Nordestinos analfabetos X civilização brasileira
Em cada estado brasileiro onde houver excluídos e oprimidos, aí estará o coração nordestino. O Brasil, enfim. Pois o Nordeste é Brasil e o Brasil é Nordeste. De norte a sul, de leste a oeste, o Brasil maior é Nordeste. Todos por Lula.
Por Urariano Mota
Nesta semana, voltaram das trevas os velhíssimos fantasmas contra os nordestinos do Brasil. Notícia na Folha de São Paulo: “O presidente Jair Bolsonaro citou nesta quarta-feira (5) o analfabetismo no Nordeste para tentar explicar a derrota sofrida para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na região: ‘Lula venceu em 9 dos 10 estados com maior taxa de analfabetismo. Você sabe quais são esses estados? No nosso Nordeste’”.
No Diário de Pernambuco: “A central da ONG de proteção aos Direitos Humanos Safernet Brasil recebeu cerca de 14 denúncias de xenofobia por hora na última segunda-feira. Ao todo, foram 348 registros no dia após o primeiro turno das eleições. O número quase supera o total de reclamações registrado nos primeiros seis meses do ano passado (358). No domingo, dia do pleito, foram registradas 10 denúncias. Uma onda de ataques a nordestinos nas redes sociais se estabeleceu conforme a apuração dos votos mostrou o favoritismo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos nove estados que compõem a região. As mensagens partiam principalmente de perfis anônimos, mas que se identificam como apoiadores de Jair Bolsonaro (PL), e reduziam o Nordeste a uma imagem de pobreza e subdesenvolvimento. Comparando o primeiro semestre deste ano com o de 2021, a organização já havia observado aumento de 520,6% nas denúncias de xenofobia: pulou de 358 para 2.222 este ano”.
Na verdade, a manifestação de tal preconceito e, portanto, de ignorância absoluta, não é nova. É velhíssima, tão velha quanto a desigualdade e opressão no Brasil. No caso particular que insulta nordestinos no período das eleições, já havíamos visto antes. Em 2014 latiram raivosos: “70% de votos para Dilma no Nordeste! Médicos do Nordeste causem um holocausto por aí! Temos que mudar essa realidade!”
No entanto, quando olhamos a história brasileira, a realidade que vem é a maior força do nacional brasileiro e da mais alta civilização. Mais longe, com os holandeses, quando tivemos nas Américas a primeira sinagoga, e depois, com a força de um exército mestiço e sem farda, a expulsão do invasor. Falamos em história, e sem consulta vemos os primeiros movimentos contra o domínio português, em Pernambuco e na Bahia. Sem consulta, sabemos de um líder, contra a colonização portuguesa, da altura do Frei Caneca. Intelectual, agitador, homem de ação e poeta. Sem consulta ainda, tão ou mais importante, o financiamento da industrialização em São Paulo feita pelo açúcar pernambucano. Nessa época, éramos uma federação paga por nordestinos a favor do Sudeste e Sul, como assim ensinava o grande Celso Furtado.
Quando olhamos mais perto, vemos que o ideal político da esquerda brasileira, desde o período de antes e durante a ditadura, esteve no Nordeste. Com os nordestinos estava o imaginário da esquerda brasileira. A região era presença em todas organizações clandestinas e partidos antifascistas. Não sei dizer se isso vinha em razão das lutas históricas da rebeldia do povo, dos cangaceiros universais e de Canudos, ou se era influência da presença do Nordeste e nordestinos, como paisagem e personagens, no Cinema Novo. O que seria da imagem alta do cinema nacional, em todo o mundo, sem Deus e o Diabo na terra do sol, sem Vidas secas e sem O pagador de promessas?
Difícil ou impossível é a história da civilização brasileira sem as pessoas de Dom Hélder Câmara, Gilberto Freyre, Josué de Castro, Celso Furtado, Miguel Arraes, Paulo Freire, todos por “coincidência” no Recife antes do golpe de 1964.
Mais perto ainda, a presença do Nordeste está na poesia dos melhores poetas brasileiros. Sem consulta, estamos com os analfabetos João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo, Carlos Pena Filho, Mauro Mota, Ascenso Ferreira, Alberto da Cunha Melo, Daniel Lima…. todos menciono sem consulta, só na memória que faz parte do que somos. Pintores, pintores do sol que arrebenta: Cícero Dias, Vicente do Rego Monteiro, Lula Cardoso Ayres, João Câmara, Gilvan Samico, Tereza Costa Rêgo, Guita Charifker, Ismael Caldas, e o genial escultor Abelardo da Hora. Sem consulta, vêm os escritores Joaquim Nabuco, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna e o cronista maior Antônio Maria. Quantos analfabetos, esses, que as academias europeias gostariam de ter em seus quadros.
De músicos analfabetos então, nem é bom falar. É preciso nada dizer de Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capiba, Nelson Ferreira, Catulo da Paixão Cearense, que era maranhense. Para nada falar desses gênios do analfabetismo, lembro de passagem Luiz Gonzaga. Não à toa, Luiz Gonzaga é o músico da unidade nacional, porque amado igualmente do Oiapoque ao Chuí. Um artista que se apresentava vestido de vaqueiro ou de cangaceiro, e mais importante que a roupa folclórica, cantou e revelou Asa Branca para todo o mundo. Esse é um hino que está mais para Canudos e bem longe do presidente fascista, distante das forças da repressão.
Asa Branca há muito é o hino nacional, pois seus versos e sentimento estão bem acima dos versos vazios e medíocres do Hino Nacional. Em dúvida, comparem a beleza que vai além do hino cívico patrioteiro:
“Até mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce eu disse, adeus, Rosinha
Guarda contigo meu coração”
E agora isto:
“Ouviram do Ipiranga às margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante,
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da pátria nesse instante…”
Meu Deus, isso é uma pegadinha de análise sintática? Onde está o sujeito da oração “ouviram do Ipiranga às margens plácidas”? Além do português ruim, afetado, antinatural, é falso como história. Da importância ridícula do riachinho Ipiranga às lutas do povo nacional, que ainda não teve a liberdade em “raios fúlgidos”, é tudo falso na letra.
O certo é que hoje os políticos brasileiros falam para o mundo. E para a civilização, o primeiro deles é o pernambucano Lula. Que assim falou sobre o preconceito expresso do Bolsonaro na presidência: “Quem tiver uma gota de sangue nordestino não pode votar nesse negacionista, nesse monstro que governa esse país. Ele tem que aprender uma lição. Ele que vá pegar voto de miliciano, daqueles que mataram Marielle Franco. Ele que vá pegar voto daqueles que foram responsáveis pelas mortes na pandemia, vá pedir voto da quadrilha chefiada pelo Queiroz, pedir voto pra quem está organizando ‘rachadinha’ dos filhos no Rio”.
Assim falou o nordestino analfabeto, doutor em universidades de muitos países, presidente de todos os nordestes do Brasil. Pois em cada estado brasileiro onde houver excluídos e oprimidos, aí estará o coração nordestino. O Brasil, enfim. Pois o Nordeste é Brasil e o Brasil é Nordeste. De norte a sul, de leste a oeste, o Brasil maior é Nordeste. Todos por Lula.
A coletânea Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, organizada por Maud Chirio, reúne 46 missivas, de um total de 25 mil enviadas a ele durante o cárcere em Curitiba, procurando representar a imensa diversidade contida nas cartas, contemplando autores de diferentes origens sociais e regiões do país, com histórias de vida, tons e abordagens variadas. Diferente de outras obras de estadistas encarcerados, que reúnem parte de sua comunicação com o mundo exterior, as cartas a Lula apresentam a visão daqueles que viram de longe o desenrolar da história. São demonstrações de solidariedade, de amor e esperança ao prisioneiro.
Até o dia 31 de outubro Boitempo disponibiliza download gratuito do ebook de Querido Lula e audiolivro de A verdade vencerá, que acaba de ser lançado, por R$13!
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.
Sou baiano e participo de lutas pelo Nordeste desde a década de 1950. Não temos que dar ousadia a pilantra algum de qualquer outra região. Na verdade a independencia do Brasil foi na Bahia em combate.
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