corpos” que, nas periferias e favelas do Brasil, desempenham o papel que o Estado se recusa a desempenhar no combate ao coronavírus? Como incluir, neste retrato da sociedade, as Presidentes de Rua de Paraisópolis? Ana Carolina Martins, no belo artigo “A Filosofia pode manter vivas as tensões?”, assume que Agamben pode ter errado na questão da crise do coronavírus, mas continua a ser um autor importante por tensionar com os discursos hegemônicos. Sim, mas o faz paralisado em uma única perspectiva, pois a sua teoria só nos ajuda a pensar as periferias e as favelas como territórios de exceção, não de resistência, luta e agência. Para lembrar Marielle Franco, as favelas também são “locais de potência”2.

Os agentes e as resistências se afogam no rio da biopolítica, algo perfeitamente coerente com a tese central da filosofia política de Agamben, que Carla Rodrigues explicita logo na abertura do seu prefácio ao livro Reflexões sobre a peste, qual seja: “toda política é sempre biopolítica”. Se a biopolítica implica justamente a “animalização do homem posta em prática através das mais sofisticadas técnicas políticas” (Homo sacer, p. 11, grifo meu), a teoria não pode estar senão interessada no “homem animalizado”. É o homo sacer o “sujeito” desta filosofia e, assim, o potencial critico – que poderia haver em detectar, nesta figura emprestada do direito romano, aqueles que estão fora da jurisdição humana – se esvai em diagnósticos totalizantes produzidos por uma curiosa reabilitação contemporânea da filosofia do sujeito.

Agamben e o Leviatã

É também conforme a tendência aos diagnósticos totalizantes, que o Estado é sempre e necessariamente “máquina governamental”. O Estado é de exceção, como revela a fórmula hobbesiana do pacto social, que permite ao soberano a conservação do seu direito natural e, portanto, de “fazer qualquer coisa em relação a qualquer um que se apresenta então como direito de punir” (Homo Sacer, p. 13, grifo meu). Agamben recorre a Hobbes para contestar o mito do contrato social – das teorias da soberania popular e da democracia participativa –, para revelar o vínculo necessário entre estado e exceção e explicar que os cidadãos, nos seiscentos, hoje e sempre, são súditos que estão na fronteira entre o lobo e o homem, no limiar, na eminência da exceção.

O que tem de potencial critico aí – a ideia do limiar, talvez – se esvai, novamente, no absolutismo da sentença segundo a qual, do ponto de vista da soberania, “autenticamente política é somente a vida nua”. Agamben precisa disso para poder afirmar que todas as conquistas em termos de direitos, liberdades e espaços políticos pelos cidadãos – ontem, hoje, sempre – são meramente ilusórias. Toda resistência e conquista significa, cedo ou tarde, reinserção na dominação. O que ele pretende com essa tese é tornar o Estado de Direito uma quimera e a democracia, uma ilusão. Uma vez que o Estado é, por “natureza”, de exceção, resta ao filósofo imaginar uma política não estatal (muito embora, ao ter confiscado a identidade e a agencia dos sujeitos contemporâneos, ele nos tenha privado dessa possibilidade).

Nota-se, portanto, que é a lógica interna na teoria que leva Agamben a adotar, na crise atual, um discurso a respeito do Estado que nós vemos sair das bocas neoliberais, que também adotam o argumento ladeira abaixo que identifica o Estado com o Leviatã. É claro que as intenções são diversas – não quero negar isso de maneira alguma –, mas podemos nos perguntar se as consequências não seriam as mesmas caso o discurso de Agamben, neste momento, fosse posto em prática. E está sendo.

Causou muita reação a minha afirmação de que Agamben, nestes textos sobre a crise do coronavírus, apresenta um “lapso liberal”, ou melhor, “neoliberal”. Em “Agamben contra o neoliberalismo”, Juliana Moraes mostra de maneira incontestável que ele é de fato um crítico do liberalismo e do neoliberalismo (assim como Evandro Martins). O problema é, novamente, o alcance dessa crítica, pois se, por um lado, Agamben antagoniza com o neoliberalismo e é crítico do capitalismo, por outro lado, ele demoniza o Estado com uma contundência tipicamente neoliberal. Para Moraes e Martins, eu teria sido injusta com Agamben, afinal, Marx também fez a crítica ao Estado e nem por isso o considero um neoliberal, claro. No entanto, livrar Agamben da minha objeção aproximando-o de Marx no tema da crítica ao Estado só faz sentido se estivermos aguardando que, no futuro próximo, a revolução termine com a luta de classes e torne o Estado prescindível. Se a revolução não acontecer antes da crise do coronavírus acabar, precisaremos, e muito, do Estado.

Além do mais, comparar Agamben com Marx é algo que deve ser feito com muita cautela, pois, diferentemente do italiano, o alemão levava à sério as lutas da sua época: tinha um olho na opressão e o outro nos agentes de uma possível transformação social.

Dois pesos e duas medidas?

Agamben compartilha com a extrema direita brasileira e com o seu ideólogo a tese de que a pandemia é uma invenção com pretensões ditatoriais. A “ditadura do corona” está na boca de Agamben, de Ernesto Araújo e de Jair Bolsonaro.

Com intenções distintas, deve-se admitir, mas as intenções não apagam o fato de que o filósofo compartilha com os negacionistas da extrema direita a disposição para contestar não apenas a ciência quando não o contempla. No dia 13 de abril, ele ainda acusava os italianos de aceitarem restrições às suas liberdades e suspenderem suas relações normais por um risco que não era possível precisar: “Consequentemente, aceitamos, apenas em nome de um risco que não era possível precisar, suspender de fato nossas relações de amizade e de amor, porque nosso próximo tinha se tornado uma possível fonte de contágio” (Reflexões sobre a peste, cap. 6, “Uma pergunta”).

120 mil mortos (naquela ocasião) não eram suficientes para conferir ao risco alguma precisão? Hoje passam dos 360 mil. Continuam insuficientes?

O filósofo não precisa empurrar milhares de corpos para baixo do tapete e romper com a verdade factual para colocar o seu pensamento em movimento e alertar para as ameaças do biopoder.

Com sincero respeito às minhas interlocutoras e aos meus interlocutores – dos quais quero poder divergir mantendo convergentes os afetos –, me surpreende genuinamente que pareçam não se incomodar com as semelhanças entre o discurso de Agamben e o de Bolsonaro. Contentam-se em sublinhar as diferenças: Bolsonaro “prega o fim do isolamento social em nome do que vamos chamar de atualização da fórmula da biopolítica”, ao passo que Agamben estaria “propondo pensar os significados de vida e de morte diante do novo coronavírus e as exceções que o acompanham”, dizem as autoras e o autor de “Agamben sendo Agamben: por que não?”.

Isso sugere que o filósofo faz bem ao sustentar publicamente aquele discurso a respeito da pandemia – invenção, exagero, risco impreciso – porque ele é crítico do biopoder, diferentemente de Bolsonaro, que sustenta o mesmo discurso, mas em nome do biopoder. Talvez o argumento seja o de que a intenção de um é diferente da intenção do outro; um é neoliberal, o outro não; um é de direita, o outro seria esquerda; um quer reforçar o biopoder, o outro quer criticar o biopoder.

Se for este o argumento (não sei se é, mas julgo importante que os defensores de Agamben esclareçam), então teremos que aceitar que o conteúdo do discurso é secundário em relação à intenção do falante. Eu não aceito esse tipo de relativismo na política e na filosofia prática, pois vale lembrar que tanto nas mãos da direita, quanto de certa esquerda, o argumento das “verdadeiras intenções” serviu de justificativa para práticas contrárias aos direitos humanos, por vezes assassinas, muitas vezes machistas e tantas outras, racistas.

Em seu prefácio a Reflexões sobre a peste, Carla Rodrigues afirma que na boa filosofia “….não se trata tanto de estar certo ou errado, mas de levar o pensamento a limites críticos que são, por isso mesmo, tão necessários em tempos de crise”. E se o pensamento, levado aos limites críticos, produzir um discurso que, se posto em prática, leva à morte em massa e penaliza as vidas mais vulneráveis? Continua sendo boa filosofia?

Aos que se movem confiantes no caminho dos direitos

Tomo emprestada de Carla Rodrigues, Ana Carolina Martins, Caio Paz, Isabela Pinho e Juliana Moraes Monteiro as palavras que servem de epígrafe a esta tréplica, pois explicitam com uma clareza ímpar – que eu não fui capaz de atingir sozinha – a diferença mais significativa entre as nossas abordagens filosóficas, e da qual emergem as nossas outras discordâncias, tanto a respeito das potencialidades críticas da filosofia política de Giorgio Agamben, quanto a respeito das reflexões do filósofo sobre a pandemia. A passagem:

“Aos que se movem na política muito confiantes no caminho da reivindicação de mais direitos, Agamben parece não ter mesmo nada a oferecer. Já entre os pensadores críticos cuja pretensão é incluir o direito de criticar os direitos, Agamben tem sido um interlocutor fundamental.”

Efetivamente, eu aposto no caminho dos direitos e penso que esse seja um dos maiores desafios das democracias capitalistas contemporâneas, brutalmente desiguais e que promovem, sistematicamente, a morte jurídica dos grupos sociais mais vulneráveis. No limite, é por não conceber a possibilidade da democracia sem direitos e a correção das desigualdades sem “mais direitos” que, na minha interpretação, uma filosofia política orientada obsessivamente para capturar o vínculo entre estado de exceção e biopoder não está à altura dos desafios contemporâneos.

Por não desvincular democracia e estado de direito, não me emociona a ideia de pensar para além do Estado e tampouco a expectativa de um dia “poder brincar com o direito” (Estado de exceção [Homo Sacer, II, 2], p. 98). Não remeto ao direito a captura dos corpos, mas ao capitalismo, ao racismo, ao sexismo, à LGBT+fobia. A questão com o direito é o seu uso (ou abuso) e não a sua forma, da qual nada indica que poderemos prescindir enquanto formos não apenas desiguais, mas também diferentes.

Se eu penso que as reflexões de Agamben sobre a invenção da pandemia não alcançam nem de longe as dimensões da crise atual é justamente porque não revelam preocupação com o aprofundamento das desigualdades atualmente existentes e com o impacto da crise sobre os que não têm direito a ter direitos (sequer o direito ao isolamento social). Agamben está tão preocupado em extrair as conclusões biopolíticas da tese da invenção da pandemia que se torna refratário ao fato de que a crise afeta os grupos sociais de maneiras distintas, ao fato de que os mais afetados e os que morrem mais são justamente aqueles que não têm efetivamente direito ao saneamento básico, direito a uma renda mínima que os permita ficar em casa, direito a terra, moradia, sistema de saúde público e gratuito. São esses que precisam ainda mais do Estado que Agamben transformou no autor da “invenção” que já matou milhares de pessoas. Embora Ana Carolina Martins, em “A filosofia pode manter vivas as tensões?” defenda que o ponto fundamental da filosofia de Agamben seja lançar luz sobre o modo como as democracias contemporâneas operam a radical eliminação dos excluídos, os textos sobre a crise do coronavírus não versam sobre os excluídos, mas sobre essa entidade metafísica, “A Massa Compacta e Inerte”.

É curioso notar que Agamben descreve a sociedade contemporânea – paralisada, controlada pelo medo, passiva, incapaz de discurso e ação – como Platão descreveu os habitantes da caverna: acorrentados diante de uma imagem, presos às falsas opiniões, incapazes de se comunicar uns com os outros. Nisso ele continua a soar o acorde fundamental com o qual Platão inaugurou a filosofia política ocidental colocando, de um lado (embaixo, mais precisamente), os homens comuns desprovidos de pensamento, discurso e ação e, de outro, o filósofo, que paga pela verdade o preço de “retira-se do mundo dos vivos” e perder o sensus communis3.

Notas

1 Desenvolvi mais demoradamente este argumento em Liberdade, Cidadania e Ethos Democrático: estudos anti-hobbesianos (São Paulo, Alameda, no prelo).
2 Marielle Franco, UPP: a redução da favela a três letras (São Paulo, n-1 edições, 2018), p. 26.
3 Cf. Hannah Arendt, A vida do espírito (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002), volume 1, capítulo 2.

Construindo movimentos: uma conversa em tempos de pandemia, de Angela Davis e Naomi Klein

No auge da pandemia do novo coronavírus, duas reconhecidas ativistas feministas de esquerda, Angela Davis e Naomi Klein, se reuniram virtualmente para uma conversa sobre conjuntura, capitalismo, autoritarismo e desigualdade. Organizado pela Rising Majority, o encontro contou com a participação de Thenjiwe McHarris (Blackbird), Cindy Wiesner (Grassroots Global Justice), Maurice Mitchell (Working Families Party) e Loan Tran (Southern Vision Alliance). Lançada como novo volume da coleção Pandemia Capital, a transcrição desse histórico encontro pode ser encontrada agora em português.

A covid-19 seria mesmo democrática como muitos afirmam? Nessa conversa, as autoras argumentam que o foco da doença atinge especialmente os mais pobres e vulneráveis, como negros e mulheres, mesmo em países mais ricos, como os Estados Unidos. A atuação de líderes autoritários que utilizam a pandemia como manobra de garantia de poder também é tema no debate, com destaque para Viktor Orban, Jair Bolsonaro, Benjamin Netanyahu e Donald Trump.

“Estou preocupada com o fato de que, no Brasil, a situação é muito pior que aqui – sem falar nas semelhanças entre os dois presidentes. Mas eu acredito que nós, dos Estados Unidos, podemos encontrar em lugares como o Brasil e a África do Sul vozes que almejem sair criativamente desta crise”, diz Angela Davis.

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Reflexões sobre a peste, de Giorgio Agamben

Novo lançamento da coleção Pandemia Capital, Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia, do filósofo italiano Giorgio Agamben, é uma coletânea de seis artigos escritos entre 26 de fevereiro e 13 de abril de 2020.

Os textos acompanham a escalada da doença na Itália, desde as primeiras descobertas sobre a covid-19 até o pico da doença no país. O filósofo traça um paralelo entre as medidas de emergência motivadas pela pandemia, especialmente o distanciamento social, e as formas totalitárias de governo, chamando atenção para “a crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo”. No centro das preocupações de Agamben está “uma sociedade que sacrificou a liberdade pelas assim chamadas ‘razões de segurança’ e, por isso, está condenada a viver em um perene estado de medo e de insegurança”.

O posicionamento controverso desse que é um dos grandes críticos da contemporaneidade desperta a incômoda reflexão sobre o que estamos dispostos a renunciar diante do risco da doença.

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O Blog da Boitempo apresenta um dossiê urgente com reflexões feitas por alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos, nacionais e internacionais, sobre as dimensões sociais, econômicas, filosóficas, culturais, ecológicas e políticas da atual pandemia do coronavírus. Confira aqui a página com atualizações diárias com análises, artigos, reflexões e vídeos sobre o tema.

* * *

Yara Frateschi é professora livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp e pesquisadora do CNPq. Para a edição n. 33 da Margem Esquerda, revista semestral da Boitempo, entrevistou, junto com Carla Rodrigues e Maria Lygia Quartim de Moraes, a filósofa estadunidense Judith Butler. Colabora com o Blog da Boitempo e a TV Boitempo esporadicamente.

5 comentários em Essencialismos filosóficos e “ditadura do corona”: sobre Giorgio Agamben, mais uma vez

  1. Yara, a ideia de biopolitica tem uma abertura para as políticas voltadas à sobrevivência daqueles que, fora da democracia social, eram deixados morrer. Em Foucault e em Agamben não há apenas a possibilidade de pensar a biopolítica como cerceamento de liberdade, mas também como a liberdade para sobreviver.

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  2. Yara, embora eu não endosse a abordagem das suas interlocutoras(o), em alguns momento parecem dopadas de pós-estruturalismo; sua posição frente ao Estado de direito não seria tão liberal quanto o que diz identificar na filosofia do Agamben?

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  3. Professora Yara,
    Sugiro-lhe reler Pierre Clastres

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  4. Rafael Drater // 07/12/2021 às 4:57 am // Responder

    Parabéns à Yara. Ficou claro nessa história, para quem leu os textos, que Agamben tentou encaixar, à forceps, a sua teoria à realidade (mal interpretada, aliás) e que seus defensores tentaram, ainda mais forçosamente, salvar o texto surpreendentemente negacionista do italiano, encaixando-o em um “Agamben ideal”. Mais bonito seria a retratação (dele e dos seguidores).

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  5. Olá, Yara. Bom, adorei seu texto apesar de discordar em alguns momentos. Como alguns comentários, eu compartilho certa ideia “positiva” e “negativa” do Estado. Sou adepto de certa abordagem eclética da filosofia, talvez eu não tenha nada a lhe oferecer como sugestão por que sou apenas um estudante, e como estudante me sinto muito curioso e propenso a considerar varias versões sobre o problema, como bem ensinaram meus professores da faculdade de filosofia da uece, fui “adestrado” num curso de filosofia social e politica essencialmente, para mim é natural aceitar necessariamente uma postura dialética sobre o mundo e sobre as ideias, ortodoxa ou heterodoxa, ambas são formas complementares junto da “lógica”. Assim sendo considero a filosofia de Agamben muito mais voltada a certa esfera metafisica realmente, por que os interlocutores do italiano são influenciados por certa tendência esotérica do mundo, realmente uma visão que se afasta da realidade. Mas o que esperar de um filosofo com formação clássica como a dele? Ele jamais iria afirmar que o “pensamento critico brasileiro” teria algo a oferecer para a questões dele. Atualmente estudo alguns textos dele intermediados por Walter Benjamin, para mim Agamben repete de uma forma “propositalmente equivocada” certas ideias de Benjamin como de outros autores e autoras, enfim o que poderíamos chamar de monstro conceitual, que ao meu ver é uma tendência desse ecletismo metodológico se poderíamos chamar assim, contemporâneo. Sua critica é ótima, mas permanece na esfera positiva, você oferece até outra abordagem sobre o tema e tal, mas não sei se apenas uma critica é o suficiente, eu falo de uma reconstrução dialética, na qual seja possível pensar movimentos políticos e sociais reais como “fato” para somente dai partir para uma “teorização”, que é dependente do arsenal teórico já preexistente etc etc biopolitica é uma ideia uma hipótese diante de centenas de outras formas de pensar os fenômenos, nós como cientistas da interpretação e do rigor do conceito, no mínimo, deveríamos nos com as questões levantadas por você, por que são urgentes, e justamente agora quando o mundo novamente entra em caos pandêmico, mas ao mesmo tempo, simplesmente por que são “discursos” eles não se excluem e muito pelo contrario, se complementam, é como se você estivesse apenas reformulando as questões postas por Agamben a partir da sua perspectiva, algo absolutamente normal, embora sua conclusão seja positiva e realmente também pareça semelhante a certa ala “ilustre” da direita liberal, neoliberal, utilitarista, progressista etc etc, não essa negacionista efetiva no Brasil, logicamente. Não sei se deixei bem explicito: adorei seu texto, uma boa dose de realismo especulativo.

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