Em defesa da família tentacular

Imagem: Metropolitan Museum of Art (Wikimedia Commons)

Por Maria Rita Kehl

Uma das queixas que os psicanalistas mais escutam em seus consultórios é esta: “Eu queria tanto ter uma família normal!”. Adolescentes filhos de pais separados ressentem-se da ausência do pai (ou da mãe) no lar. Mulheres sozinhas queixam-se de que não conseguiram constituir famílias, e mulheres separadas acusam a si próprias de não terem sido capazes de conservar as suas. Homens divorciados perseguem uma segunda chance de formar uma família. Mães solteiras morrem de culpa porque não deram aos filhos uma “verdadeira família”. E os jovens solteiros depositam grandes esperanças na possibilidade de constituir famílias diferentes — isto é, melhores — daquelas de onde vieram. Acima de toda essa falação, paira um discurso institucional que responsabiliza a dissolução da família pelo quadro de degradação social em que vivemos.

Os enunciadores desse discurso podem ser juristas, pedagogos, religiosos, psicólogos. A imprensa é seu veículo privilegiado: a cada ano, muitas vezes por ano, jornais e revistas entrevistam “profissionais da área” para enfatizar a relação entre a dissolução da família tal como a conhecíamos até a primeira metade do século XX e a delinquência juvenil, a violência, as drogadições, a desorientação dos jovens etc. Como se acreditassem que a família é o núcleo de transmissão de poder que pode e deve arcar, sozinha, com todo o edifício da moralidade e da ordem nacionais. Como se a crise social que afeta todo o país não tivesse nenhuma relação com a degradação dos espaços públicos que vem ocorrendo sistematicamente no Brasil, atingindo particularmente as camadas mais pobres há quase quarenta anos. E sobretudo como se ignorassem o que nós, psicanalistas, não podemos jamais esquecer: a família nuclear “normal”, monogâmica, patriarcal e endogâmica, que predominou entre o início do século XIX até meados do XX no Ocidente (tão pouco tempo? pois é…), foi o grande laboratório das neuroses tal como a psicanálise, justamente naquele período, veio a conhecer.

A cada novo censo demográfico realizado no Brasil, renova-se a evidência de que a família não é mais a mesma. Mas “a mesma” em relação a quê? Onde se situa o marco zero em relação ao qual medimos o grau de “dissolução” da família contemporânea? A frase “a família não é mais a mesma” já indica a crença de que em algum momento a família brasileira teria correspondido a um padrão fora da história. Indica que avaliamos nossa vida familiar em comparação a um modelo de família idealizado, modelo que correspondeu às necessidades da sociedade burguesa emergente em meados do século XIX. De fato, estudos demográficos recentes indicam tendências de afastamento em relação a esse padrão, que as classes médias brasileiras adotaram como ideal.

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Nesse cenário de extrema mobilidade das configurações familiares, novas formas de convívio vêm sendo improvisadas em torno da necessidade — que não se alterou — de criar os filhos, frutos de uniões amorosas temporárias que nenhuma lei, de Deus ou dos homens, consegue mais obrigar a que se eternizem. A sociedade contemporânea, regida acima de tudo por leis de mercado que disseminam imperativos de bem-estar, prazer e satisfação imediata de todos os desejos, só reconhece o amor e a realização sexual como fundamentos legítimos das uniões conjugais. A liberdade de escolha que essa mudança moral proporciona, a possibilidade (real) de tentar corrigir um sem-número de vezes o próprio destino, cobra seu preço em desamparo e mal-estar. O desamparo se faz sentir porque a família deixou de ser uma sólida instituição para se transformar num agrupamento circunstancial e precário, regido pela lei menos confiável entre os humanos: a lei dos afetos e dos impulsos sexuais. O mal-estar vem da dívida que cobramos ao comparar a família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos pais. Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos. Ou com o ideal de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores, que não necessariamente o realizaram. Até onde teremos de recuar no tempo para encontrar a família ideal com a qual comparamos as nossas?

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Não é necessário retroceder até as revoluções burguesas europeias para procurar o que se perdeu no Ocidente, e particularmente no Brasil, a partir dos anos 1950. Basta recordar o que foi a “tradicional família brasileira” para perguntar: o que estamos lamentando que tenha se perdido ou transformado? Será que a sociedade seria mais saudável se ainda se mantivesse organizada nos moldes das grandes famílias rurais, a um só tempo protegidas e oprimidas pelo patriarca da casa grande que controlava a sexualidade das mulheres e o destino dos varões? Temos saudade da família organizada em torno do patriarca fundiário, com sua contrapartida de filhos ilegítimos abandonados na senzala ou na colônia, a esposa oficial calada e suspirosa, os filhos obedientes e temerosos do pai, dentre os quais se destacariam um ou dois futuros aprendizes de tiranete doméstico? O sentimento retroativo de conforto e segurança que projetamos nostalgicamente sobre o patriarcado rural brasileiro não seria, como bem apontou Roberto Schwarz em “As ideias fora do lugar”, tributário da exploração do trabalho escravo, que o Brasil foi o último país a abolir já quase às portas do século XX?

Ou será que temos saudade da família emergente das classes médias urbanas, fechada sobre si mesma, incestuosa como em um drama de Nelson Rodrigues, temerosa de qualquer contágio com membros da camada imediatamente inferior, mantidos à distância às custas de preconceitos e restrições absurdas? Saudades das famílias “de bem” que viviam atemorizadas em relação aos próprios vizinhos, com medo de cada nova fase da vida, apavoradas com a sexualidade dos filhos e filhas adolescentes — maledicentes e invejosas da vida alheia, administrando a vida conjugal como se administra um pequeno negócio? Saudades dos casamentos induzidos a partir de namoros quase endogâmicos, rigorosamente restritos a gente do nosso nível e mantidos à custa da dependência econômica, da inexperiência sexual e da alienação das mulheres?

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De certa forma, a família desprivatizou-se a partir da segunda metade do século XX, não porque o espaço público tenha voltado a ter a importância que teve na vida social até o século XVIII, mas porque o núcleo central da família contemporânea foi implodido, atravessado pelo contato íntimo com adultos, adolescentes e crianças vindas de outras famílias. Na confusa árvore genealógica da família tentacular, irmãos não consanguíneos convivem com “padrastos” ou “madrastas” (na falta de termos melhores), às vezes já de uma segunda ou terceira união de um de seus pais, acumulando vínculos profundos com pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas. Cada uma dessas árvores super ramificadas guarda o traçado das moções de desejo dos adultos ao longo das várias fases de suas vidas — desejo errático, tornado ainda mais complexo no quadro de uma cultura que possibilita e exige dos sujeitos que lutem incansavelmente para satisfazer suas fantasias.

É importante observar também o papel da mídia, particularmente da televisão, doméstica e onipresente, no rompimento do isolamento familiar e, consequentemente, na dificuldade crescente dos pais de controlar o que vai ser transmitido a seus filhos. A família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais arejada que a família estável no padrão oitocentista, traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido, em que aquele par apostou, na falta de um padrão que corresponda às novas composições familiares, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado. Ideal que não deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje. Ideal que, se não for superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível.


Tempo esquisito, de Maria Rita Kehl
A coletânea de ensaios traz para o leitor um conjunto de reflexões e análises feitas durante o período da quarentena da covid-19: “Diante de tanta tristeza, escrever foi uma forma de ocupar o espaço do debate público sem romper o isolamento físico. Uma forma de estar com os outros”, conta a autora no prólogo. Nos textos, além da questão da saúde pública, Kehl aborda temas recorrentes desde 2019 – início do mandato de Jair Bolsonaro na presidência –, como violência policial, desigualdade social e outros. Há artigos, por exemplo, sobre o linchamento do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, em 2021, e também sobre o assassinato de Genivaldo dos Santos, morto pela Polícia Rodoviária Federal, em 2022, em Sergipe. Além, é claro, do olhar sempre voltado à psicanálise, campo principal de atuação da autora.

Videologias: ensaios sobre televisão, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl
Com pouco mais de 50 anos de existência, é onipresente. É impossível ignorá-la ou pensar o mundo hoje sem considerá-la. É a televisão. O livro de Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci, é, desde o trocadilho no título com a célebre obra Mitologias, de Roland Barthes, uma obra que une visão crítica e psicanálise para dissecar as relações entre mitologias, ideologias e televisão.

O tempo e o cão: a atualidade das depressões, de Maria Rita Kehl
Escrito a partir de experiências e reflexões sobre o contato com pacientes depressivos, o livro aborda um tema que, apesar de muito comentado, é pouco compreendido e menos ainda aceito atualmente. Para abordá-lo, Maria Rita faz um apanhado do lugar simbólico ocupado pela melancolia, desde a antiguidade clássica até meados do século XX, quando Freud trouxe esse significante do campo das representações estéticas para o da clínica psicanalítica.

Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, de Maria Rita Kehl
A obra questiona as relações que se estabelecem entre a mulher, a posição feminina e a feminilidade na clínica psicanalítica. Existe uma diferença irredutível entre homens e mulheres, afinal? Partindo da defesa de uma ‘mínima diferença’, um modo de ser e de desejar através do qual homens e mulheres assumem papéis distintos na sociedade, a autora investiga o campo a partir do qual as mulheres se constituem como sujeitos, de modo a contribuir para ampliá-lo.

Bovarismo brasileiro, de Maria Rita Kehl
Conjunto de ensaios marcantes sobre temas que abarcam desde a literatura de Machado de Assis até um estudo de caso, passando por reflexões acerca das origens do samba, do manguebeat, do período de expansão da rede Globo e da primeira campanha de Lula. Para dar liga às suas análises, a autora vale-se do conceito de bovarismo, cunhado pelo filósofo e psicólogo Jules de Gaultier com base na personagem Emma Bovary, de Gustave Flaubert, uma ambiciosa e sonhadora pequeno-burguesa de província que, à força de ter alimentado sua imaginação adolescente com literatura romanesca, ambicionou ‘tornar-se outra’ em relação ao destino que lhe era predestinado.

Ressentimento, de Maria Rita Kehl
O livro aborda a conceitualização do ressentimento a partir de quatro pontos de vista: a clínica psicanalítica, a filosofia de Nietzsche e Espinosa, a produção literária e o campo político. O ressentimento não é um conceito clássico da psicanálise; assim, Maria Rita Kehl mobiliza tanto as suas observações clínicas quanto conhecimentos de outras áreas para definir e explicar a constelação afetiva que forma o ressentimento.

Neném outra vez!, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho
A divertida incursão de Maria Rita Kehl na literatura infantil aborda o ciúme entre irmãos como pretexto para falar sobre questões mais profundas com as crianças, como o poder da vontade, o amor próprio e aceitação de mudanças na vida. O livro é ilustrado pela cartunista Laerte Coutinho.

O disco-pizza, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho
Gil é um garotinho de sete anos que tem muita vontade de comemorar o Natal. Sua família diz que é uma data comercial e, por isso, eles nunca fazem os tradicionais festejos em casa. O menino até concorda com a decisão, mas pensa que seria bacana uma árvore cheia de bolas coloridas e luzinhas, presentes ao pé da cama e muita coisa gostosa para comer. Maria Rita Kehl e Laerte trazem ao leitor essa nova obra cheia de criatividade e ressignificação de tradições.

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Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua, desde 1981, como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, com a obra O tempo e o cão: a atualidade das depressões publicada por nossa casa. Também pela Boitempo, publicou Tempo esquisitoVideologias: ensaios sobre televisão (em coautoria com Eugênio Bucci), 18 crônicas e mais algumasDeslocamentos do femininoBovarismo brasileiro e Ressentimento. Pela Boitatá publicou, em parceria com Laerte Coutinho, Neném outra vez! e O disco-pizza

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