As palavras apodrecem
Os agentes das carnificinas, o governo de Israel e os nazistas, cometeram crimes contra a humanidade e têm de responder perante a história. Seus crimes não são comparáveis. São um só.
Foto: Ibraheem Abu Mustafa
Por Luiz Eduardo Soares
O mais dilacerante sofrimento humano não é nomeável, descritível, muito menos mensurável. Transborda os limites da linguagem e de qualquer medida. Sua natureza é a incomensurabilidade. Por isso, quando provocado, este sofrimento, por ações alheias evitáveis, não pode ser justificado, não cabe em nenhuma sequência moralmente motivada de atos.
Milhares de crianças mutiladas, membros amputados sem anestesia, espíritos destroçados, seus mundos familiares arruinados, seu espaço devastado, as coisas que as cercam estilhaçadas e calcinadas. Essas palavras estão vazias, evocam mas não substituem os corpos empilhados em Gaza, apodrecendo em Gaza: as palavras também apodrecem. Nenhum sofrimento extremo é comparável a nenhum outro, porque não pode ser partido em unidades, pesado, delimitado, contabilizado, apreendido fora de si mesmo, dado a outrem como um dom, devolvido por seu preço em moeda comum, a moeda que se troca entre mãos hábeis.
O sofrimento excruciante da criança em agonia é um só, um oceano e um deserto, sem começo nem fim: a história interminável do avesso do que gostaríamos de chamar humano. A criança em pânico, agonizando em Gaza, é a mesma criança em pânico agonizando no campo de concentração nazista. As duas agonias não são comparáveis porque são uma só e a mesma agonia. Nenhum de nós, nenhuma testemunha tem medida para distinguir, hierarquizar e comparar. Nenhum de nós tem o direito de sugerir que sabe o que é isso de que falamos para velar. Mas temos o dever de nos postar como guardiões da inexpugnabilidade do sofrimento extremo, de sua incomparabilidade, de sua incomensurabilidade, de sua irredutibilidade à linguagem e a toda forma de neutralização. E temos também o dever de nomear os carniceiros. Os agentes das carnificinas, o governo de Israel e os nazistas, cometeram crimes contra a humanidade e têm de responder perante a história. Seus crimes não são comparáveis. São um só.
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Luiz Eduardo Soares é escritor, cientista político e antropólogo. Professor visitante da UFRJ e ex-secretário nacional de segurança pública, é coautor de Elite da tropa (Objetiva, 2005) e um dos autores do livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, Carta Maior, 2015). Suas obras mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu duplo (Todavia, 2019) e Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020).
As palavras apodrecem, mas a indiferença e o ódio subsistem…
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