Precisamos de camaradagem
Por muito tempo, a retórica individualista do "autocuidado" eclipsou nosso senso de trabalho coletivo em busca de objetivos comuns. A camaradagem tem a ver com nossa responsabilidade uns pelos outros - e nos torna melhores e mais fortes do que jamais poderíamos ser sozinhos.
Foto: Mike Bird (Pexels)
Por Jodi Dean
Constantemente nos dizem que nossos problemas podem ser resolvidos com imaginação, grandes idéias e criatividade. Parece que novas idéias criativas não apenas resolverão a crise climática, mas também eliminarão desigualdades extremas e até triunfarão sobre o ódio racial. Estranhamente, esse apelo para “pensar grande” e ser “imaginativo” une todo mundo, desde as grandes empresas de tecnologia a ativistas socialistas, passando por políticos ordinários e adeptos do “comunismo de luxo totalmente automatizado”.
Essa aparente unidade nos impede de ver quão graves são os conflitos subjacentes em torno do capitalismo, das fronteiras, migração e recursos. Divisões escapam à visão, ocultadas pela fantasia de que poderia haver alguma ideia grande o suficiente, criativa o suficiente e imaginativa o suficiente a ponto de resolver todos os nossos problemas – e instantaneamente, pelo visto.
Assim é a ilusão que dirige o apelo à imaginação. Mas, na realidade, enfrentamos conflitos fundamentais sobre o futuro de nossas sociedades e do mundo. A mudança social não é indolor. Precisamos aceitar a realidade do antagonismo, saber de que lado estamos e lutar para fortalecer esse lado. Não precisamos convencer todo mundo. O que precisamos é convencer pessoas suficientes a se engajarem na luta, e vencer.
Grandes ideias não são nada sem quadros militantes para lutar por elas. No entanto, grande parte da esquerda contemporânea não conseguiu desenvolver e sustentar uma base de lutadores fortes, comprometidos e organizados. A disciplina do trabalho coletivo em nome de um objetivo compartilhado foi substituída por uma retórica individualista de conforto e autocuidado.
Essa retórica e as práticas correspondentes respondem a um problema real – a escassez de organizações políticas que tenham sentido para seus membros e apoiem suas necessidades. Na ausência de tais organizações, alguns ativistas de esquerda tratam as mídias sociais como uma saída política. Mas, dado o modo de indignação ininterrupta nas redes, ficar online como forma de ser politicamente ativo na esquerda pode ser uma experiência profundamente masoquista.
Os que deveriam estar do nosso lado são os que mais nos atacam. A mesma coisa acontece quando se formam grupos em torno de questões momentâneas para planejar ações conjuntas. Acostumados aos ataques e abusos dos fanáticos de direita mobilizados pelo capitalismo, nos ofendemos fácil e somos lentos em confiar uns nos outros. Apelar para o autocuidado aborda o sintoma, mas não a causa de nossa incapacidade política. Pois ignora o que realmente está faltando – uma relação política construída com base na solidariedade.
A história das organizações socialistas e comunistas nos dá uma figura que encarna essa relação – o camarada. Como um modo de endereçar, pertencimento e destinatário de expectativas, o camarada designa a relação entre aqueles que estão do mesmo lado de uma luta política. Indo além da ideia de política como uma mera questão de convicção individual, o camarada aponta para as expectativas de solidariedade necessárias para construir uma capacidade política compartilhada. Por causa das expectativas de nossos camaradas, comparecemos às reuniões que de outra forma perderíamos, realizamos trabalhos políticos que poderíamos procrastinar e tentamos cumprir nossas responsabilidades uns com os outros. Experimentamos a alegria da luta comprometida, de aprender pela prática. Superamos aqueles medos que podem nos dominar se formos forçados a enfrentá-los sozinhos. Nossos camaradas nos tornam melhores, mais fortes, para jamais nos sentirmos sozinhos.
Ódio racial em julgamento
Tomemos um exemplo da história do Partido Comunista dos EUA: um júri interno realizado no Harlem em 1931. O partido levou August Yokinen, um trabalhador finlandês, a julgamento por preconceito racial, por defender a superioridade branca e avançar pontos de vista prejudiciais à classe trabalhadora. Cerca de 1500 trabalhadores, negros e brancos, participaram do julgamento do partido, realizado no Harlem Casino, um dos maiores auditórios da região. Clarence Hathaway, o editor branco do jornal Daily Worker, apresentou o caso de acusação. Richard B. Moore, um dos oradores negros mais respeitados do partido, liderou a defesa de Yokinen. Um júri de quatorze trabalhadores, sete negros e sete brancos, proferiu o veredicto.
Yokinen era um dos três membros brancos do partido que estavam trabalhando na bilheteria do baile de dança do Clube Finlandês dos Trabalhadores do Harlem. Vários trabalhadores negros chegaram para o baile e só foram admitidos com relutância. Tendo conseguido entrar, foram tratados com tanta hostilidade que logo foram embora. Nenhum dos membros brancos do partido os acolheu ou os defendeu.
Durante a investigação do incidente pelo partido, os camaradas de Yokinen admitiram seu erro. Mas Yokinen tentou justificar seu comportamento, explicando que ele achava que os trabalhadores negros iriam para a piscina e que ele não queria tomar banho com pessoas negras.
Quando chegou o momento do julgamento do partido, Yokinen já havia reconhecido sua culpa e prometido retificá-la com trabalho concreto em favor da luta pela libertação do povo negro. A questão que restava perante o júri era então se Yokinen deveria ser expulso do partido por seu racismo e “chauvinismo branco” ou ser colocado em um período de suspensão supervisionada.
Os argumentos de Hathaway de acusação enfatizaram que Yokinen não apenas falhou em agir de acordo com as expectativas igualitárias do Partido Comunista, mas que esse mesmo fracasso o colocou do lado de linchadores e proprietários. Até a menor expressão de superioridade racial branca mina a solidariedade de classe e fortalece a burguesia. Quando Yokinen falhou em manter o compromisso do partido com a igualdade racial, ele deu aos trabalhadores negros boas razões para não esperar nada além de traição – do partido e de qualquer trabalhador branco.
Hathaway lembrou ao júri que, como a luta pelos direitos iguais dos negros era indispensável à luta proletária, o Partido Comunista tinha que provar – com ações – que estava comprometido em eliminar todos os vestígios de chauvinismo branco. Expulsar Yokinen demonstraria esse compromisso. Mas Hathaway também ofereceu a Yokinen um caminho de volta ao partido. Se Yokinen lutasse ativamente contra a supremacia branca, vendendo o jornal negro Liberator e relatando seu julgamento no Clube dos Trabalhadores Finlandeses, ele então poderia solicitar readmissão ao partido.
A defesa de Moore procurou mudar o foco para o inimigo real, a classe capitalista. Argumentou que foram os proprietários e a burguesia os que espalharam o veneno do ódio racial – auxiliados por sindicatos e oportunistas no movimento socialista. O argumento de Moore não era que Yokinen não deveria ser responsabilizado. Era que ninguém era inocente. É o imperialismo capitalista, como estrutura, que espalha a ideologia corrupta da superioridade branca.
Moore voltou sua crítica ao Partido Comunista, perguntando se o próprio partido havia feito o trabalho educacional necessário para enfrentar o ódio racial. Tinha desenvolvido programas para o movimento dos trabalhadores para explicar a importância da luta contra o linchamento? Havia feito o esforço colossal necessário para erradicar o preconceito? Moore declarou que a resposta era “não”. O partido era cúmplice do crime de Yokinen. Moore concluiu assim que a autocrítica, não a expulsão, era o melhor caminho. A autocrítica permitiria ao partido provar seu compromisso por meio de suas ações. Um benefício adicional, argumentou Moore, era que a autocrítica salvaria Yokinen para a luta, um fator crucial quando cada trabalhador precisa estar envolvido no esforço de derrubar o sistema.
Em seu resumo, Moore lembrou ao júri a seriedade de uma expulsão do Partido Comunista. “Prefiro que minha cabeça seja arrancada do corpo por capitalistas linchadores do que ser expulso da Internacional Comunista”, disse. Ele quis dizer que ser separado do partido, separado dos camaradas e privado de sua camaradagem, é um destino pior que a morte. É o tipo de morte social em que um trabalhador se torna um forasteiro de seu próprio movimento, tão ruim quanto os próprios capitalistas.
Moore concluiu que Yokinen deveria ser condenado, mas mais importante é condenar o capitalismo pela miséria, preconceito, terror e linchamento que gera. O partido precisava redimir e educar o camarada, para lhe dar uma chance de se provar a si mesmo. O partido também teria que se envolver em uma luta implacável contra o chauvinismo branco e tudo mais que ameaçasse a unidade de classe.
O júri considerou Yokinen culpado – nada surpreendente, uma vez que ele já havia admitido sua culpa. E concordaram em expulsá-lo, mas ficaram divididos sobre se a expulsão deveria durar seis ou doze meses. Eles acataram as sugestões da promotoria sobre as maneiras pelas quais Yokinen poderia corrigir seus erros, vendendo o Liberator e lutando contra o chauvinismo branco. Ao final, apesar de Yokinen ter sido expulso, ele permaneceu um camarada. O julgamento resultou em uma decisão que afirmou seu papel na luta de classes, um papel focado na construção da unidade entre trabalhadores brancos e negros. O partido não o limou e forneceu-lhe um caminho de volta.
No dia seguinte ao julgamento, Yokinen foi preso e retido para deportação. A International Labor Defense (IDL – Defensoria Internacional do Trabalho), ligada à Internacional Comunista, o defendeu durante suas audiências de deportação.
Do mesmo lado
O julgamento de Yokinen ensina uma série de lições que os socialistas contemporâneos fariam bem em reaprender: lições sobre camaradagem. O primeiro conjunto de lições é sobre estar do mesmo lado. A acusação e a defesa compartilhavam os mesmos princípios e objetivos: a unidade da classe trabalhadora, a abolição da supremacia branca, a necessidade de igualdade racial na vida cotidiana, a revolução proletária. Princípios comuns permitiram discernir e nomear o inimigo comum – capitalistas e proprietários defendendo a supremacia branca e a lei do linchamento. Qualquer um que aceitasse esses princípios era um camarada, mesmo quando errava. O fato de serem camaradas significava que eram valiosos para a luta. Eles só precisavam ser ensinados, treinados. A revolução precisa de tantos recrutas quanto possível.
O segundo conjunto de lições segue o valor da autocrítica coletiva. Se um de nossos camaradas errar, nós compartilhamos a responsabilidade por isso. O que poderíamos ter feito para evitar o erro? Que tipo de instrução ou orientação poderíamos ter fornecido? Estamos todos imersos na ideologia racista do capitalismo o tempo todo. Precisamos nos apoiar na luta contra isso. Devemos condenar ações que reforcem a supremacia branca e condenar ainda mais fortemente o sistema que a reproduz.
Finalmente, o terceiro conjunto de lições envolve o caminho de volta. Em contraste com o identitarismo tóxico, que Mark Fisher apelidou de “castelo dos vampiros”, e a cultura perniciosa de “cancelamento” que circula entre os esquerdistas das mídias sociais, no caso Yokinen, o Partido Comunista buscava unidade. Buscou práticas que construíssem essa unidade, e não práticas que a desfizessem. Mesmo alguém expulso do partido não estava completamente condenado. De fato, quando teve que enfrentar o poder agressivo do Estado imperialista, o partido assumiu a frente em sua defesa. Yokinen ainda estava do mesmo lado que os comunistas. Ainda era um camarada. Yokinen aceitou a decisão do partido sobre o trabalho que precisava realizar para combater a supremacia branca e construir a unidade da classe trabalhadora. O que estava em jogo não era o moralismo – a necessidade de um “pedido de desculpas” – ou um julgamento individualista sobre sua atitude. O que importava era fazer o trabalho que a luta revolucionária exige.
Disciplina
Para muitos na esquerda contemporânea, disciplina é uma palavra ruim. Não vêem apenas a disciplina como uma ameaça à liberdade individual, mas são céticos em relação à participação política intensa de qualquer tipo. Enxergando a disciplina camarada apenas como restrição e não como uma decisão de desenvolver capacidade coletiva, substituem a concretude da luta política pela fantasia de que a política possa ser individual. Essa substituição ignora o fato de que a camaradagem é uma escolha voluntária – tanto para quem se une, como para o partido. Também ignora a qualidade libertadora da disciplina, pois quando temos camaradas somos liberados da obrigação de ser, conhecer e fazer tudo por conta própria; em vez disso, existe um coletivo maior com uma linha, programa e conjunto de tarefas e objetivos que nos reúne. Somos liberados do cinismo que posa de maturidade pelo otimismo prático que o trabalho fiel gera. A disciplina fornece o suporte que nos liberta para cometer erros, aprender e crescer. Quando erramos – e cada um de nós certamente errará – nossos camaradas estarão lá para nos levantar, sacudir a poeira e nos colocar no caminho acertado. Não estamos abandonados para caminhar a sós.
Os esquerdistas não-filiados e não-organizados permanecem frequentemente fascinados pela ilusão de que as, assim chamadas, “pessoas comuns” irão criar, espontaneamente, novas formas de vida que conduzirão a um futuro glorioso. Essa ilusão falha em reconhecer as privações e carências debilitantes que quarenta anos de neoliberalismo infligiram à massa da população. Se fosse verdade que austeridade, dívida, colapso de infraestruturas institucionais e fuga de capitais poderiam permitir o surgimento espontâneo de formas igualitárias de vida, não veríamos as enormes desigualdades econômicas, a intensificação da violência racializada, o declínio da expectativa de vida e a morte lenta, a falta de água não potável, a militarização do policiamento e da vigilância, bairros urbanos e suburbanos desolados que hoje formam o cenário comum.
Exaustão de recursos naturais também inclui a exaustão de recursos humanos. Muitas vezes as pessoas querem fazer algo, mas não sabem o que fazer ou como fazer. Elas podem estar isoladas em locais de trabalho não-sindicalizados, sobrecarregados por vários empregos de horário flexível, cuidando de amigos e familiares. A organização disciplinada – a disciplina de camaradas comprometidos com a luta comum por um futuro igualitário emancipatório – pode ajudar aqui. Às vezes, queremos e precisamos de alguém para nos orientar o que fazer, porque estamos cansados demais para descobrir sozinhos. Às vezes, quando nos é dada uma tarefa como camarada, sentimos que nossos pequenos esforços têm maior significado e propósito, talvez até um significado histórico mundial na luta milenar do povo contra a opressão. Às vezes, apenas o fato de saber que temos camaradas que compartilham nossos compromissos, nossas alegrias e nossos esforços para aprender com as derrotas torna o trabalho político possível onde não era antes.
Publicado originalmente no site Jacobina em 19 de novembro de 2019. A tradução é de Victor Marques.
Não perca Jodi Dean em São Paulo na próxima segunda-feira (24 de junho) às 19h, em debate com José Dirceu, com mediação de Carolina Iara, na Tapera Taperá (Avenida São Luis, n.187, 2º andar, loja 29 – República):
Camarada: um ensaio sobre pertencimento político, de Jodi Dean
No século XX, milhões de pessoas em todo o globo se dirigiam umas às outras como “camarada”. Hoje, em círculos de esquerda é mais comum ouvir falar em “aliados”. Neste livro, Jodi Dean insiste no fato de que essa mudança exemplifica o problema fundamental da esquerda contemporânea: a sobreposição da identidade política a uma relação de pertencimento político que precisa ser construída, sustentada e defendida. Neste ensaio com recortes e análises bastante originais, Dean nos oferece uma teoria da camaradagem. Camaradas são pessoas que se encontram de um mesmo lado de uma luta política. Unindo-se voluntariamente por justiça, sua relação é caracterizada por disciplina, coragem e entusiasmo.
Multidões e partido, de Jodi Dean
Como agrupamentos de pessoas viram movimentos organizados? Rejeitando a ênfase em indivíduos e multiplicidades, Multidões e partido reitera a necessidade de repensar o sujeito coletivo da política e demonstra a importância de ver o partido enquanto organização capaz de revigorar a prática política. Ensaio sintético com recorte e análise bastante originais, reabilita tradição e prática comunistas clássicas sem apelo a tradicionalismo ou nostalgia, mobilizando linguagem, abordagem e arcabouço teórico ancorados na atualidade política e na filosofia e teoria social contemporâneas.
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Jodi Dean é professora de teoria política, feminista e de mídia em Nova York, onde também está engajada em trabalho político de base. Criada no Mississippi e no Alabama, ela se formou na Universidade Princeton e obteve seus títulos de mestrado e PhD na Universidade Columbia. Seus livros abordam temas como solidariedade, condições de possibilidade para a democracia, capitalismo comunicativo e necessidade de construir uma política que tenha o comunismo como horizonte. Pela Boitempo publicou Camarada: um ensaio sobre pertencimento político (2021) e Multidões e partido (2022).
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