A soberania digital a partir dos movimentos sociais
Não existe soberania digital sem acesso significativo a internet, sem ciência, tecnologia e sabedoria popular, sem uma educação digital freireana. Um letramento de tecnologias emergentes que crie condições de aprendizado baseadas na realidade dos territórios, que estimule o pensamento crítico, como no uso de dados pessoais como ativos valiosos pelas grandes corporações, ao passo que instrumentalize os trabalhadores e trabalhadoras do século XXI.
Por Núcleo de Tecnologia do MTST
“Se o povo soubesse o talento que ele tem, não aturava desaforo de ninguém”
– palavras de ordem comuns em atos de esquerda, adaptadas da música Pedro e Tereza, da cantora Teresa Cristina
Recentemente tem aparecido na literatura acadêmica – tais como Couturre, Pohle e Thiel, e Süß, bem como nos discursos políticos, a ideia de soberania digital. Contudo, do que se trata essa soberania digital? O que queremos promover com a ideia de soberania digital? Quem queremos proteger? Por quê?
Em carta aberta destinada e entregue à campanha do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, o Programa de Emergência para a Soberania Digital (2022), profissionais, pesquisadores e ativistas de diferentes coletivos e instituições do ramo de tecnologia do Brasil se manifestaram por um movimento que torne os processos de ciência e tecnologia produzidas no Brasil menos dependentes das chamadas Big Techs – o circuito do grande capital do Norte Global que tem, em um conglomerado transnacional de megacorporações, a hegemonia da produção tecnológica mundial.
Em meio a um cenário emergente de avanço neoliberal, onde as fronteiras entre interesses nacionais e empresariais se tornam menos claras, também os limites entre direitos humanos e direitos digitais se tornam mais estreitos. É nesse quadro em que internet se insere como a realização de uma tendência global de massificação ideológica impulsionada pela escala e velocidade dos meios técnicos e suas materialidades – tal qual chamada por Milton Santos de “meio técnico-científico-informacional”. Como resultado desse processo, o que se apresenta a nós cidadãos é uma globalização que torna soberanos do mundo aqueles que possuem em suas mãos o domínio do capital e da técnica.
Não pretendemos, neste breve texto, propor uma ruptura radical das estruturas que compõem a forma hegemônica e transnacional da internet. O que pretendemos, contudo, é debater as diferentes soberanias dos povos e territórios que não estão no controle do grande capital e como podemos construir movimentos que priorizem os interesses destes grupos na internet, na construção e no uso da técnica.
Existem diversas abordagens acerca do conceito de soberania digital que valem ser destacadas. O conceito de soberania persiste, ao menos, desde as formações dos Estados-nações e do próprio capitalismo. No século XVI, com Jean Bodin a ideia era associada sobretudo ao Estado enquanto poder supremo para promover o bem-estar da humanidade. Uma espécie de direito divino que contribuiu para a formação dos Estados absolutistas. Logo em seguida, o conceito continuou sendo redesenhado, mas passando da ideia de soberania como o elo entre o povo e o Estado para a ideia do próprio povo como autoridade máxima, legitimadora do poder. Daí vem a ideia de soberania popular que sustentou o nascimento das democracias burguesas.
Nesse âmbito, é difícil desvincular a ideia de soberania do território nacional. No entanto, no século passado prevaleceu a ideia de soberania pluralística, que defendia que a soberania não residiria em um espaço geográfico específico e que o Estado não possuiria um papel exclusivo no seu exercício. Uma soberania que poderia ser exercida por diversos grupos, para diversas finalidades.
Ao partirmos da premissa de que toda soberania depende do consentimento ou da obediência por parte de quem a ela se submete, é nos movimentos sociais que seu caráter representativo é assegurado, sobretudo, atualmente.
“Criar, criar, poder popular”
O conceito de soberania alimentar, por exemplo, ganhou força em meados da década de 1990 com a experiência do movimento global de trabalhadores rurais chamado Via Campesina, associado com a possibilidade de reivindicar comida saudável, acessível e sustentável. Foi nessa década também que a internet se tornou essencialmente comercial, fato que resultou na consolidação do gigantesco oligopólio de empresas-plataformas digitais que dominam a maior parte do mercado de TI atualmente. Um fato histórico que simboliza a euforia da disseminação ideológica do avanço neoliberal é o lançamento da “Declaração de Independência do Ciberespaço”, de John Perry Barlow, em 1996. Essa publicação deu impulso a um movimento conhecido como ciberlibertarianismo, que vislumbrava um entendimento de que a “internet é terra sem lei e sem autoridade política”. Lançado durante o evento do Fórum Econômico Mundial, essa declaração até hoje retroalimenta os discursos subalternos de evangelistas de um globalismo tecnocrático.
Essa “soberania do ciberespaço” pode ter sido percebida como uma primeira abordagem de soberania digital. No entanto, para além dessa perspectiva anárquica e das perspectivas estatais de soberania digital, outras abordagens têm ganhado força, como a soberania digital dos povos originários e por meio do bem comum (Süß, 2022). Isto é, um cenário em que infraestruturas abertas e acessíveis fossem promovidas, em que dados de interesse público fossem compartilhados com as devidas garantias de privacidade e segurança (sobretudo de pessoas vulnerabilizadas), e difundissem o desenvolvimento de plataformas de participação política para resolução de problemas urbanos, por exemplo.
Nós, do Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), entendemos a soberania digital como a soberania tecnológica dos movimentos sociais. Entendemos essa soberania a partir do uso e desenvolvimento de tecnologias por e para quem faz as lutas sociais. Isto é, além de não ficar para trás na corrida do digital, poder apontar qual caminho é realmente emancipatório, mostrando como podemos promover a tecnologia para o fortalecimento da organização do poder popular. Como identificou Haché (2014), as tecnologias de informação e comunicação têm um papel benéfico para a sociedade civil para contornar estruturas políticas desfavoráveis, para mobilizar recursos, para fazer campanha, para promover o engajamento da militância e para documentar a memória de luta.
A soberania digital é uma agenda fundamental em tempos de colonialismo digital. Deivison Faustino e Walter Lippold (2022, p. 98) apontam haver uma crescente monopolização dos setores estratégicos de tecnologias digitais, e descrevem como esse processo acarreta a ampliação da acumulação de capitais e a dominação política, social e econômica de territórios. Precisamos reverter esse processo. Como apontou Sergio Amadeu (2021, p. 35), temos que acreditar na “possibilidade de desenvolvimento de pesquisas e soluções a partir da aposta na inteligência coletiva local, na soberania algorítmica e no conhecimento tecnológico como um bem comum livre”. A soberania digital se manifesta na forma em que acessamos e usamos a internet e suas aplicações. Queremos deixar de ser meros consumidores de tecnologia e precisamos, portanto, superar a alienação técnica.
O Núcleo de Tecnologia do MTST entende a necessidade de atuar e fomentar a soberania digital a partir dos movimentos sociais com base em um tripé: primeiro, fomentamos uma análise crítica visando questionar quem detém as infraestruturas digitais, sobretudo as essenciais para o funcionamento da internet, da Inteligência Artificial, dos dados e do mercado de soluções tecnológicas de forma geral. Em segundo lugar, buscamos capacitar alunas e alunos com o desenvolvimento de projetos participativos que desatem seus próprios problemas. E, em terceiro lugar, exercemos o enfrentamento político com o intuito de garantir uma inclusão digital que permita um acesso amplo e democrático às ferramentas necessárias para a resolução dos problemas dos trabalhadores e trabalhadoras envolvidas no movimento. Entendemos que é a partir da prática, do experimento e da garantia de condições que somos capazes de promover a desalienação técnica, de forma que a população se aproprie das tecnologias digitais, ou seja, de modo a fazê-la entender como tais tecnologias funcionam, como são desenhadas e como nos impactam, para que as ponham a seu serviço.
O Contrate Quem Luta (CQL), um assistente virtual desenvolvido pelo Núcleo de Tecnologia do MTST para conectar nossos militantes a pessoas que precisam de alguma prestação de serviços, os auxilia na obtenção de renda. Ele é um chatbot de Whatsapp que utiliza a plataforma de comunicação Zenvia para orquestrar o fluxo de comunicação com o usuário. O texto que o usuário digita é interpretado pela ferramenta de processamento de linguagem natural Microsoft Cognitive. Já o banco de dados que armazena as informações dos trabalhadores da base do CQL é o PostgreSQL, e o gerenciamento desse banco de dados é feito através de uma ferramenta escrita em Python com o auxílio do framework Django. O banco de dados e a ferramenta de gerenciamento escrita em Python estão atualmente hospedados nos serviços RDS e Elastic Beanstalk da nuvem da Amazon, respectivamente. Dependemos diretamente das tecnologias digitais, muitas das quais proprietárias, mas nem por isso deixamos de pensar e testar alternativas. Queremos efetivamente capilarizar e democratizar o conhecimento tecnológico, com o intuito de gerar mais diversidade no desenvolvimento tecnológico, para representar melhor a realidade concreta brasileira.
Para fazer frente à ideologia californiana que deu surgimento a empresas de valor de mercado sem precedentes, bem como à agenda hegemônica regulatória de Bruxelas e para conter o avanço dessas plataformas digitais, teremos de dialogar com outros movimentos sociais de diversos países periféricos, mas não só. Aliás, qualquer tentativa legítima de “tropicalização” ou de tradução para a realidade brasileira dessas iniciativas supranacionais advindas de países centrais deve perpassar um amplo debate que necessariamente contemple os movimentos sociais. Melhor será se for liderado por essas organizações.
Um grande exemplo do problema a ser enfrentado é o evidenciado pelo observatório Educação Vigiada, que aponta que cerca de uma em cada quatro instituições de ensino superior no país utiliza servidores de e-mail de propriedade das grandes empresas-plataformas proprietárias estrangeiras. É contraditório que o centro que simboliza o desenvolvimento científico e tecnológico do país seja, justamente, um dos principais fiadores do lock in e da dependência tecnológica.
Este ano o MTST completa seu jubileu de prata. São 25 anos de luta. No âmbito da tecnologia, estamos atuando há três anos e, aos poucos, tomando corpo. Acreditamos ser possível apresentar um modelo realmente soberano para o mundo digital. Quando falamos que as pessoas precisam ter maior controle e agência sobre seus dados, por exemplo, estamos falando de todas as pessoas mesmo. Esperamos construir uma sociedade civil que lute por direitos iguais e entenda, de uma vez por todas, que direitos humanos como o direito à privacidade e à liberdade de expressão não se sobrepõem ao direito à moradia, mas caminham juntos.
A soberania digital deve começar no nível da classe trabalhadora e, então, influenciar as demais. Não existe soberania digital sem acesso significativo a internet, sem ciência, tecnologia e sabedoria popular, sem uma educação digital freireana. Um letramento de tecnologias emergentes que crie condições de aprendizado baseadas na realidade dos territórios, que estimule o pensamento crítico, como no uso de dados pessoais como ativos valiosos pelas grandes corporações, ao passo que instrumentalize os trabalhadores e trabalhadoras do século XXI. No Núcleo de Tecnologia do MTST temos essa como nossa abordagem de ensino, uma abordagem de execução e teste. Afinal, como dizia Lênin, a prática é o critério da verdade. Por fim, temos de perguntar: existe soberania digital com gente sem casa e sem comida?
Referências bibliográficas
CASSINO, João Francisco; SOUZA, Joyce; AMADEU, Sergio. A hipótese do Colonialismo de Dados e o Neoliberalismo. In: Colonialismo de Dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neo iberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021, p. 32-50.
COUTURRE, Stéphane. The Diverse Meanings of Digital Sovereignty. Global Media, Technologies & Cultures Lab, 2021.
FAUSTINO, Deivison; LIPPOLD, Walter. Colonialismo Digital: por uma crítica hacker fanonean. São Paulo: Raízes da América, 2022.
HACHÉ, Alex. La souveraineté technologique. Mouvements. p. 38-48, v.79, n.3, 2014.
POHLE, Julia; THIEL, Thorsten. Digital sovereignty. Practicing Sovereignty, Digital Involvement in Times of Crises. Bielefeld: transcript (2021).
SÜß, Rahel. The right to disidentification: Sovereignty in digital democracies. Constellations, p.1– 17, 2022.
É realmente uma questão atual e que deve ser tratada. Primeiro, voltarmos a usar termos como “neo liberalismo”, globalização”, como no texto, e também “Imperialismo”, pra descrever e entender esse mundo. E dai partir pra entender como as bigtechs atuam nesses termos, o que significa o neocolonialismo cultural que elas impoem. o texto não se propõe a falar de propostas mais específicas, mas com certeza uma necessária e que afeta trabalhadores precarizados são a dos aplciativos que gerenciam serviços (entrega de alimentos, transportes).. Um país sério e que queira superar essa questão precisa ter aplicativos estatais nessa área, e que auxiliem e beneficiem os trabalhadores, o oposto do que temos visto acontecer.
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Esperando esse modelo soberano e como contribuir para não ser só
espectadores, então é importante dar continuidade a este tipo de informação.
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