Os militares, os mitos e suas armas
Parece que não se trata de um grupo de militares alinhado com o capitão e meia dúzia de generais beirando a aposentadoria e que se desgarraram do século XX ditatorial de nossa história. É um projeto neoliberal e da guerra colonial, em que o pacto racista e de morte de uma aristocracia estatal e burguesa se une ao modelo global do capitalismo de mercado.
Foto: Anderson Gabino
Por Edson Teles
Há certas histórias que ouvimos desde crianças. Têm aquelas que servem para nos assustar como a do “homem do saco” ou a da “loira do banheiro”; as que visam promover a esperança, como a de que vivemos no país do futuro ou, outra similar, a de que o Brasil é o país de um “povo alegre e brincalhão”; têm ainda as histórias políticas, tal qual a do mito da democracia racial ou o conto institucional da reconciliação e do consenso.
Sem dúvida, uma dessas histórias que reúne todas as qualidades das descritas acima é a de que os militares vão dar um golpe.
Afinal, ao menos desde o fim da Ditadura se difunde, com vistas a assustar os sujeitos da democracia, que os militares ficaram insatisfeitos com tal ou qual medida de governo ou com determinado protesto e ameaçam intervir na vida pública, a despeito do que lhes impõe boa parte da Constituição. Também se utiliza a história do golpe junto com os militares para alavancar projetos conservadores de “transformação” do país, como o fez o bolsonarismo, com ênfase na véspera das eleições de 2018.
Mas, claro, a história do golpe das Forças Armadas contra a democracia é também um evento político tradicional. Para fundar a República do Brasil ocorreu o golpe de Estado comandado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que viria a ser o seu primeiro governante. Em apoio ao ditador Getúlio Vargas, em 1937, as Forças Armadas fomentaram a primeira ditadura do século XX no país, o Estado Novo. (aliás, em 1945, por meio de um golpe dos militares, o mesmo governo foi deposto).
Após cerca de 18 anos tentando construir uma democracia, as Forças Armadas assumiram o papel central no Golpe de 1964, implantando a Ditadura Militar com o apoio das elites econômicas, das grandes empresas e do imperialismo norte-americano. Foram mais de duas décadas de um violento, sanguinário e corrupto regime governado por cinco generais do Exército brasileiro.
Para sair dessa enrascada, o país adota a “abertura lenta, gradual e segura” elaborada pelos próprios ditadores, ainda que um potente movimento social se expandisse em busca de uma democracia sem fome e com emprego e moradia para o povo.
Sem ter muito para onde correr, a nova democracia aceita esconder os militares das barbaridades produzidas na Ditadura e os protege no capítulo da Constituição que trata da segurança nacional e da segurança pública. A militarização desta segunda, entre outros fatores, seria nos anos 2000 a forma com que as instituições militares ganharam novamente a cena pública, espalhando o mito de proteção por meio da doutrina militar de segurança pública.
Primeiro com a missão de paz no Haiti, na qual se experimentou transformar a intervenção do Estado nos territórios vulneráveis para o modo da guerra. Com a nova lei de encarceramento do tráfico (2006) e a expansão da rede de presídios federais e dos estados como São Paulo e Minas Gerais, o país abriu as portas para os passos seguintes. Surgem as intervenções via as assustadoras Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) e os acionamentos dos mecanismos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), na passagem da primeira para a segunda década deste século.
Sabem quando lodo do fundo do lago é o assentamento dos restos do que por ali já foi outra coisa, enterrando uma série de sobras e de seres em decomposição? Pois então, de certo modo, assim funcionou o trato da memória e da história da Ditadura e da presença dos militares na política.
Talvez por isso, quando foi instalada a Comissão Nacional da Verdade, os pactos com os cramulhões da Ditadura foram remexidos e vieram à tona por meio da ideologia do inimigo interno, sempre alimentada nos centros de poder das Forças Armadas. E se somou ao ressentimento de uma considerável parcela da população, com certo poder aquisitivo, que se remoía por ver pretos nas universidades, o povo pobre nos aeroportos, pessoas periféricas circulando em ambientes de consumo exclusivos do poder social branco. Além de todas as mudanças nos costumes heteronormativos, com avanços na pauta LGBTQIA+, na denúncia do feminicídio, do etnocídio e nas lutas antirracistas.
Era demais para o capitalismo colonial neoliberal. Foi como se o lulismo, ao mesmo passo em que garantia a manutenção de formas econômicas de exploração das desigualdades, tivesse liberado forças de transformação social que poderiam colocar em risco a ordem do capital.
O que o governo Bolsonaro expôs foi o fato evidente de que as Forças Armadas, enquanto instituição, têm um projeto de poder político no país. Sem a necessidade do clássico golpe dos tanques nas ruas (ainda que ele tenha sido mal encenado no 7 de setembro de 2021), os militares ocuparam setores estratégicos do Estado e promoveram a radicalidade das políticas de destruição dos direitos e das instâncias democráticas.
Recentemente a mídia divulgou a existência do documento “Projeto de Nação”, produzido por três institutos que reúnem oficiais das Forças Armadas e cujo lançamento contou com a presença maciça do setor, além do vice-presidente da República e do general chefe do Estado-Maior do Exército.
Trata-se de um plano de consolidação, a partir do governo militarizado, de uma administração do Estado paralela e permanente, autônoma em relação aos processos eleitorais e às normas de funcionamento das instituições democráticas. Isso tudo sem colocar tanques nas ruas. No programa de gestão das próximas décadas, evidencia-se o alinhamento com as políticas neoliberais: cobrança para utilização do SUS, fim da autonomia universitária, ocupação militar da Amazônia, entre outras medidas.
Há ainda a proposta de criação do chamado Centro de Governo (CDG), algo semelhante com o que tentaram recentemente fazer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), colocando as estruturas dos ministérios e das relações com os outros centros de poder (Legislativo e Judiciário) sob a tutela de militares.
O projeto se soma ao investimento na lógica da guerra, com as UPPs, intervenções, fortalecimento do mundo das armas, aumento do poder de atuação das polícias militares, aumento do sistema prisional e liberação do “excludente de ilicitude” para os agentes de segurança agirem sob o arrepio da Constituição. Junto a essas medidas, consolida-se o discurso de legitimação, com a guerra ao tráfico, a guerra contra a fome, a guerra contra a criminalidade, entre outras que se enquadram no modelo global da guerra pela paz e da guerra contra o terror (temos até mesmo a guerra contra o vírus, que liberou uma série de mecanismos de exceção nos diversos modelos de Estados de Direito).
Se todas essas histórias assustadoras, ficcionais e políticas acima fizerem um mínimo de sentido, somos forçados a ver aquilo que se mostra na ponta de nossos narizes. Sim, um cheiro que não é bom, mas que temos dificuldade para saber de onde vem. Contudo, temos a certeza de que há algo de podre.
Dessa forma, me parece que não se trata de um grupo de militares alinhado com o capitão e meia dúzia de generais beirando a aposentadoria e que se desgarraram do século XX ditatorial de nossa história. É um projeto neoliberal e da guerra colonial, em que o pacto racista e de morte de uma aristocracia estatal e burguesa se une ao modelo global do capitalismo de mercado.
O projeto se refere à estratégia de uma institucionalidade do Estado elaborada dentro da doutrina de segurança nacional, atualizada no modelo do Estado de Direito e que sai do ocaso da Ditadura sem sofrer modificações.
O que resta da ditadura: a exceção brasileira
Bem lembrada na frase que serve de epígrafe ao livro, a importância do passado no processo histórico que determinará o porvir de uma nação é justamente o que torna fundamental esta obra. Organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, O que resta da ditadura reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira. O livro reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes, Ricardo Lísias, Tales Ab’Sáber, Janaína de Almeida Teles e Jeanne Marie Gagnebin, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no país hoje.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n.19 da revista Margem Esquerda.
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