“Mal de família”: humor ácido contra a misoginia

Foto: Divulgação

Por Cauana Mestre

Se você é mulher, certamente já viveu uma relação abusiva ou, pelo menos, acompanhou a relação abusiva de alguma mulher que você conhece. Se você é homem, em algum momento é muito provável que você tenha sido abusivo ou assistido às ações abusivas de homens muito próximos a você. E se nunca pensou a respeito disso, comece a prestar atenção. Esse é o recado primordial da série Bad Sisters (em português, Mal de família), da Apple TV.

Desenvolvida por Sharon Horgan, Dave Finkel e Brett Baer, a produção encena brilhantemente essa coisa adorável que é o humor ácido. Como nos ensina Freud, esse tipo de humor tem o poder de dizer as coisas mais importantes e difíceis de um jeito único e impactante, impossível de esquecer.

As irmãs Garvey — Eva (Sharon Horgan), Ursula (Eva Birthistle), Bibi (Sarah Greene) e Becka (Eve Hewson) — assistem ao definhamento da quinta irmã, Grace (Anne-Marie Duff), que aos poucos vai perdendo seu brilho e doçura por ser casada com John Paul, the prick (em bom português, “o escroto”). Ele é o pior, mas também o mais comum dos homens; o papel é interpretado magistralmente por Claes Bang. A história é a mais manjada desde que começamos a destrinchar a lógica operante na misoginia: ciúmes e possessividade; humilhações seguidas de pedidos afetivos de perdão; alienação financeira; agressividade latente, velada por juras de amor; confinamento psicológico e violência física. Se você não conhece nenhum homem que age ou agiu assim é porque não está olhando direito.

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A cena inicial do primeiro episódio mostra Grace, ao lado do caixão em que jaz o corpo do marido, tentando fazer descer o pênis que insiste em ficar ereto. A cena é divertidíssima e dá o tom em que a série vai se desenrolar com maestria, provando que o apreço pela ereção a qualquer custo é a prova irrefutável do pior tipo de virilidade, aquela que se fundamenta na insegurança masculina e que se transforma em violência num piscar de olhos.

Depois da cena do funeral, voltamos seis meses no tempo para ver as quatro irmãs, desesperadas diante do apagamento de Grace, decidindo tomar uma atitude. Até o final da primeira temporada, não sabemos qual é o destino desse plano e quem o executa, mas sabemos que JP morreu e que sua morte foi merecidamente singular. As tentativas das irmãs de colocar um basta na vida do cunhado são hilárias e intercaladas com momentos de muita raiva pelas violências que ele distribui às mulheres — em algum momento eu cheguei a levantar do sofá e gritar, como se o prick pudesse me ouvir esbravejando frente à televisão.

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Nota máxima para o elenco e para o roteiro, tão simples quanto genial, e que ilumina a ação catártica do laço entre mulheres diante do machismo que recai sobre milhões de vidas domésticas. Sempre importante lembrar que a cada 10 minutos uma mulher é vítima de feminicídio no mundo e que estamos ainda muito longe de realmente mudar esses dados. Portanto, licença poética para achar o fim de John Paul um verdadeiro deleite.


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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

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