A esquerda que teme dizer a verdade
Hoje vivemos algo que ninguém pensou: a possibilidade de uma modernização desintegradora – o capitalismo como substância sujeito, pra ser pedante – que permanece de pé. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Claro! Nós somos os seus objetos, ele é o sujeito. Portanto, o mundo acaba e, como a substância espinosana, o capital continua!
ILUSTRAÇÃO: DAVID PLUNKERT
Por Douglas Barros
Este fato se deu no último final de semana no ateliê do Bixiga. Omitirei o nome das personagens, mas, além das cervejas, nos reteve uma vasta polêmica sobre os rumos da esquerda cujo idealismo, no sentido mais tétrico do termo, parece ter rompido o vínculo com a realidade. Entre umas pitadas de Florestan Fernandes e André Castro, passando por Paulo Arantes e Canettieri, chegamos numa conclusão assustadora: a verdade tinha mudado de lado. Paradoxalmente, quem a anunciava – apesar dos terraplanismos, das fake news, das abobrinhas religiosas – era a extrema-direita com uma simples proposição: o capitalismo é isso aí mesmo! Chamarei as personagens do debate de: X – para mim; Y – para um dos interlocutores, e; Z – para o outro. O esforço é rememorativo e os peço perdão se verem na criação do texto algo de uma ficcionalidade romântica ou o contrário.
CENARIO: várias mesas de madeira, num quintal cercado por uma construção dos anos 1930 em ruínas com tijolos de barro aparentes. Me dirijo ao fundo onde já se encontram bebendo e fumando, Y e Z
X
Gostaram do debate?
Sento e encho meu copo.
Y
Foi Massa!
Diz e dá um trago.
Z
Foi muito legal! Mas, queria saber uma coisa: o que tu acha que é esse fim de mundo que vivemos?
X
Cara, o nosso problema é fodido!… A gente fala de crise econômica, crise social… mas, o foda mesmo é que a gente vive também uma ruptura no nível simbólico! Isso é o foda! O capitalismo contemporâneo na sua revolução permanente, na sua constante transformação interna, não rompeu só com a ordem anterior, uma ordem fordista, ponto alto da revolução industrial que tinha inventado o tempo cronológico – o tempo de Marx –, ele rompeu com as nossas formas de significar, de construir uma interpretação de mundo coesa que possa orientar nossa ação comum. Tá ligado? Ele construiu um outro tipo de tempo; o da conexão global em que trocas são efetuadas 24 horas, 7 dias por semana, tudo realizado em tempo real através da conectividade, da captura de nossa atenção e de uma multiplicidade de ferramentas que aceleraram a vida social… a história é velha – dou um gole e sigo – o tempo no capitalismo é dinheiro, a gente sabe que a taxa de giro no processo de circulação é uma das formas fundamentais de realização do lucro. O lance que a gente precisa sempre repetir é que as finanças são construídas como tempo futuro monetizado, e se o crédito se baseia em tempo, então a velocidade é fundamental pra realização das transações. Um tempo que se acelera e que tem sua realização plena nas redes que nos tornaram o objeto dos algoritmos… isso rompe uma estrutura simbólica comum. Porra! É importante perceber isso: de um lado uma integração global da produção de distribuição da mercadoria com uma linguagem comum à mercantilização de todos os domínios, de outro uma personalização atômica de gostos, palavras e sons guiadas por uma identidade de pertencimento virtualmente recomendada por algoritmos. Aquela modernização dos nossos avós já era!…
Com um sobressalto da cadeira e uma leve batida de palmas, Y corta e diz:
Y
Porra! É isso que tô falando! Veja, quando a gente pensa em Florestan Fernandes1 – que aliás eu nem deveria ter lido porque fodeu minha tese – a gente vê lá que todo o movimento… eu estou falando do movimento negro… todo movimento era um movimento de integração nessa modernização que você tá falando que já era! E é isso: como pensar hoje num capitalismo que já não se importa em integrar senão os processos que organizam uma circulação que rompe a barreira do espaço e do tempo do fordismo? Como pensar na atuação dos movimentos que só pode se dar por uma colaboração via política pública matizada pelos aparatos burocráticos de uma casta política que está no Estado desde a época da ditadura? O problema é ainda mais absurdo: como pedir pra quem tá se fodendo trabalhando de 12 às 15 horas que… “espera um pouquinho que tudo vai dar certo, a gente vai fazer uma política aqui”…? Isso é maluquice!
Com um sorriso no rosto Z acrescenta enquanto com as mãos faz um cigarro de palha.
Z
A esquerda tomou o papel de dizer: “Olha, vou te ensinar o que você deve querer! Eu vou te ensinar o que você tem que desejar!”
Todos nós rimos e Y, após mais um gole, retoma a palavra:
Y
É! Não dá pra falar também de uma esquerda geral…
Interrompo-o e retruco:
X
Sim, claro! Mas dá pra falar de algo que atravessou de maneira hegemônica todo o campo da esquerda, desde a fundação da República, que é o sonho de integração ao capitalismo global. Um sonho que tem um motor: uma ideia de futuro integrado ao Estado de bem-estar social que nunca existiu e cujo alimento é a ideia de se tornar um país civilizado em que o trabalho, sempre ele, iria superar a herança colonial e quem sabe embranquecer o país.
Y
Exatamente! Exatamente! Você pega a história da esquerda no século XX, mesmo os mais radicais pensadores, daquilo que o Paulo [Arantes] chama de radicais de classe média até os comunistas partidários, o horizonte era desenvolvimentista e integracionista – porra, palavra feia, mas é! – Veja, o livro do André Castro é justamente uma demonstração de como até a teologia da libertação é interna a esse pressuposto de desenvolvimento.2 Quer dizer, cara, talvez, isso tenha a ver com a condenação de um país colonizado cuja independência política só se organizou por uma dependência econômica que impunha a necessidade de se integrar de maneira desigual ao sistema-mundo! Mas, a grande questão é que esse horizonte era partilhado por todo o mundo, mas com a crise dos anos 1970 isso ruiu e a pá de cal foi o colapso da experiência soviética que construiu a ideia de um capitalismo triunfante e abriu alas para o neoliberalismo como horizonte de expectativas. Tá ligado?
X
É aí que tem um ponto interessante: quando se rompe qualquer possibilidade de integração, por uma crise que se torna forma de gestão, e se organizam doses homeopáticas de contenção através da gestão da identidade, a esquerda perde o chão sob os pés. Primeiro, porque sustenta uma forma de integração impossível – quer dizer, cuja data de validade já mostrou seu vencimento com a insuperável crise do fordismo – e acredita que o caminho das políticas públicas é um caminho consistente – ou seja, no fundo, e sem saída no interior do que está posto, ela trabalha pela construção ideológica de um capitalismo de rosto humano; segundo, ao se tornar, nesse processo, a gestora da crise, a esquerda vira um dique que, pra sustentar a correnteza do descontentamento, tem que vender a ideia de que uma hora tudo vai melhorar e basta que a gente administre bem pra que as coisas funcionem. Ou seja, nisso que você tá dizendo tem uma ideia pragmática de que não há alternativas. A esquerda acredita, ainda que diga que não, nessa ideia, sua ação é toda voltada hoje pra gerir… o problema é que pra vender essa ideia ela tem que se afastar da verdade, do real do capitalismo contemporâneo. Não é à toa que a esquerda abandonou a crítica da economia política e abraçou a ideia de relativização da verdade quando o que se relativiza são as formas epistêmicas do conhecimento. A verdade é sempre a mesma.
Lançando fumaça dos pulmões aos céus Z entra com gozação:
Z
Ara! Que verdade o quê! Verdade é coisa de europeu pra esquerda brasileira. Fala isso numa sala de aula… verdade é sempre a mesma… será cancelado presencialmente! Mas sem brincadeira, pra se tornar administradora do capitalismo de crise, é real que a esquerda tenha que se afastar da verdade, deixar de lado a crítica ao capitalismo pra pensar na organização da gestão pública, etc., o problema é que a verdade palpita em todo lugar, enquanto a gente vira barreira de contenção, dizendo: “Brilhará uma estrela! Vai dar certo se a gente se unir! Olha, cachorro-louco, você tem que querer a CLT, hein!”; a extrema-direita, por outro lado, vai ao ponto e diz: “Cara, o capitalismo é isso aí mesmo! Se vira! Dá seus pulos! Prove que você é o mais forte! Se você se esforçar… blá, blá, blá!” E daí que a gente não pode esquecer; aceitar o papel da gestão se correlaciona com uma idealização, num péssimo sentido, que não se sustenta e organiza o campo da competição desenfreada. Mas tu acha que a gente pode abandonar a política pública?
Me perguntou Z e, surpreendido, redargui:
X
Essa noção de gerir o capitalismo numa era de crise permanente foi o que sobrou dos escombros do período áureo da modernização. A gestão das identidades é, a meu ver, o que sobrou diante de uma modernização não mais integradora. O trabalho e o desenvolvimento social não deram pé, o que sobra? Conter o descontentamento daquelas identidades organizadas no período colonial através de uma verdadeira engenharia que conta com milhares de cabeças pensantes e um verdadeiro exército ideológico contrainsurgente. A vigilância diuturna das identidades e a construção da representatividade como fim último da política. E daí pra explicar minha posição nisso é preciso dizer que pra mim a modernização não colapsou,3 ela só perdeu seu lado luminoso, radiante… pra brincar com o iluminismo. Hoje vivemos algo que ninguém pensou: a possibilidade de uma modernização desintegradora – o capitalismo como substância sujeito, pra ser pedante – que permanece de pé. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Claro! Nós somos os seus objetos, ele é o sujeito. Portanto, o mundo acaba e, como a substância espinosana, o capital continua! Diante disso, obviamente, não se pode abandonar um mínimo social que é essa única demandinha sob a qual se sustenta a política pública, mas é preciso olhar pra ela sem o romantismo da esquerda hegemônica que tornou a eleição o fim último de sua prática e a política pública seu fetiche.
Z com cara de incômodo após tragar seu cigarro retruca:
Z
No fundo o que você tá dizendo é que de certo modo a esquerda se tornou refém desse capitalismo de crise que opera a vigilância das identidades e tudo o mais… mas o que me interessou foi essa ideia de: qual o lugar da verdade hoje? Pego esse ponto porque, se é preciso gerir uma crise e não ir pra além dela, é preciso agir como se acreditasse; é preciso ter uma fé que não corresponde à realidade; é preciso saber o que faz e fazer mesmo assim. O que eu estou querendo dizer é que se a gente entra nessa, a gente derrapa porque a gente não pode assumir a verdade… a verdade é que o capital não integra e que é isso mesmo: uma guerra de todos contra todos por alguma reserva mínima de mercado. Se a gente é obrigado a não assumir a verdade, mas, a verdade não espera ninguém, então quando a extrema-direita diz: não há governo possível… porra, lembrei agora daquele livro dos neblineiros…4 numa reunião que Bolsonaro foi em Washington e ele dizia exatamente isso… não se trata de construir nada, não se trata de governar. Então é como se a extrema-direita hoje aponte pra verdade ao dizer que o capital é isso mesmo, desintegração, enquanto a esquerda busca um capitalismo de rosto humano. Bem, o Brasil já não tem pra onde ir senão voltar à violência no campo pra ofertar produtos primários… a recolonização do campo com trabalho escravo e disso ninguém fala a não ser meia dúzia de repórteres perdidos…
Y
O grande lance do livro do Thiago [Canettieri]5 é justamente esse: ele mostra de maneira perfeita como o Brasil vive um estado de anomia e ele concorda com X que o que enterrou a esquerda, que acredita na ordem, foram os tiros dados em Marielle. Daí que esse lance de rompimento do acordo simbólico é muito importante. Eu penso que isso se revela no descompasso de uma esquerda que funciona como a gerente do Estado, que hoje é um manager, e sua ideia de que o futuro ainda existe! Que a integração é possível! Olha.. que porra é essa de acreditar que o futuro ainda existe com o Rio Grande do Sul debaixo d’água por causa do início de um colapso ambiental que ninguém sabe mais onde vai parar! Daí você pergunta e recebe a mesma ladainha: “Vamos aguardar! Vamos nos juntar! We are the world!” E outra… a gente fala muito de fim de mundo, mas o fim de mundo é pra quem? Pra quem sempre se fodeu? Pro cara lá no Goiás que agora ganha dinheiro com arrendamento de terra pro agro? Porra! Vamo lá, né! Pra quem sempre se fodeu esse mundo que acabou nunca existiu… o que existiu foi o da sobrevivência radicalmente violenta! Pra esse cara do agro; o mundo agora é que começou! Fim de mundo pra quem então? A gente precisa responder: o mundo acabou faz tempo, porra! Agora o mundo está acabando pra essa classe média que apostava no Estado, na integração via serviço público, ou seja, a gente precisa dizer pra eles! Aliás a gente precisa gritar – Y de um sobressalto ergue-se da mesa com um copo em riste e brada: classe média, aqui presente, seja bem-vinda ao devir-negro do mundo! Sinto em informar, mas, dentre em breve, todos vocês sentirão o que nós negros sentimos desde que esse país foi fundado!
X
Amém!
Z
Amém!
E brindamos.
Notas
1 FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Contracorrente, 2021.
2 Castro em breve publicará o livro em questão: A luta que há nos deuses.
3 Aqui um esboço sobre uma crítica à crítica do valor que quem sabe saia nos próximos meses…
4 Um grupo de militantes na neblina. Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro.
5 CANETTIERI, T. Brasil-catástrofe: constelações da destruição que estamos vivendo. Rio de janeiro: Consequência, 2023.
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Douglas Rodrigues Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós-graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política. Escritor com três romances publicados, também é autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra) e Hegel e o sentido do político (lavrapalavra).
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