Nancy Fraser: Por uma teoria crítica do capitalismo | Entrevista Margem Esquerda
Reformulando o debate sobre “reconhecimento e redistribuição”, que a tornou conhecida na década de 1990, Fraser oferece na entrevista uma nova compreensão de gênero, raça e classe e as coloca no centro de uma teoria crítica do capitalismo, na qual as noções de crise e contradição vêm para o primeiro plano.
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Confira abaixo a entrevista de Nancy Fraser à Margem Esquerda. A filósofa estadunidense conversou com Bruna Della Torre e Nathalie Bresciani sobre as articulações entre marxismo, feminismo, ecologia e antirracismo, desde seus anos de formação até a atualidade política no n.41 da revista, publicado no 2º semestre de 2023. Não perca a live de lançamento de Destinos do feminismo: do capitalismo administrado pelo Estado à crise neoliberal, nova obra de Nancy Fraser. Saiba mais informações ao final da entrevista.
Bruna Della Torre e Nathalie Bresciani entrevistam Nancy Fraser
O que há de crítico na teoria crítica? A ousadia dessa pergunta, que atravessou os Estados Unidos até a pequena cidade de Frankfurt e posteriormente ganhou o mundo, marca a obra da marxista feminista, filósofa e militante Nancy Fraser. Nascida e criada na cidade
de Baltimore, em Maryland, Fraser viveu ativamente os momentos políticos mais importantes da história estadunidense recente: militou no movimento pelos direitos civis, participou de ocupações universitárias e protestos contra a guerra do Vietnã nos 1960 e há décadas é uma defensora intransigente do socialismo no berço do imperialismo contemporâneo. Atualmente é professora na New School for Social Research, em Nova York, mas ao longo de sua vida acadêmica atuou como docente na Universidade Northwestern, em Illinois, e como palestrante e professora visitante em diversos países da Europa, como Alemanha, Holanda, França e Espanha. Em 2022, foi homenageada pelo Instituto de Teoria Crítica, em Berlim, e convidada para ministrar as “Benjamin Lectures”, palestras nas quais explorou as relações entre raça, gênero e classe a partir da obra Black Reconstruction in America [Reconstrução negra na América],1 de W. E. B. Du Bois. Autora de livros fundamentais no campo do marxismo, tais como Feminismo para os 99%: um manifesto (em coautoria com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya)2 e Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica,3 bem como Unruly Practices: Power, Discourse, and Gender in Contemporary Social Theory [Práticas indisciplinadas: poder, discurso e gênero na teoria social contemporânea], Justiça interrompida: reflexões críticas sobre a condição “pós-socialista”,4 Redistribution or recognition?: A political-philosophical Exchange [Redistribuição ou reconhecimento: uma troca político-filosófica], escrito com Axel Honneth, e Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta,5 entre outros, Fraser é hoje um dos nomes mais importantes também no âmbito da teoria crítica, da teoria da justiça e da teoria feminista. Seu trabalho e sua atuação política desafiam as fronteiras entre os saberes especializados e a separação entre teoria e práxis. No final de julho, Fraser concedeu esta entrevista à Margem Esquerda, via videoconferência, de sua casa em Vermont*. Conduzida pelas pesquisadoras Bruna Della Torre e Nathalie Bressiani, uma das tradutoras da obra da autora no Brasil, a conversa trata de sua trajetória pessoal, familiar, política e intelectual. A filósofa revisita seus trabalhos das décadas de 1980 e 1990, nos quais discute o cenário político durante o período do capitalismo organizado pelo Estado e sua transformação, com o declínio do Estado de Bem-estar social, a implementação de políticas de austeridade no Norte e no Sul globais e a ascensão do neoliberalismo. Fraser comenta também suas intervenções à luz da crise de 2008 e seus desdobramentos políticos, marcados pelo retorno da crítica do capitalismo e pela ascensão da extrema direita na última década.
Reformulando o debate sobre “reconhecimento e redistribuição”, que a tornou conhecida na década de 1990, Fraser oferece na entrevista uma nova compreensão de gênero, raça e classe e as coloca no centro de uma teoria crítica do capitalismo, na qual as noções de crise e contradição vêm para o primeiro plano. Em um quadro teórico fortemente influenciado por Marx e Polanyi, Fraser aponta para a existência de um vínculo entre capitalismo e opressão racial, opressão de gênero, crise ecológica e crise da democracia, para além da relação entre capitalismo e crise econômica. Ao fazer isso, mais do que um
diagnóstico do capitalismo enquanto ordem social institucionalizada, a autora procura articular as diferentes lutas sociais. A entrevista a seguir demonstra com eloquência como Fraser é uma intelectual sempre disposta a confrontar suas teorias com os desafios do presente e, por isso, uma profunda inspiração para o marxismo e a teoria crítica que buscam se renovar diante da complexidade do cenário contemporâneo.
Margem Esquerda – Você nasceu e cresceu em Baltimore, Maryland – uma cidade marcada pela segregação racial e pela luta que ajudou a dar início ao movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos –, em uma família judia secular com alguma simpatia sindical e em uma época em que o macarthismo estava promovendo o apagamento do comunismo e da política radical do imaginário político estadunidense. Você poderia nos contar sobre sua família e esse meio social urbano? Como foi crescer lá?
Nancy Fraser – Vocês já descreveram parte significativa dessas condições. Minha família nasceu nos Estados Unidos – meu pai era filho de imigrantes e a história da minha mãe é um pouco mais complicada, mas ambos fizeram parte dessa geração do pós-guerra, que estava muito empenhada em se assimilar ao país por meio do sucesso econômico. Foi uma época de prosperidade e eles estavam muito focados em viver uma vida confortável, uma vida familiar, adquirindo todos os novos produtos que estavam disponíveis – geladeiras, aspiradores de pó, carrões.
Quando eu tinha uns dez anos, meus pais venderam a casa na cidade e nos mudamos para o que era então um novo subúrbio. Isso fazia parte da chamada “white flight” [fuga branca]: famílias brancas eram basicamente convencidas por corretores imobiliários a vender suas casas dizendo-lhes que o valor de sua propriedade cairia à medida que os afro-americanos se mudassem para o bairro. Apesar de serem progressistas alinhados ao New Deal,6 e não conservadores, meus pais na prática compraram essa ideia. Isso e outras coisas do tipo tornaram-se motivo de discórdia entre nós. Enquanto eu crescia, questionava constantemente meus pais sobre essa hipocrisia. Eles me diziam que a segregação racial era errada e assim por diante, mas não estavam realmente fazendo nada para combatê-la, pelo contrário, estavam seguindo o roteiro delineado por esse sistema. Na adolescência, a rebelião contra meus pais estava vinculada ao processo de me radicalizar politicamente e tentar descobrir ou inventar uma forma de ser de esquerda que não estava disponível para mim por causa do macarthismo.
Eu não tive contato com nenhuma forma de pensamento político radical. A coisa mais radical que ouvi foi quando uma política, Madalyn Murray, que era ateia convicta, chamou minha atenção. Ela era de Baltimore, de meu distrito na verdade, e levou até a Suprema Corte dos Estados Unidos um caso que exigia a remoção da frase “sob Deus” de nosso juramento de fidelidade à bandeira. E ela venceu o caso! Mesmo não tendo nenhuma formação feminista na época, me atraí subliminarmente pelo fato de ela ser uma mulher e ter uma postura firme e intransigente. Então, o primeiro passo de minha jornada foi o movimento pelos direitos civis – em especial o movimento pela dessegregação, do qual participei como uma jovem estudante do ensino fundamental e médio. Isso me levou
rapidamente a movimentos contra a Guerra do Vietnã – aliás, esse é um caminho que muita gente da minha geração seguiu nos Estados Unidos. Nesse momento, eu já estava na universidade: conheci o movimento estudantil, o Estudantes por uma Sociedade Democrática (em inglês, SDS), e, depois, o marxismo. Só cheguei ao feminismo depois de tudo isso. Portanto, a sequência foi bem diferente do percurso de feministas mais jovens, que chegam primeiro ao feminismo. Tenho certeza de que o fato de eu já ter uma espécie de ativismo antirracista, uma crítica anti-imperialista à guerra e uma visão anticapitalista que evoluiu para o marxismo influenciou fortemente meu feminismo. Sempre foi um feminismo que incorporou, de alguma forma, uma espécie de interseccionalidade (não usávamos essa palavra na época). Era um feminismo que entrelaçava antirracismo e anti-imperialismo de uma perspectiva anticapitalista mais ampla.
ME – Você foi muito ativa na nova esquerda na década de 1960. Poderia falar sobre esses primeiros engajamentos políticos e também sobre as principais organizações com as quais se envolveu?
NF – No movimento pelos direitos civis, eu era próxima do Comitê Coordenador Estudantil não Violento (em inglês, SNCC), um grupo muito impressionante de jovens com tremenda dignidade, tremenda coragem, que estavam reivindicando um tipo de ativismo de baixo para cima, em oposição a Martin Luther King e à Conferência da Liderança Cristã do Sul (em inglês, SCLC), um grupo mais vinculado à igreja. Isso foi antes da entrada em cena de correntes mais militantes, como Malcom X ou mesmo os Panteras Negras. Quando isso aconteceu, é claro, fiquei muito impressionada. Também teve um grande impacto em mim o fato de que ambos, Martin Luther King e Malcom X, foram assassinados quando muito jovens, com menos de quarenta anos. Pouco antes de serem mortos, os dois tinham feito uma espécie de virada na direção de um antiessencialismo racial baseado na classe, embora de modos diferentes. Malcolm voltou de uma viagem à Meca, alegando ter encontrado muçulmanos brancos que eram seus aliados e criticou a política de identidade do essencialismo negro da Nação do Islã dos Estados Unidos; Martin Luther King, como se sabe, foi morto em Memphis, Tennessee, apoiando uma greve dos trabalhadores de saneamento urbano, e já havia se posicionado firmemente contra a guerra, o imperialismo e a pobreza. Ou seja, eu já estava muito interessada na conexão entre classe e raça.
Em meu ativismo contra a Guerra do Vietnã, comecei trabalhando para a Philadelphia Draft Resistance, uma organização que fazia grandes comícios, nos quais os jovens entregavam seus cartões de alistamento para que queimássemos aquela papelada. Era uma ação direta, uma espécie de grupo militante, mas que teve muito apoio de figuras religiosas, principalmente na Filadélfia, que era uma cidade quaker – e os quaker eram pacifistas. Assim como no caso do movimento pelos direitos civis, isso me colocou em contato com religiosos de esquerda, o que foi algo novo para mim, porque eu era de uma família judia secular e não havia tido nenhum contato com a religiosidade cristã, ou quaisquer outras formas de religiosidade. Mas, no final, gravitei para o materialismo mesmo, para uma espécie de marxismo.
Num primeiro momento, na Filadélfia, onde fiz universidade, me envolvi com uma corrente da SDS, que se autodenominava Comitê Trabalhista. Era um grupo muito intelectualizado. Metade dos integrantes provinha de grupos trotskistas, como o Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) e a Liga Espartaquista. Algumas dessas pessoas tinham sido expulsas ou abandonaram esses grupos. A outra parte, mais jovem, vinha do movimento de Quatro de Maio nos Estados Unidos, que era a ala jovem do Partido Trabalhista Progressista (PLP). Portanto, o movimento era uma mistura de maoismo e trotskismo.
Eu não tinha qualquer histórico com nenhuma dessas alas, mas mergulhei nessa mistura toda e meio que funcionou para mim. Nessa época, eu já era uma intelectual muito séria. Estudava filosofia, o que eu adorava. Acho que a filosofia me atraiu porque sempre me impulsionava a ir fundo na raiz das coisas, o que – claro – o marxismo da época também tentava fazer, então as coisas se encaixavam. Esse grupo mobilizava as ideias trotskistas de um programa socialista de transição, tentava formular reivindicações e ideias programáticas que dissessem algo às pessoas sobre as situações concretas que enfrentavam, sobre as questões que estavam em suas mentes, mas que buscava, ao mesmo tempo, encaminhar uma reflexão sobre questões estruturais sistêmicas mais profundas.
Quando entrei nesse grupo, estávamos nos organizando contra o novo prédio do centro de ciências, na Universidade da Pensilvânia, que reuniria pesquisas de todas as áreas, faculdades e universidades – incluindo a faculdade para mulheres da qual eu fazia parte. Eles estavam basicamente destruindo o bairro negro da classe trabalhadora, forçando as pessoas a deixarem suas casas para erguer um grande edifício de vidro e aço. Nesse prédio, eles fariam pesquisas de guerra, para a Guerra do Vietnã – armas químicas e sabe-se lá o quê. Então, essa se tornou uma causa famosa na Filadélfia, com estudantes de todas essas universidades envolvidas se unindo.
Estávamos coletando assinaturas para uma petição para interromper a construção desse centro. Fomos ao escritório do reitor para entregar a petição, sem nenhum plano específico além disso. Ele não estava e sua secretária disse que dali a pouco voltaria. Estávamos, provavelmente, em trinta pessoas, e apenas respondemos: “Tudo bem, vamos esperar”, e sentamos no chão da área de recepção. O presidente veio, nós entregamos a petição, explicamos do que se tratava, e ele disse: “Muito obrigado. Isso é muito interessante, vou estudar o que vocês me deram com muito cuidado e levar isso em consideração. Podem sair agora”. Todos começaram a se levantar para sair – nós éramos jovens, nunca havíamos estado na presença de um reitor de universidade antes. Mas um cara se ergueu e disse bem alto: “Você deve pensar que somos idiotas. Nós não vamos embora! Sabemos que você não está nem aí para essas questões”. De repente, todos se sentaram. Foi um daqueles momentos – como Lênin na Estação Finlândia: todos se sentaram e logo surgiu o boato de que havia uma ocupação no escritório do presidente. As pessoas começaram a chegar de todas as partes. Quando vimos, havíamos ocupado todo o prédio da administração e havia milhares de estudantes lá. Isso dá uma noção de como o período era explosivo, a ponto de uma ação ousada de alguém fazer a diferença. Isso rompeu imediatamente com muita coisa. Sabe, fomos socializados para sermos boas meninas, bons meninos. Esse episódio foi muito importante e consolidou meu envolvimento com esse grupo – a intelectualidade me atraía muito, e esse tipo de coragem também.
Organizamos, depois, uma campanha eleitoral para a Câmara de Vereadores: uma candidatura que defendia um programa de moradia, educação e empregos a ser pago com impostos dos bancos, dos especuladores imobiliários, das seguradoras, a ponto de eles serem basicamente expropriados. Não usamos a palavra “socialismo”, mas era uma espécie de programa social de transição. Esse grupo se desenvolveu e acabou se tornando uma organização internacional, chamada Bancada Nacional dos Comitês Trabalhistas (em inglês, NCLC); mas depois se tornou internamente autoritário, com uma espécie de figura “guru”, bem estranho, controlador e paranoico. Fiz parte de um bom terço dos integrantes que rompeu só por ter enfrentado esse cara (não me lembro se fomos literalmente expulsos ou se saímos). Quero dizer, é claro que tínhamos uma análise diferente, mas a verdadeira questão era esse tipo de culto à personalidade que estava se tornando forte.
ME – Como essa experiência política influenciou sua trajetória e a decisão de cursar a graduação em filosofia?
NF – Tentamos, por alguns anos, dirigir uma organização independente, chamada Comitê Trabalhista Socialista. Em meados da década de 1970, ele acabou se esgotando. A nova esquerda, como vocês sabem, foi praticamente desintegrada; muitos grupos e ativistas estavam se voltando para dentro, o SDS já havia passado por mais de uma cisão; outros grupos haviam passado para a ação direta violenta… A cena como um todo tornou-se insustentável.
Haviam se passado cinco anos desde a minha formatura e naquele momento decidi que era melhor traçar algum tipo de plano de vida – eu não poderia apenas continuar sendo militante em tempo integral, esperando a revolução a qualquer minuto. Por isso voltei para a universidade e fiz minha pós-graduação em filosofia, retornando àquele primeiro amor, mas com uma visão de mundo totalmente nova e desenvolvida. Não estou dizendo que era uma visão de mundo mais sofisticada, mas eu sabia muito bem o que me interessava e achava que sabia como abordar isso. Então, digamos, eu não era uma aluna de pós-graduação comum; acabei indo para o Departamento de Filosofia Analítica, mas com uma compreensão real e uma sensação de que não seria transformada num produto deles. Eu usaria e aprenderia o que pudesse lá; e obteria, enfim, minha credencial. Acho que tudo funcionou razoavelmente bem. Melhor do que eu poderia esperar.
ME – Você mencionou as tendências trotskistas e maoistas no SDS, mas [Herbert] Marcuse também foi muito influente lá. Poderia dizer algo sobre a figura dele? Como você chegou a Marx, à Escola de Frankfurt e à teoria feminista?
NF – Ok, então agora eu tenho que voltar um pouco para a minha época de graduação. Fui aluna do Bryn Mawr College, que era uma faculdade feminina de elite, fundada por feministas de classe alta, que chamávamos de “blue stocking feminists” [feministas de meias azuis] – que provinham das classes de elite protestantes brancas anglo-saxônicas [White Anglosaxon Protestant (Wasp)] –, cujo feminismo consistia na ideia de que “as mulheres podiam fazer tudo o que os homens faziam: podíamos aprender física, podíamos estudar matemática de alto nível e, acima de tudo, os clássicos”. Era um lugar onde não estudávamos ciências sociais, porque eram consideradas de classe baixa, mas passávamos pelos clássicos: grego, latim, física, matemática. Era muito incomum e eu meio que adorei, mas estava totalmente fora de sincronia com o ethos da década de 1960, quando todos exigiam que a educação tivesse relevância. A palavra-chave era relevância.
Era difícil argumentar que a matemática grega clássica era especialmente relevante para o que eu estava fazendo, então comecei a frequentar cada vez mais aulas em uma pequena faculdade masculina próxima, chamada Haverford College. Claro, eu gostava do fato de que havia garotos lá também, mas era um lugar muito diferente de Bryn Mawr – muito mais, digamos, contracultural. Foi lá que conheci Richard J. Bernstein – falecido muito recentemente –, que foi uma influência muito importante para mim naquela tenra idade e, mais tarde, tornou-se meu colega na New School. Um dos cursos que fiz com ele era sobre Marx. Isso foi mais ou menos na época em que ingressei no SDS e junto a alguns outros alunos participei de uma “tomada” do curso – uma das coisas que aconteciam naquela época. Dissemos: “Não, Bernstein. Você está nos ensinando uma ideologia social-democrata diluída, isso não é Marx. Cai fora. Nós vamos tocar as coisas a partir de agora”. E foi o que fizemos! Mudamos o programa da disciplina, nós mesmos demos as aulas; revezamos. E, claro, Bernstein era um cara extraordinário, porque ele adorava isso. Acho que ninguém aceitou ter sua turma “tomada” com tanta graça, bom humor, generosidade e até apreço. Ele amou!
Foi aí que aprendi que havia uma espécie de disputa sobre como interpretamos Marx. A versão de Bernstein era altamente influenciada por Shlomo Avineri, que enfatizava esse lado social-democrata. Eu estava me interessando por O capital, em vez da teoria da alienação (havia toda aquela discussão sobre o jovem Marx e o Marx maduro). Enfim, foi assim que entrei em contato com Marx pela primeira vez.
Marcuse, se não me engano, apareceu em outro curso de Bernstein, quando lemos O homem unidimensional,7 que teve um grande impacto em mim. O que me impressionou foi que parecia um livro sobre como havia uma espécie de véu ideológico de conformismo encorajado pela sociedade, uma espécie de bloqueio do pensamento crítico. Isso ressoou muito fortemente em mim. Senti que capturava algo da atmosfera suburbana em que cresci, do mundo de meus pais, com o consumismo e assim por diante. Isso me marcou muito, e, mais tarde, quando voltei a fazer o doutorado, em meados dos anos 1970, fui com a ideia de que queria saber mais sobre a Escola de Frankfurt, porque sabia que Marcuse fazia parte dela. Até esse momento, porém, acho que não tinha lido nenhum dos outros frankfurtianos – talvez nem ouvido falar de [Jürgen] Habermas. Eu estava muito envolvida com o ativismo e, de qualquer forma, seu trabalho tinha acabado de ser traduzido para o inglês naquele momento.
Marcuse me impressionou muito. Eu sabia que ele havia sido professor de Angela Davis, e, é claro, ela era uma figura muito inspiradora para mim. Só mais tarde compreendi como Marcuse era incomum, porque ele era o único daquela geração da Escola de Frankfurt que se colocava expressamente do lado da nova esquerda. [Theodor W.] Adorno, [Max] Horkheimer e até mesmo Habermas foram críticos ou muito ambivalentes em relação ao movimento estudantil. Já Marcuse deixou bem claro que esse movimento foi um grande avanço – justamente contra aquela unidimensionalidade que ele teorizou. Descobri muitos anos depois que, no início dos anos 1970, ele publicou um artigo sobre marxismo e feminismo em uma das primeiras edições da revista Women’s Studies, o que, em retrospecto, é algo extraordinário.8 É um artigo muito ponderado; ele está pensando por si mesmo e não está ciente dos trabalhos anteriores que tentaram lidar com isso. Penso que ele era um ser humano extraordinário.
ME – Vamos passar agora para o seu primeiro livro, Unruly Practices, de 1989. Você se apresenta, nesse momento, como uma intelectual pública ou, em suas palavras, como uma acadêmica radical, que busca combinar “os diferentes pontos de vista da teórica e da agente política”. Como você entende o papel do intelectual e sua relação com os movimentos sociais? Estávamos falando sobre isso até aqui, mas você acha que sua relação com os movimentos sociais mudou nas últimas décadas?
NF – Lendo hoje, me descrever como acadêmica radical é uma formulação curiosa. Por um lado, como acadêmica, eu estava fundamentalmente dizendo que minha política agora era, de alguma forma, parte da academia. Então acho que parece quase uma espécie de recuo… Eu poderia ter substituído a palavra “radical” por “socialista” ou algo assim, o que também tem sua ambiguidade. Não me lembro ao certo o que me levou a escolher essa palavra. Mas o importante é o que vocês disseram antes: entrei na academia com uma visão de mundo da nova esquerda, ou seja, uma espécie de visão de mundo marxista não ortodoxa, anti-imperialista, antirracista e feminista. Um conjunto de posições, de valores, que eu não sabia operacionalizar depois que a nova esquerda se desfez. Mas eu me sentia muito comprometida com aquele quadro teórico, então eu estava trazendo isso para a academia e tentando descobrir como construir algum tipo de síntese – enquanto uma jovem professora, que tinha essa história e essa visão de mundo, que naquele momento não eram imediatamente traduzíveis em práticas políticas, pelo menos não para mim.
Mas havia, como vocês disseram, movimentos sociais que sobreviveram ou se construíram – pode-se dizer – sobre as cinzas da nova esquerda. E isso, me parece, dá continuidade a parte do espírito e dos objetivos da nova esquerda, embora não com o mesmo nível de militância explosiva. Acho que naqueles primeiros anos da década de 1980 meu principal interlocutor fora da academia era a segunda onda do movimento feminista, conforme ela se desenvolvia. O próprio movimento estava mudando – estava se tornando, se pensarmos em termos de um mundo político mais amplo, menos um movimento e mais um grupo de interesse e, em grande medida, um grupo de interesse dentro do Partido Democrata. O feminismo liberal já estava ficando muito hegemônico. E esse não era o tipo de feminismo que se encaixava nesse projeto anticapitalista maior, no qual eu estava interessada.
Outra coisa que estava acontecendo – e eu fazia parte disso – é que os intelectuais dentro do movimento estavam se tornando mais acadêmicos e “academicizados”. Estávamos operando no contexto universitário, no qual você tem que conseguir estabilidade, você tem que publicar de forma significativa para a profissão, para garantir uma posição permanente e assim por diante. Você tinha que se fazer, de algum modo, pelo menos parcialmente aceitável para o tipo de academia mainstream e, também, manter sua fé – qualquer que fosse sua fé. Não foi fácil, mas eu estava lutando para isso e tentava, na introdução de Unruly Practices, fazer uma espécie de apologia daquela posição: do esforço, da tensão, da ambivalência. Sentia intensamente que minha experiência e consciência políticas eram um recurso real de força para fazer trabalho teórico, e sentia também que a educação teórica que conquistei para mim era uma força real para fazer trabalho político. Portanto, eu estava tentando dizer que, embora isso seja uma espécie de tensão, é uma tensão produtiva.
Eu de fato senti que, talvez antes, e talvez até mesmo durante os anos em que escrevi esses ensaios, na década de 1980, que ainda havia algum tipo de fluxo de ideias – indo e vindo – da academia para o ativismo e um aprendizado mútuo. Assim, os problemas que surgiram na prática ativista feminista foram assumidos e teorizados por pessoas como eu, e parte daquilo que a gente tinha a dizer, por sua vez, era refiltrado e reformulado pelos movimentos. Acho que havia alguma comunicação real entre os dois mundos.
Mais tarde, isso se perdeu, ficou muito mais difícil quebrar o sentimento de encastelamento da universidade. A teoria feminista tornou-se, consequentemente, muito mais esotérica e desconectada do ativismo. Uma reflexão que fiz sobre isso, sobre a qual escrevi posteriormente, foi que muito do feminismo da segunda onda era sobre teoria social; as pessoas estavam de fato buscando teorizar os mecanismos que produzem a dominação, incluindo a dominação masculina, mas não apenas ela. Estavam tentando entender as instituições, a relação entre capitalismo e dominação masculina (ou patriarcado, como algumas o chamavam). Essas eram as grandes questões da teoria social, mas elas foram cada vez mais deixadas para trás e esquecidas quando entramos na chamada “virada cultural” ou “virada linguística”, no auge do pós-estruturalismo. Quero ressaltar que não considero isso completamente descartável. Aprendi muito nos anos em que me dediquei a esse estudo. Mas, em retrospecto, avalio que representou uma espécie de afastamento do ativismo e do verdadeiro pensamento antissistêmico, e, mais ainda, das práticas políticas antissistêmicas. Mas agora redescobrimos isso. Acredito que o melhor do momento atual é o entendimento de que é possível aprender com a virada cultural e suas importantes descobertas, inserindo-as em uma combinação que inclui um interesse renovado por teoria social. Me refiro, por exemplo, à teoria da reprodução social – o feminismo da reprodução social –, que é uma espécie de sintoma desse retorno à teoria social. O interesse pelo marxismo negro e pela teoria da interseccionalidade também é um marco dessa tentativa de ampliar o panorama de reflexão.
Creio que há, novamente, um fluxo muito mais fácil entre as pessoas e as ideias geradas em um ambiente acadêmico, como o meu, e o mundo da luta social e do ativismo político. Isso me mostra que essas linhas de comunicação, sejam elas robustas, sejam elas estreitas, dependem do Zeitgeist político. Eu vivi diferentes partes desse ciclo e, agora, estou me sentindo não exatamente otimista em relação ao mundo, mas energizada de uma forma que é, pelo menos em alguma medida, uma reminiscência de minha experiência na nova esquerda nas décadas de 1960 e 1970.
ME – O capitalismo sempre desempenhou um papel importante em sua teoria e em seu trabalho. Mas depois da crise de 2008 ele se torna central. Com ela, vem o diagnóstico da crise tendencial e das contradições estruturais. Karl Polanyi e a oposição entre mercado e sociedade se tornam importantes no seu trabalho e, no início de 2010, você começa a falar em tríplice movimento. Poderíamos dizer, “Polanyi mais um”: mercantilização, proteção social e emancipação. Essa é uma tentativa de reformular o dualismo entre economia e cultura, entre redistribuição e reconhecimento que você desenvolveu anteriormente? Se sim, em que termos? Por que o dualismo anterior não parecia mais suficiente?
NF – Essa é uma pergunta muito interessante! Deixe-me começar com a questão sobre reconhecimento e redistribuição. Quer dizer, o ponto de partida para isso foi a ruptura na esquerda – pelo menos nos Estados Unidos, mas acho que em muitas partes do mundo também – entre o que mais tarde veio a ser chamado, ou talvez já estivesse sendo chamado, política de identidade, de um lado, e política de classe, de outro. Pode-se dizer que, à medida que os movimentos trabalhistas tradicionais foram se enfraquecendo, o centro da energia se deslocou para o movimento das mulheres e, em algum grau, para a luta de libertação negra, em várias formas, e para as lutas em torno da sexualidade. Tudo isso foi meio que tachado, em bloco, de política identitária por pessoas que haviam sido socialistas de esquerda, mas que fizeram as pazes, de uma forma ou de outra, com o funcionamento do sistema, que se tornaram social-democratas ou o que quer que seja, mesmo que não todas. Elas estavam muito incomodadas com essa chamada militância política identitária. Da mesma forma, algumas pessoas do lado do feminismo desdenhavam das que ainda abrigavam alguma perspectiva de classe. Viam isso como ultrapassado e sem valor. Eu queria intervir nessa situação e fiquei meio impressionada com o material de Axel Honneth e, antes disso, com o de Charles Taylor sobre o multiculturalismo e a política de reconhecimento, que traziam alguns insights realmente interessantes, em termos de como pensar isso do ponto de vista da filosofia política. Nesse momento, ainda tínhamos o paradigma redistributivo que surgiu de uma espécie de auge do pensamento liberal igualitário: [John] Rawls, [Amartya] Sen, [Ronald] Dworkin, e comecei a trabalhar com esses filósofos analíticos da justiça. Então pensei que seria interessante colocar esses dois paradigmas lado a lado – o paradigma distributivo e o paradigma do reconhecimento – e tentar mostrar porque esse não era um jogo de soma zero e porque seria importante que essas duas vertentes da esquerda unissem forças. Esse trabalho teve origem num impasse político, pode-se dizer, do mundo real.
Para mim, porém, acho que isso ficou mais claro com o livro que escrevi com Axel Honneth, Redistribution or Recognition?. Comecei, nesse livro, a ressituar o problema da redistribuição-reconhecimento no escopo do capitalismo. Em um nível, os chamei de “idiomas populares”, que são as linguagens que as pessoas usam para fazer reivindicações, e comecei a ver que havia algo mais profundo acontecendo. Não era por acaso que esses dois tipos de reivindicação tinham sido colocados um contra o outro como um jogo de soma zero. Havia algo na estrutura do capitalismo que nos levava a pensar: “a cultura está aqui e a economia está ali”. Então, eu estava tentando abordar de forma genealógica de onde essas linguagens vinham, o que me levou de volta à teoria da sociedade capitalista. Logo depois disso, percebi – e acho que já insinuo isso nesse livro – que realmente havia um terceiro eixo que precisava entrar: o político. Se o reconhecimento é cultural e a redistribuição é econômica, precisamos de alguma forma falar sobre representação como o terceiro “R”, por assim dizer.
Eu já estava descobrindo que esse quadro teórico era muito restrito para tudo que eu queria fazer. E há tantos tipos de acidentes e contingências na vida… Acho que eu estava dando um curso sobre teorias do capitalismo e relendo A grande transformação de Polanyi pela primeira vez desde, provavelmente, meus tempos de graduação (porque como uma marxista não é comum voltar a ler Polanyi ou mesmo [Max] Weber). Mas eu estava lendo todos esses grandes teóricos sociais do capitalismo e descobrindo muita coisa de interessante em todos eles. Então, encontrei uma maneira de pensar com e contra Polanyi, que parecia oferecer alguns insights sobre a grande transformação atual: o desfazer da social-democracia e a reincorporação de tudo ao mercado.
Descobri também que a obra de Polanyi, por maior que seja, era maculada por certo tipo de comunitarismo nostálgico. Não acho que isso era intencional. O próprio Polanyi era nitidamente um socialista independente, ele não estava tentando voltar para qualquer tipo de sociedade comunitarista. A estrutura conceitual que ele estava usando, no entanto, não era adequada para gerar uma crítica que pudesse fazer as duas coisas ao mesmo tempo: criticar a mercantilização e também criticar formas de protecionismo – que estavam reciclando algumas formas de dominação não baseadas no mercado. Especialmente quando você pensa sobre o populismo de direita hoje em dia, vê-se como é importante poder fazer essas duas coisas ao mesmo tempo.
De qualquer forma, tentei introduzir as ideias de lutas emancipatórias nesse tipo de dualismo entre protecionismo e mercantilização. Claro, como feminista, a palavra “protecionismo” já deixa a pulga atrás da orelha, certo? Quero dizer, essa era a ideia vitoriana de proteger as mulheres de empregos que poderiam prejudicar sua saúde reprodutiva e assim por diante, mas sem transformar a sociedade; apenas removendo-as [mulheres], sem fornecer novas fontes de renda ou o que quer que seja. Portanto, achei Polanyi bom para pensar com e contra.
Então, acabei com a ideia de que dois Karls eram melhores que um. O que precisávamos era de uma integração de Marx e Polanyi, porque Polanyi tinha essa ideia que chamei de “contradição interdomínio”: uma contradição entre a lógica econômica da sociedade capitalista, por um lado, e outras lógicas que surgiam de outros domínios da vida social e que foram, de fato, os pilares de sustentação da economia, mas tinham diferentes compromissos normativos embutidos neles e, igualmente, lógicas distintas. Polanyi foi ótimo para me dar uma ideia de como prestar atenção a essas dissonâncias entre os “domínios” no capitalismo. Mas faltavam em Polanyi todas as coisas pelas quais você precisa de Marx. Então, pensei que tínhamos dois tipos de contradição: a contradição marxiana – a queda da taxa de lucro e o aumento da composição orgânica do capital – e a contradição polanyiana. O que fiz foi tentar desenvolver uma concepção de capitalismo que integrasse um interesse por ambas.
ME – Em livros mais recentes – Capitalismo em debate e Capitalismo canibal –, você desenvolve ainda mais essa abordagem e apresenta uma compreensão da sociedade capitalista como uma ordem social institucionalizada, que é complexa e envolve diferentes domínios e contradições estruturais que têm um caráter econômico, racial, de gênero e uma dimensão política e ecológica. Você poderia explicar sua concepção de capitalismo em termos gerais e o que quer dizer quando afirma que o mercado canibaliza não apenas o trabalho livre, mas também a natureza não humana, a reprodução social, a democracia, as instituições políticas e as condições de sobrevivência daqueles de quem o trabalho é expropriado?
NF – Começando pela noção de crise que vocês mencionaram anteriormente. No meu trabalho, estou sempre respondendo ao que em meu entendimento realmente está acontecendo no mundo. Nessa fase, procurava responder ao que me parecia cada vez mais premente: uma espécie de grande crise geral de toda a ordem civilizacional. Claro, houve a crise financeira de 2008-2009, e as crises cada vez mais evidentes, e ainda mais nítidas hoje: ecológica, climática, do cuidado, da reprodução social e assim por diante. E, óbvio, o surgimento de várias formas de populismo chauvinista de direita. Uma crise da democracia.
Me parece que isso tem alguma semelhança com o século XVII. Porque se vamos falar de crise do capitalismo, não podemos falar só da queda da taxa de lucro, do estouro de bolhas especulativas, da quebra do mercado de ações e assim por diante. Comecei a intuir que precisávamos de algum tipo de teoria pós-economicista da crise – e isso se relaciona com o que acabei de dizer sobre Polanyi: pensei ter visto alguns elementos para essa teoria em Polanyi, em termos de contradições interdomínio. Ao pensar sobre isso, percebi que ainda estava convencida de que o capitalismo é a categoria certa para enquadrar tudo isso. A crise é de toda uma sociedade, sistema ou ordem, e o melhor nome para essa ordem social é capitalismo.
Me dei conta de que tinha que rejeitar a identificação do capitalismo com um sistema econômico. É algo maior que isso. Nesse sentido, eu estava – talvez sem perceber completamente – voltando a algumas formas de pensamento frankfurtiano, talvez às ideias de [Antonio] Gramsci sobre o Estado Integral. Eu estava voltando às tradições do chamado marxismo ocidental que, de uma forma antistalinista, sempre rejeitaram a redução do marxismo e da teoria do capitalismo à economia e à teoria econômica.
Eu estava ministrando um curso com Cinzia Arruzza na New School sobre o Livro I de O capital e todas essas ideias estavam girando em minha mente. Me chamou muita atenção o belo movimento que Marx faz quando demonstra a impossibilidade de entender de onde vem o mais-valor se você permanecer no nível do mercado, se você pensar apenas na troca de equivalentes e assim por diante. Então tínhamos que descer a um nível mais profundo, que ele chamou de terreno oculto da produção, no qual encontramos a exploração, o segredo do mais-valor e assim por diante.
Mas fiquei pensando: “ora, feminismo já fala há muito tempo que existe algo mais profundo que a produção: a reprodução”. Aí comecei a refletir que também tem toda a questão da natureza, de onde vem toda essa matéria-prima, a energia; e isso é outro terreno oculto. Depois disso, refleti sobre a questão da acumulação primitiva. Já havia todos esses debates sobre como ela não era apenas algo originário, mas algo contínuo, reposto: David Harvey e outros pensadores fizeram esse movimento, que diz respeito a outro terreno oculto. E, claro, há a política. Comecei a usar a formulação kantiana, “condições de possibilidade”. Não existe economia capitalista sem um sistema que dê ao capital acesso ao trabalho de cuidado e às energias da reprodução social, acesso à natureza, acesso à riqueza e ao trabalho não livre ou semilivre de comunidades que não podem sequer reivindicar a remuneração de seus custos de reprodução, sem todos os bens e capacidades políticas que historicamente foram fornecidos pelos Estados. Cheguei, portanto, à imagem da economia como uma espécie de ponta do iceberg – uma ponta do iceberg bastante poderosa e importante, é claro. O capital requer esses suportes, essas condições de possibilidade, esses terrenos ocultos.
Isso me deu acesso ao que considero agora como uma questão fundamental: que tipo de relação existe entre a economia, que seria a história de primeiro plano, e essas várias outras histórias de fundo? Qual é a relação entre esses domínios? Novamente, é uma questão de contradição interdomínio (Polanyi) e predação ou canibalização. Isso me permitiu entender a atual crise do capitalismo em toda a sua multidimensionalidade – além da dimensão econômica mais familiar, também a dimensão ecológica, a dimensão política, a dimensão da reprodução social, a dimensão imperialista e assim por diante – e me permitiu entender seu caráter sistêmico: essas contradições são estruturais, não são secundárias, culturais, suplementares ou o que quer que seja; são contradições estruturais de um sistema que requer, e que incentiva, que o capital acesse esses insumos, sem custo ou abaixo do custo, de domínios que são concebidos como exteriores à economia.
Ao tentar desenvolver uma teoria da crise geral, tentei encontrar uma maneira de integrar insights da teoria feminista, de teorias antirracistas e anti-imperialistas, do pensamento ecológico e de algumas formas de teorias democráticas. Tudo isso junto às melhores formas de marxismo disponíveis, sejam elas quais forem. E não acho que haja nada de antimarxista nisso. Há em Marx passagens que expressam um reconhecimento real da importância dessas outras coisas. Só que elas não foram conceituadas e elaboradas de forma sistemática. O que tento fazer é mostrar um modo de trabalhá-las sistematicamente de maneira conceitual.
ME – Passando agora a alguns aspectos dessa teoria sistemática. Primeiro, sobre raça, imperialismo e expropriação: você afirma que o capitalismo requer mão de obra expropriada para manter o aumento dos lucros. Por que, para você, explorar a mão de obra livre não é suficiente? E também, você acha que com a atual ampliação da expropriação, a base estrutural da racialização está desaparecendo?
NF – Se pensarmos na expressão “capitalismo histórico”, de Immanuel Wallerstein, não como uma abstração lógica mas sim como um sistema localizado no espaço e no tempo, e que neles se desdobra, fica evidente que o sistema sempre dependeu de formas de trabalho expropriado que foram segregadas das populações das quais dependia para o fornecimento de mão de obra explorada. Isso vale tanto para as primeiras conquistas da América, quanto para o escravismo institucionalizado do Novo Mundo, o transporte de africanos para as Américas, e assim por diante, ou mesmo para a reinstitucionalização pós-abolição de formas de supremacia branca, subserviência negra, mão de obra semilivre ou não livre, e as várias formas de servidão por dívida etc. Estou pensando nessa história dentro dos Estados Unidos, principalmente, mas é verdadeira globalmente também.
[W. E. B.] Du Bois escreve em 1935 Black Reconstruction In America e fala sobre uma vasta massa negra, um proletariado negro, cujos trabalho e riqueza estão sendo extraídos por meio de várias formas de coerção. Isso fornece muitos insumos baratos que os trabalhadores icônicos do capitalismo, ou seja, trabalhadores industriais “livres” e brancos – certamente explorados e maltratados, mas que recebem um salário que, pelo menos em teoria, deveria cobrir seu custo de vida e cujo tempo fora do trabalho é, supostamente, deles próprios – não oferecem. Então o sistema depende da expropriação de populações racializadas. Ele combina insumos provindos de duas correntes. Ele mistura o algodão cru fornecido pelos escravizados no Mississippi com o trabalho explorado de trabalhadores ingleses livres em Manchester. “Atrás de Manchester está o Mississippi”, como diria Jason Moore. Esse é um entre muitos e muitos exemplos. Historicamente, é isso que ocorre em todas as eras do capitalismo, incluindo o presente, quando poderíamos dizer: atrás de Cupertino [Califórnia] está Kinshasa [Congo]; por trás da sede da Apple, há o lítio e o algodão extraídos por semiescravizados no Congo; atrás dos trabalhadores que agora estão perdendo alguns dos privilégios ou padrões de vida que tinham no auge do fordismo e da social-democracia, daqueles que compram no Walmart, estão aqueles que costuram em Daca. Em outras palavras, os insumos baratos dos quais o capitalismo se alimenta não precisam ser apenas matérias-primas, mas podem ser roupas, alimentos, coisas que vão manter o custo de vida baixo, para que o capital não tenha que pagar muito aos trabalhadores livres. Esses eixos estão imbricados, e o ponto-chave é que se trata de um único sistema social que depende de ambos e do que foram historicamente duas populações separadas; populações divididas entre si por cor, por uma linha de cor global – novamente, expressões de Du Bois. De certo modo, populações que foram levadas a não se reconhecer como vítimas de um mesmo sistema e como populações que não tinham como se emancipar sozinhas, que precisariam de algum tipo de aliança política, que infelizmente não se concretizou em grande escala.
Do ponto de vista do capitalismo histórico, isso é evidente. Você poderia perguntar se seria teoricamente possível tornar todos os trabalhadores igualmente explorados ou, de alguma forma, compartilhar o fardo da exploração e expropriação para além da linha de cor… Mas vou colocar desta forma: o que é necessário para o capitalismo é que alguns dos insumos não sejam pagos pelo custo total de sua reprodução. É o caso da natureza; o capital nunca paga o custo total de reprodução dos minerais e produtos agrícolas que são retirados da natureza. Não repõe o que toma, não repara os estragos que causa e o mesmo acontece com quaisquer populações que tenham sido conquistadas e fundamentalmente privadas de meios de autodefesa. Portanto, o capitalismo pode se safar, mas não tratando essas populações da mesma forma que trata os trabalhadores icônicos explorados.
Então ele precisa desses insumos baratos. Mas ele tem que obtê-los exclusivamente – vamos deixar a natureza fora de cena – de pessoas de cor? Não poderia também combinar as coisas? Acho que algo assim está acontecendo agora, o que leva à segunda parte da pergunta, porque, historicamente, os trabalhadores protegidos lutaram com unhas e dentes nos séculos XIX e XX para conquistar direitos trabalhistas, reconhecimento sindical, salário familiar e status de membros plenos e respeitáveis da sociedade capitalista no centro. E eles estão perdendo muito daquilo pelo que lutaram. Se, anteriormente, eles avançaram diante de um status composto, no qual estavam sendo explorados e expropriados, e saíram ao sol da pura exploração sem expropriação, eles agora estão sendo arrastados de volta para algum tipo de condição híbrida, na qual são oficialmente livres, mas não recebem mais salários que cubram seu custo total de reprodução. Suas famílias são forçadas a contribuir com muito mais horas de trabalho remunerado do que anteriormente, a fim de juntar algo semelhante a um padrão de vida para seus domicílios. Hoje, isso faz parte da história de gênero, das mulheres que realizam muito mais horas de trabalho remunerado em lares que têm um chefe de família masculino, ou onde a mulher é a única ou a principal provedora, ou quando as coisas ficam ainda mais difíceis – com múltiplos empregos, complementação de renda [“moonlighting”, quando uma pessoa tem um emprego integral e um emprego de meio período] e assim por diante.
A condição de exploração, em seu estado puro, está portanto disponível para uma parcela cada vez menor da classe trabalhadora – mesmo em seu centro histórico. Ao mesmo tempo, tanto no centro histórico quanto no mundo pós-colonial as populações não brancas se tornaram juridicamente mais livres, adquiriram cidadania, mesmo que não totalmente, e adentraram o mundo do trabalho assalariado, em alguns casos, o trabalho fabril. Mas elas ainda sofrem alguma expropriação em suas vidas por meio da dívida soberana – no caso de muitos países, incluindo o Brasil, onde há uma espécie de desvio de riqueza, em grande parte, da população da classe trabalhadora cujos impostos vão para o pagamento dos juros da dívida, em vez de educação, saúde, creches e assim por diante. Então, o que estou dizendo é que a linha entre expropriação e exploração é muito mais tênue agora, em termos de quem está fazendo o quê. Antes tínhamos uma imagem muito distinta de duas populações separadas pela linha de cor – uma explorada e outra expropriada. Agora, é uma imagem mista.
Nesse sentido, o que se poderia dizer é que a base estrutural da nítida divisão racial no sistema mundial está se deslocando – e, se não desaparecendo completamente, pelo menos se suavizando. Ao mesmo tempo, o resultado não é uma atenuação do racismo brutal. Ao contrário, ele está em muitos casos se intensificando, justamente por causa dessa experiência de perda por parte de setores historicamente privilegiados da classe trabalhadora, que se veem – a partir de sua perspectiva – degradados ao nível daquelas pessoas. O resultado é uma espécie de racismo exacerbado, que está alimentando o sucesso do populismo de direita – “os imigrantes que estão tirando nossos empregos”, “os muçulmanos, os árabes, os judeus, os negros, os mexicanos…”. Portanto, trata-se de outra variante do problema histórico que é a incapacidade de unir as diferentes correntes e populações no interior da classe trabalhadora. O capitalismo é um sistema social que funciona por meio da divisão e da canibalização que, de uma forma ou de outra, afeta a todos.
ME – Em Justiça interrompida, você defende que raça e gênero são categorias bidimensionais. Elas estão imbricadas, mas há uma dimensão de status e uma dimensão econômica que não podem ser reduzidas uma à outra. Nesse novo modelo, você compreende as categorias de gênero e raça de outro modo? Elas vêm dessa canibalização ou a diferença de status ainda tem uma dimensão cultural?
NF – Pelo que entendo agora, penso em status mais em termos políticos do que em termos culturais, mas não nego a dimensão cultural. Parece-me que, antes de tudo – pelo que disse sobre expropriação –, trata-se da incapacidade de traçar uma linha e se defender quando alguém vem atrás de você, toma sua terra, se apropria do seu corpo, o joga no porão de um navio e o transporta para o outro lado do oceano e te coloca para trabalhar cultivando algodão ou qualquer outra coisa. E isso está acontecendo em um mundo que está meio que redescobrindo a liberdade política, está reivindicando um direito natural inalienável, exigindo que as monarquias sejam derrubadas e substituídas por repúblicas nas quais as pessoas não são mais objetos, mas cidadãos e assim por diante.
Então, basicamente você tem essa construção de um status político livre, que traz consigo uma concepção de cidadania, com direitos subjetivos que podem ser defendidos na Justiça. Com ela, vem a ideia de que o fato de você trabalhar para outra pessoa em um fábrica, ou onde quer que seja, não significa que você não seja pessoa jurídica independente (se você for homem) porque possui alguma coisa. Você também tem uma propriedade, a propriedade de sua própria pessoa na propriedade de sua força de trabalho. Você a vende livremente em uma troca contratual etc. Portanto, há todo esse imaginário de liberdade que é acompanhado de direitos efetivos, de Estados que constroem ordens jurídicas, nas quais, em algum grau, as pessoas podem reivindicar seus direitos. Estes contrastam com todo um outro mundo, no qual isso está ausente. Um mundo onde as pessoas são propriedade, não os donos de propriedade. Outra pessoa possui você e, portanto, sua capacidade de trabalho e você não pode recorrer à lei. Neste mundo, como eu disse, as pessoas podem tomar sua terra, seus animais, seus filhos e assim por diante.
Essa é uma forma mais intensa de hierarquização de status, que se efetiva essencialmente por meios políticos. Se os Estados e a capacidade de reivindicar direitos e proteção dos Estados são as principais coisas que te mantêm fora desse mundo horrível, onde qualquer um pode fazer qualquer coisa contra você e não há nada que você possa fazer a respeito, então o outro lado disso é a privação de status político e de meios políticos para resistir: tanto não ter um Estado no qual possa se apoiar, como não ter sua própria comunidade militar para defendê-lo ou o que quer que seja. Comecei a desenvolver essa compreensão de status, que de fato mapeia a linha de cor que divide expropriação e exploração. Em minha opinião, isso chega ao cerne do que considero ser a opressão racial: exposição. Esse é um termo polanyiano. A pessoa está exposta, não tem condições de traçar a linha, não consegue dizer “você pode vir até aqui, mas não além disso”. Trata-se da ausência da capacidade de traçar limites e de se proteger.
Eu diria que essa é de certa forma a essência, pelo menos no contexto estadunidense, do que raça significa e do que significa ser racializado. É essa exposição, a negação do status de liberdade. Então, sim, isso acompanha muita elaboração cultural sobre quem é preguiçoso, quem é estúpido, quem é um bruto e quase humano – um degrau acima de um animal não humano. Isso também é acompanhado por uma elaboração cultural por parte dos racializados, dos escravizados, que estão afirmando a humanidade, a comunidade, a dignidade etc. por meio da elaboração cultural – uma contraelaboração.
Mas quando estamos falando da força material sistêmica de opressão, acho que se trata de uma força combinada de pressão econômica sistêmica exercida pelo capital por meio da ação dos Estados, inclusive no que diz respeito a quem é cidadão e quem não é, aos direitos de migrantes ou a ausência desses direitos – os chamados “ilegais”, que podem ser deportados e são, portanto, altamente expropriáveis. Então é isso que penso sobre a questão do status.
No que diz respeito ao gênero, embora haja elementos disso – no sentido da vulnerabilidade à violência masculina, tanto no contexto familiar e das relações íntimas quanto de forma mais ampla, no ambiente de trabalho, por exemplo, as pautas do movimento MeToo, assédio etc. –, há uma diferença, no sentido de que as relações de gênero muitas vezes são próximas e pessoais. Ao contrário das formas de falta de liberdade racial, que muitas vezes envolvem a introdução de distância – “não somos como eles” –, formas essas que são mais extremas do que pessoas compartilhando suas camas,
mesas e crianças nos dois polos de uma divisão de gênero. Quero insistir na gravidade da situação de status relacionada à racialização. Pelo fato de o trabalho de reprodução social se dar de uma forma mais íntima, em linhas de gênero, a dimensão de status nessa esfera, embora exista, tem outro teor. Não é à toa que tem sido mais fácil conseguir algumas reformas de status para as mulheres. Não apenas para as mulheres, mas para torná-las mais socialmente reais do que tem sido, no que diz respeito às populações de cor. Agora, é evidente, temos aqui que adentrar as intersecções e é exatamente disso que trata meu mais novo trabalho.
ME – Qual é a sua opinião sobre a divisão entre trabalho produtivo e improdutivo? Porque este é um dos principais tópicos de discussão da teoria da reprodução social. Se ela é produtiva, como defendem Silvia Federici e Alessandra Mezzadri? Ou se não é, como argumenta Lise Vogel?
NF – Devo dizer que, para mim, esse debate é um pouco escolástico e não tão interessante, porque acho que é muito semântico. Se você aceitar a definição marxiana do que significa trabalho produtivo, trata-se do trabalho que gera diretamente mais-valor. Se você aceita, novamente, a ideia marxista canônica de que o mais-valor é gerado nessa lacuna entre o pagamento das horas trabalhadas, mas não do mais-valor gerado, então o trabalho de cuidado fora de uma empresa com fins lucrativos não gera mais-valor dessa maneira direta e, portanto, não conta como trabalho produtivo.
O problema é que a palavra “produtivo” também tem um significado de linguagem comum, isso não é técnico, e se estamos falando de produzir valor de uso, que é – de certa forma – o que deveria nos preocupar, então é óbvio que o trabalho reprodutivo produz coisas das quais definitivamente precisamos, nos preocupamos e devemos valorizar e compensar.
Outra maneira de pensar sobre isso é em termos do contraste entre mais-valor e lucro. Podemos certamente dizer que o trabalho de cuidado não remunerado, ou mesmo o trabalho de cuidado mal pago nas casas dos indivíduos – que é pago com renda e não é lucro –, não produz mais-valor, mas contribui de forma muito importante para o lucro. Meu ponto é que o marxismo se preocupou demais com o mais-valor e de onde ele vem, mas não o suficiente com o lucro e de onde ele vem.
Portanto, todas as coisas de que estamos falando aqui, os insumos não remunerados de natureza não humana, os insumos não remunerados do trabalho expropriado, do trabalho de cuidado, os bens públicos fornecidos pelos Estados fora do mercado, todas essas coisas contribuem para o lucro. Os lucros do capitalista não existiriam se os proprietários fossem forçados a pagar pelos custos de reprodução de tudo o que entra em seu lucro. Então, não vamos nos preocupar tanto com o que produz mais-valor, vamos nos preocupar de onde vêm os lucros; e, nessa chave, isso vem do trabalho de cuidado, da natureza e de todos esses outros insumos abaixo de custo.
ME – No Brasil, seu conceito de “contrapúblico” está sendo mobilizado para designar movimentos de direita também, porque agora – de alguma forma – a direita está se colocando como a única alternativa radical. E com a ascensão de Marine Le Pen, na França, e a vitória de Giorgia Meloni, na Itália, a extrema direita parece estar mudando. A deputada Júlia Zanatta fez uma declaração recente defendendo uma ala feminina, em vez de uma ala feminista no Congresso. E mesmo nos Estados Unidos a ascensão de movimentos, como o Mães pela Liberdade e outros pastiches do movimento liderado por Phyllis [Stewart] Schlafly na década de 1960, mostram que as mulheres de extrema direita estão assumindo um papel essencial nos novos movimentos fascistas. Você concorda que há um possível devir feminino da extrema direita que se distancia do feminismo liberal por meio de uma defesa do “feminino”? Fazendo um pequeno desvio para a indústria cultural: os dois filmes mais comentados do ano são Barbie e Oppenheimer, e o que se chamava de pinkwashing com esse filme da Barbie tornou-se quase literal. E há uma reação política evidente que defende uma nova feminilidade destemida – que vemos nas novas coleções da moda – e assim por diante. Será que vamos testemunhar um apocalipse pink de extrema direita?
NF – Muito, muito interessante. Vocês estão absolutamente certas sobre esse tipo de contraestratégia pública que tem sido perseguida com muito sucesso pela direita, a tal ponto que – pelo menos nos Estados Unidos, possivelmente também no Brasil – estamos vivendo em um mundo onde há dois públicos separados. Quer dizer, o contrapúblico deles tornou-se tão grande que você nem consegue mais dizer qual é o público e qual é o contrapúblico. Então, eles têm sido extremamente bem-sucedidos e isso é absolutamente verdade: toda a teoria da esfera pública, na qual não trabalho há muito tempo – felizmente, outras pessoas estão trabalhando nisso –, tem que progredir muito para além dos artigos que escrevi décadas atrás e também analisar o papel das mídias sociais, algoritmos, digitalização. Seria hora de um novo livro chamado “A nova transformação estrutural da esfera pública” e acho que há pessoas que estão em posição de escrever isso. Mas, novamente, eu mesma não estou fazendo esse tipo de trabalho há algum tempo.
Sobre a feminização da direita, chama a atenção a visibilidade das mulheres em movimentos que pensávamos como machistas, muito machistas. E, sim, em retrospecto, Phyllis Schlafly foi uma pioneira na forma como organizou a Campanha contra a Emenda por Direitos Iguais (também conhecida como Stop ERA) – que eu acho que os historiadores agora veem como algo que foi meio que inventado, provavelmente por homens, na John Birch Society e nesses outros movimentos de extrema direita: quando eles perceberam que não podiam mais defender o racismo de Jim Crow, eles encontraram outra coisa para aumentar seu movimento. Há uma série estadunidense de TV muito interessante sobre feminismo e a luta pela emenda de direitos iguais chamada Mrs. America, que termina com a própria Phyllis Schlafly muito desapontada. Ela pensou que estava se colocando em posição de ser secretária do gabinete no governo de [Ronald] Reagan depois de tudo o que fez para ajudar em sua eleição. Mas foi deixada de lado. Portanto, existe até uma história feminista sobre a própria marginalização de Schlafly.
Mas isso é história antiga e, como você disse, agora temos Meloni, temos Marine Le Pen, “Mães pela liberdade” e tudo isso à direita; e então temos Greta Gerwig, que certamente não se considera uma direitista – pelo contrário, uma cineasta progressista, bem-intencionada. Então, eu a distinguiria dessa comercialização capitalista de consumo, esse marketing de gênero regressivo de uma boneca, mas como você disse – pinkwashing –, essa é uma bela expressão, obrigado por isso. Então, estamos sendo atacados de ambos os lados, em outras palavras. E olha, não sei bem o que dizer, mas esse debate da Barbie tem uma história que remonta a todos os debates sobre a Madonna, aquele tipo de auto-objetivação como empoderamento.
Portanto, temos todas essas figuras na cultura consumista recente. São, de certa forma, figuras ambíguas; é empoderamento, é o contrário? Então esse é o debate – não vi o filme, mas esse é o debate em torno dele e as críticas que estou lendo até agora… Gerwig está, de alguma forma, tentando passar por cima dele, provavelmente as coisas não estão terminando como ela pretendia.
Isso tudo é extremamente importante e acho que o que podemos dizer – pelo menos em termos de direita – é que isso faz parte da normalização do extremismo de direita, que antes podia ser visto como um fenômeno de franja, é sobre humanização e normalização. Eles estão dando a esse movimento uma face suave. Mas de alguma forma há também uma atração genuína de certas mulheres por esses movimentos. Assim, mulheres ambiciosas podem vislumbrar uma forma de ascender dentro desses movimentos, e então a massa mais ampla de mulheres pode ver um rosto nesses movimentos, que é mais suave, mais agradável e mais atraente.
Quero dizer, sempre nos perguntamos como [Donald] Trump conseguiu a maioria dos votos das mulheres brancas em 2016, e isso gerou muita especulação, porque ele era abertamente predatório em suas próprias interações com as mulheres. Para algumas mulheres, pode ter sido atraente o fato de que ele era um lutador, ele nos protegeria mesmo que não gostássemos dos comentários sobre “agarrar a boceta” assim por diante. Ele mostrou que ele não tinha medo de defender aquilo em que acredita e, portanto, talvez pudesse nos proteger. Agora que adicionamos um segundo argumento, com as Meloni e as Le Pen e assim por diante, esses movimentos também têm um lugar para as mulheres como líderes, como figuras cativantes.
É muito interessante. Isso mostra que a apresentação de gênero do feminismo liberal não funcionou. Mostra também que se as feministas querem – e este é o argumento de nosso manifesto Feminismo para os 99% – fazer uma contrainiciativa a essa esquerda, temos que encontrar outras estratégias de apresentação, visuais e de autoapresentação.
ME – Para terminar, poderia falar um pouco sobre seu projeto novo e a investigação sobre as intersecções que você mencionou?
NF – Sim, estou trabalhando em um novo livro, com o título provisório de Three Phases of Labor: Uncovering the Hidden Ties Between Gender, Race and Class [Três fases do trabalho: desvelando as amarras ocultas entre gênero, raça e classe]. É uma obra inspirada em Black Reconstruction in America, de Du Bois, a qual argumenta que no século XIX os Estados Unidos tinham dois movimentos trabalhistas: o sindicalismo e o abolicionista.
Cada um deles estava tentando defender uma das faces do trabalho capitalista explorado e do trabalho expropriado. Em meus termos, eles deveriam ter – mas não o fizeram – reconhecido um ao outro como movimentos trabalhistas companheiros que poderiam unir forças e, se tivessem feito isso, poderiam ter mudado a história dos Estados Unidos e – possivelmente – do capitalismo global de forma mais ampla.
Gosto muito dessa ideia, acho que ainda é relevante hoje, mas também acho que há uma terceira face do trabalho capitalista: o trabalho reprodutivo. Assim, possivelmente, poderíamos conceituar como um terceiro movimento operário, não reconhecido – inclusive por suas próprias adesões, ou algumas delas –, denominado feminismo.
Então, estou tentando pensar na ideia de três faces do trabalho capitalista, que estão imbricadas em um sistema social, e que foram atribuídas a diferentes populações e deram origem ao que poderíamos pensar como três diferentes movimentos trabalhistas, que poderiam e deveriam ter se unido, mas não o fizeram. Então a pergunta é: eles podem se unir hoje?
Na próxima segunda-feira (15/04) às 14h, não perca o lançamento de Destinos do feminismo, de Nancy Fraser, com Angelita Mattos Souza e Bruna Della Torre, mediação de Beatriz Sanchez, na TV Boitempo:
A segunda onda do feminismo surgiu como uma luta pela libertação das mulheres e ocupou seu lugar ao lado de outros movimentos radicais. Mas a subsequente imersão do feminismo na política de identidade coincidiu com um declínio de suas utopias e com a ascensão do neoliberalismo. Em Destinos do feminismo, a filósofa Nancy Fraser defende um feminismo radical revigorado capaz de enfrentar os desafios atuais e a crise econômica global.
Os ensaios reunidos na obra foram escritos ao longo das últimas décadas e documentam as mudanças no imaginário feminista desde a década de 1970. O livro tem três partes. A primeira parte apresenta textos que situam o feminismo da segunda onda num campo mais amplo de lutas democratizantes e anticapitalistas. A segunda parte traça alterações subsequentes no imaginário feminista, como o deslizamento cultural mais amplo da política de igualdade para a política de identidade. São capítulos que diagnosticam os dilemas enfrentados pelos movimentos feministas em um período de neoliberalismo ascendente. A terceira e última parte contempla as perspectivas de um renascimento do radicalismo feminista em tempos de crise neoliberal.
Notas
1 São Paulo, Boitempo, no prelo. (N. E.)
2 Trad. Heci Regina Candiani, São Paulo, Boitempo, 2019. (N. E.)
3 Trad. Nathalie Bressiani, São Paulo, Boitempo, 2020. (N. E.)
4 Trad. Ana Cládia Lopes e Nathalie Bressiani, São Paulo, Boitempo, 2022. (N. E.)
5 Trad. Aline Scátola, São Paulo, Autonomia Literária, no prelo. (N. E.
* Transcrita por Renan Somogyi Rodrigues da Silva, a entrevista foi traduzida por Isabella Meucci e Allanis Ferreira, com revisão de Artur Renzo, Bruna Della Torre e Nathalie Bressiani.
6 O termo empregado por Fraser, em inglês, é “New Deal liberals”. O sentido estadunidense do termo “liberal”, no entanto, não equivale ao nosso. Historicamente associado às políticas do Partido Democrata, ele pode ser usado para descrever figuras da dita terceira via, como Bill Clinton, cujo governo aprofundou o desmonte do Estado de bem-estar social; ao mesmo tempo que pode comportar certo horizonte intervencionista, como no caso do Welfare State formulado pelo New Deal de Franklin Delano Roosevelt. No caso dos pais da autora, trata-se aqui do apoio às políticas sociais rooseveltianas que, após os anos de Depressão, criaram, por exemplo, um sistema previdenciário que incluía a estipulação do salário-mínimo, aposentadoria, seguro-desemprego, entre outros. Ou seja, esse liberalismo diz respeito ao caráter economicamente inclusivo das políticas sociais do período. (N. E.)
7 Trad. Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva, São Paulo, Edipro, 2015 [1964]. (N. E.)
8 A conferência “Marxism and Feminism” foi apresentada por Marcuse na universidade de Stanford no dia 7 de março de 1974, e posteriormente publicado em texto na revista Women’s Studies, 1974, v. 2, n.1, p. 279-88. [ed. bras.: “Marxismo e feminismo”, trad. Mariana Teixeira, Dissonância: Revista deTeoria Crítica, v. 2, n. 1.2 (Dossiê Herbert Marcuse, Parte 2), p. 77-90, jun. 2018.] (N. E.)
***
Nancy Fraser é professora de filosofia e política na cadeira Henry and Louise A. Loeb da New School for Social Research, na cidade de Nova York. Pela Boitempo, publicou Feminismo para os 99%: um manifesto (2019), em coautoria com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya, Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica (2020), em coautoria com Rahel Jaeggi, Justiça interrompida (2022) e Destinos do femismo (2024).
Bruna Della Torre é pós-doutoranda no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt (bolsista Max Horkheimer) e no Departamento de Sociologia na Unicamp (bolsista Fapesp), editora executiva da revista Crítica Marxista e membra da coletiva “Marxismo Feminista”. É autora do livro Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? (Alameda, 2019). Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.
Nathalie Bresciani é professora de filosofia na UFABC e pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap. Desenvolve pesquisa sobre teoria crítica e teoria feminista, temas sobre os quais publicou artigos, capítulos e resenhas. É uma das tradutoras da obra de Nancy Fraser para o português.
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