Condenados os assassinos de Marielle e Anderson, mas crer na justiça ainda requer coragem
É preciso coragem para lutar por justiça no Brasil, para enfrentar as milícias, os desmandos, o apagamento e a distorção da memória, a violência política, o coronelismo, que ainda é a tônica do jeitinho brasileiro, mas é muito melhor se essa coragem for coletiva. A coragem de milhares de pessoas que acreditam que a justiça não é a letra da lei, mas a reparação de tantas desigualdades. Essa sim é a justiça que Marielle e Anderson merecem.
Foto: acervo pessoal.
Por Monica Benicio.
31 de outubro de 2024. Depois de 6 anos e 7 meses de espera, temos duas condenações das mais esperadas dos últimos anos no Brasil: os executores da minha esposa, a Vereadora Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes. Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, que metralharam seu carro no dia 14 de março de 2018, foram condenados pelo júri popular. Ainda esperamos pelo julgamento de Domingos Brazão, Chiquinho Brazão, e do ex-delegado de polícia Rivaldo Barbosa, presos desde março deste ano, indiciados como mandantes do crime. O processo dos mentores intelectuais está na competência do STF, e a expectativa é de que o julgamento aconteça ainda este ano, dando um desfecho para o crime mais emblemático da história recente do nosso país.
Não foi fácil chegar até aqui hoje. Nesses quase 7 anos que se passaram, todos os dias foram de espera por respostas, uma angústia que só aumenta a dor da saudade. A vida completamente revirada por um crime político que ganhou repercussão mundial, sem conseguir processar o luto ou ver sentido para o que aconteceu, com a vida ameaçada, sem saber de quem se proteger, convivendo com a desconfiança, com a dor dilacerante que está na ausência dela que cobre tudo, tendo que me desfazer de sonhos, planos e memórias e, ainda assim, revisitando elas diariamente no caminho por justiça. Se me contassem que seria assim, eu diria com toda a certeza que eu não aguentaria passar por isso tudo.
A viúva Monica Benicio com uma réplica de placa de Marielle Franco , em frente à Câmara, na Cinelândia, no dia em que o assassinato da vereadora completava sete meses.
Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)
Lutar por justiça no Brasil é um desafio devastador. Duas horas depois do crime, circulavam fake news sobre a Marielle para condená-la pelo seu próprio assassinato, em poucos meses a investigação foi obstruída, descobriu-se recentemente que o homem que consolou e abraçou a família dias depois do crime era conivente e tinha a tarefa de não deixar a investigação andar, promotoras saíram do caso, testemunhas foram mortas. O tempo passava como que para nos convencer de que não valia a pena. Todo esse tempo, inclusive, gasto tentando elaborar de alguma forma essa perda que jamais deixaria de ser sentida.
No dia do julgamento, a necessidade ainda de provar porque Marielle merecia estar viva, como se a suspeita fosse ela. Relembrar tudo com riqueza de detalhes, ouvir seus assassinos contarem com frieza como planejaram tudo e perceber todos os momentos em que eles estiveram à espreita, sem que soubéssemos, sem que desconfiássemos. Na esquina da nossa casa, no restaurante em que íamos jantar. A dor dilacerante dessa revitimização que é recompor tudo diante de um tribunal.
Todos esses elementos, que fizeram parte desse caso, mas que são na verdade comuns a tantas outras vítimas do Estado, de crimes hediondos contra mulheres, do assassinato de pessoas negras, são brutais para quem busca por justiça. Ao mesmo tempo em que é a única coisa possível a se fazer quando você perde quem se ama dessa forma, é extenuante passar por tudo isso, é adoecedor e é uma violência que marca profundamente as nossas existências.
O crime que executou Marielle, uma vereadora socialista, negra, mãe, LGBT, a quinta mais votada da cidade, no centro de uma das maiores capitais do Brasil, está chegando agora, após 6 anos e 7 meses, a um desfecho pela lei dos homens. Os executores foram condenados. Mas essa é apenas a justiça da lei para o dia 14 de março de 2018. Quem, porém, vai trazer a justiça, a reparação por todo esse trajeto de destruição, horror e dor que ele deixou pelo caminho desde então?
Como ficam as famílias no caso do DG, por exemplo, onde a justiça demorou 10 anos para levar 7 policiais, acusados do assassinato do dançarino de um programa de domingo da maior emissora de TV do país, a júri popular e saíram TODOS absolvidos por unanimidade? Que sociedade é essa? Como um júri absolve um policial que declara que atirou em Douglas pelas costas, desarmado, enquanto o dançarino fugia do tiroteio no Pavão Pavãozinho, uma favela na Zona Sul do Rio de Janeiro? Por que nem a carteira assinada em um trabalho de tão grande visibilidade, apadrinhado por tanta gente famosa, ajudaram a fazer justiça?
Como lutar por justiça vendo o julgamento do assassino de Jonathan Oliveira, condenado por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) depois de 10 longos anos de uma luta incansável por justiça de sua mãe, Ana Paula? Jonathan tinha 19 anos, foi morto com um tiro nas costas por um policial que havia sido condenado um ano antes por homicídio triplamente qualificado e que nem sequer lhe prestou socorro. Não houve intenção de matar? Ana Paula é uma das fundadoras do movimento Mães de Manguinhos e uma das maiores referências no movimento de mães vítimas do Estado. Como aguentar um país em que o óbvio não é visto? Que tortura mães, esposas, familiares até quando chega a chance de um julgamento?
É, sem sombra de dúvida, um alívio saber que Lessa e Queiroz saíram do tribunal condenados. Mas esse julgamento é também a exceção que confirma a regra. Marielle dedicou sua vida para lutar ao lado daqueles e daquelas que cotidianamente são injustiçados pelo Estado. Sua luta pelos direitos humanos era a luta pelo direito à vida, um direito essencial até hoje negado à população preta e favelada. Esquecer deles seria uma injustiça com a memória dela.
Foto: Arquivo pessoal.
É preciso que essa condenação, ainda que tardia, abra margem para debatermos francamente em sociedade o que é o direito à justiça e como construir um caminho verdadeiro de acolhimento e reparação aos familiares de vítimas do Estado.
Marielle era uma vereadora eleita que foi morta com munição do Estado brasileiro. Isso é um grave atentado à nossa democracia. A essa democracia que não chega a boa parte de seus cidadãos. Em diversos momentos do julgamento se escancarou a falência das nossas instituições na garantia de direitos. Durante todo o depoimento, os réus trataram de forma muito natural que a Polícia Militar é uma máquina de extermínio, que condecora matadores, onde um policial proativo é um policial com muitas mortes nas costas.
Escancarou também o abismo do padrão de vida daqueles que se beneficiam do crime por dentro de gravatas e fardas. Homens brancos, moradores da Barra da Tijuca, movimentando milhões de reais. Ao contrário do que o senso comum presume como o perfil do suspeito. Mostrou como funciona a política para aqueles que dominam territórios de forma ilegal e coercitiva e que não temem assassinar opositores e qualquer um que atravesse seu caminho. Se, diante de tudo isso, acharmos que essa história termina aqui, não aprendemos nada com Marielle.
É preciso coragem para lutar por justiça no Brasil, para enfrentar as milícias, os desmandos, o apagamento e a distorção da memória, a violência política, o coronelismo, que ainda é a tônica do jeitinho brasileiro, mas é muito melhor se essa coragem for coletiva. A coragem de milhares de pessoas que acreditam que a justiça não é a letra da lei, mas a reparação de tantas desigualdades. Essa sim é a justiça que Marielle e Anderson merecem.
Ainda não acabou, teremos o resultado do julgamento do STF e a tarefa histórica de construir um legado a partir da memória de uma grande defensora dos direitos humanos, mulher negra, LGBT e socialista e, não menos importante, o amor que me tomou de pronto durante toda a vida. Marielle, JUSTIÇA!
Monica Benicio com Nora Cortiñas, do movimento ‘Mães e Avós da Praça de Maio’, em homenagem a Marielle Franco realizada no Senado argentino.
Foto: Emergentes.
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Monica Benicio é vereadora lésbica e feminista, militante de direitos humanos e ativista LGBTQIAP+. Arquiteta urbanista formada pela PUC-Rio, onde também se tornou mestra em Arquitetura, na área de “Violência e Direito à Cidade”. Nascida e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro.
Desde a execução de sua companheira, Marielle Franco, em 14 de março de 2018, vem se dedicando incansavelmente na luta por justiça para este crime bárbaro, se tornando referência internacional na defesa dos direitos humanos.
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