David Lynch: o confronto direto da realidade do desejo com a fantasia

"Lynch assume o risco de penetrar no lado escuro da alma, de enfrentar o turbilhão destrutivo das forças irracionais que se escondem por trás de nossas vidas cotidianas e de suas regras superficiais."

Foto: Gabriel Marchi via Wikimedia Commons.

Com a notícia do falecimento do diretor David Lynch, aos 78 anos, é inevitável passar em revista toda a sua filmografia e produção televisiva. Em sua homenagem, disponibilizamos para download gratuito um texto de Slavoj Žižek sobre o diretor, em que se questiona: “não seria toda a obra de Lynch uma tentativa de levar o espectador ao ‘ponto de ouvir ruídos inaudíveis’ e por-nos assim perante o horror cômico da fantasia fundamental?”

Em “David Lynch ou a arte do sublime ridículo”, o filósofo esloveno faz uma interpretação lacaniana dos clássicos A estrada perdida/Lost Highway (1997), Coração selvagem (1990), Veludo azul (1986), Duna (1984) e da série Twin Peaks (1990–1991). O ensaio foi publicado na coletânea Lacrimae Rerum, que reúne ensaios sobre o cinema contemporâneo, revelando conexões entre cineastas renomados e a psicanálise e destacando a influência das narrativas na percepção da realidade.

Leia um trecho:

“Em outras palavras, um ingrediente crucial do universo de Lynch é uma frase, uma cadeia significativa, que ressoa como um Real que persiste e regressa sempre – uma espécie de formula básica que suspende e atravessa o tempo. Em Duna (1984) e “Aquele que dorme deve acordar”; em Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer, “As corujas não são o que parecem”; em Veludo azul, “Papai quer foder”; e, é claro, em A estrada perdida, a primeira e última frase pronunciada no filme, “Dick Laurent está morto”, que anuncia a morte da figura paterna obscena (o senhor Eddy). Toda a narrativa do filme ocorre na suspensão do tempo entre esses dois momentos. No inicio, Fred ouve essas palavras pelo interfone de sua casa; no fim, pouco antes de fugir, e ele quem as pronuncia no interfone – temos assim uma situação circular: primeiro uma mensagem que e ouvida, mas não e compreendida pelo herói e depois e o próprio herói que pronuncia a mensagem. Em resumo, todo o filme esta baseado na impossibilidade de o herói encontrar a si próprio, como na famosa cena de deformação do tempo dos romances de ficção cientifica em que o protagonista, viajando de volta no tempo, encontra a si próprio numa época anterior… Por outro lado, não estaríamos aqui diante uma situação semelhante à da psicanálise em que, no início, o doente se sente perturbado por uma mensagem obscura e indecifrável, mas insistente – o sintoma – que, por assim dizer, o bombardeia de fora; e, depois, na conclusão do tratamento, o doente é capaz de assumir essa mensagem como sua e pronunciá-la na primeira pessoa do singular? O ciclo temporal que estrutura A estrada perdida é, portanto, o próprio ciclo do tratamento psicanalítico em que, depois de um longo desvio, voltamos, de outra perspectiva, ao ponto de partida.”


Lacrimae Rerum, de Slavoj Žižek
Coletânea de ensaios que explora o cinema contemporâneo, revelando conexões entre cineastas renomados e a psicanálise. Seus comentários lúdicos e imersão no universo das telas oferecem uma perspectiva única e cativante sobre o cinema, destacando a influência das narrativas na percepção da realidade.

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