Renata Souza e a resistência à militarização do cotidiano
Muniz Sodré comenta “Cria da favela”, de Renata Souza. A obra, muito mais do que um relato individual, apresenta-se como um “contrafogo” favorável aos setores periféricos.
Por Muniz Sodré.
Ao ser lançado como livro, fruto da tese de doutoramento de Renata Souza, Cria da favela era principalmente um relato de vivências no interior de um complexo favelado, com um pano de fundo militante: a resistência à militarização do cotidiano, que servia de pretexto para o combate a ilegalismos. Agora, em nova edição, o livro introduz o conceito de feminicídio político para categorizar a execução, em 14 de março de 2018, da vereadora Marielle Franco, favelada, feminista e negra, com quem Renata trabalhou durante vinte anos.
A obra reflete a trajetória exemplar de uma jovem também favelada, feminista e negra, que “ergueu a voz e a cabeça” até a visibilidade pública como deputada estadual de votação muito expressiva – a mais votada da esquerda – nas eleições de 2018, sendo, em seguida, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, e agora, candidata a prefeita do Rio. É igualmente um caso de passagem do discurso ao ato.
Mas a história de vida contida em Cria da favela é muito mais do que o mero relato de uma ascensão individual. Ela constitui, na verdade, uma espécie de “contrafogo” favorável aos setores periféricos, que vêm avançando de forma lenta na caminhada para a centralidade cívica, porém ainda estão “fora do acontecimento” público. Essa movimentação é politicamente rizomática na já esboçada luta social pela extensão do processo democrático à totalidade societária.
Nunca é demais frisar que a indigência das representações populares nos aparatos decisórios de Estado compromete o exercício da democracia e abre espaço a anacronismos e/ou regressões autoritárias. As tiranias, apregoadas como alternativa ao desastre social, desenham-se com liberdade no horizonte das expectativas de vida das classes economicamente subalternas. Cria da favela, livro associado à militância político-social de Renata Souza, é um ponto de partida reflexivo para a movimentação de quem esteja decidido a erguer a voz e a cabeça.
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Partindo do contexto da instalação de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) nas favelas do Rio de Janeiro para “salvaguardar” a segurança da cidade durante megaeventos esportivos (como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016), Renata Souza acompanha a experiência cotidiana na favela da Maré e demonstra como a política de “pacificação” desconhece a dinâmica comunitária da favela.
A partir da hipótese de um espírito comunitário na Maré, a autora investiga iniciativas independentes de comunicação e cultura dos jovens mareenses (de que são exemplos o jornal O Cidadão, a página virtual Maré Vive, o aplicativo Nós Por Nós, o bloco Se Benze Que Dá, o Sarau da Roça e a feira de trocas Maré 0800), além de suas vivências pessoais como cria da favela, para mostrar uma juventude que resiste culturalmente para existir socialmente.
A obra, publicada pela primeira vez em 2018, é uma adaptação da tese de doutorado da autora sobre a resistência da juventude negra à militarização da vida. O livro traz ainda um conjunto de textos escritos em homenagem a Marielle Franco, com quem a autora trabalhou e conviveu por cerca de vinte anos, sendo inclusive chefe de seu gabinete na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, até sua execução sumária, em março de 2018.
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“Segure firme na mão dessa intelectual negra e experimente não a exclusão, mas a riqueza que brota nas favelas país afora. O cotidiano de brutalidade e desatenção pelo Estado não é exclusividade da Maré; está no Brasil. Inspire-se com Renata Souza e reverencie Marielle Franco, homenageada na seção final como referência do povo que segue na luta, apesar dos pesares.”
– Flávia Oliveira, jornalista e conselheira da Anistia Internacional
“Renata é uma figura brilhante e experiente, como este livro prova. Trabalhou comigo por dez anos e foi chefe de gabinete da Marielle. Leitura obrigatória e urgente para todos que defendem os direitos humanos.”
– Marcelo Freixo, deputado federal
“Contra o ativismo direto do capital, Renata Souza aponta neste trabalho para as forças ativas da periferia. Povo é aqui o comum de todos.”
– Raquel Paiva, professora emérita da UFRJ
O livro de Renata Souza conta com orelha de Muniz Sodré e quarta-capa de Flávia Oliveira, Marcelo Freixo e Raquel Paiva.
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E-book à venda nas principais lojas do ramo:
Confira a live de lançamento de Cria da favela, com debate de Renata Souza e Flávia Oliveira, mediação de Talíria Petrone.
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Saiba mais:
Podcast Guilhotina (Le Monde Diplomatique): Guilhotina #13 – Renata Souza
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Muniz Sodré é jornalista, sociólogo e tradutor, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Escola de Comunicação. É um dos maiores estudiosos da comunicação e da cultura negra no Brasil.
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