Emília Pérez é um filme de horror: racista e transfóbico

"Emilia Pérez" foi até agora aclamado e premiado como uma celebração da inclusão e da diversidade, mas à medida que o filme ganha públicos mais amplos, sobretudo no Sul Global, as contradições em torno da trama e os preconceitos transfóbicos e racistas (do enredo e do diretor) tomam o primeiro plano. Leia o comentário de Lana de Holanda sobre o musical e sua recepção.

Imagem: Divulgação.

por Lana de Holanda

Bom, muito já se falou sobre Emília Pérez, o filme francês travestido de mexicano e recheado de estereótipos. Mas ainda acho que precisamos ir além e ressaltar o quanto essa obra é extremamente ofensiva. Socialmente e cinematograficamente. 

Aliás, falando em estereótipos relacionados ao filme, tem um que parece se confirmar: a do francês metido a intelectual que, na verdade, é só um sujeito medíocre e racista que ganhou fama e dinheiro justamente por ser um sujeito medíocre e racista de um país central. Jacques Audiard segue ainda impune, apesar das violências cometidas contra o povo mexicano, tanto no filme que dirigiu quanto depois, enquanto promovia o longa em diferentes países. 

Ainda reviro os olhos quando lembro dele falando que “o espanhol é um idioma de pobres”. Logo um francês, filho de uma nação que sugou e destruiu grande parte do continente africano, além do crime histórico de ter empurrado o Haiti para a pobreza absoluta como retaliação pela revolução e independência da ilha. Logo um francês, que compartilha um mesmo idioma com tanta gente pobre. Gente que foi covardemente empobrecida, ao longo de séculos, pela ganância colonial desenfreada da rica e pomposa França, que tanto orgulha o tal diretor.

Pois é, como eu disse, os atos de Audiard seguem impunes. Ele não foi execrado nem cancelado. Ao contrário de Karla Sofía Gascón, que foi jogada na fogueira das redes sociais por consequência da labareda que ela mesma acendeu. Não sobrou ninguém. Ela, munida de um senso de superioridade que poderíamos talvez dizer ser “típico dos espanhóis” (já que estamos falando, entre outras coisas, de estereótipos), disparou contra outros artistas, contra programas de televisão, contra comidas, contra pets, contra influencers e até contra o Oscar. E hoje, ironicamente, ela faz história ao ser a primeira mulher trans indicada ao prêmio de Melhor Atriz pela academia de cinema estadunidense.

Imagem: Divulgação.

Eu vibrei muito, meses atrás, quando soube que Karla havia recebido o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes. Lá ela também fez história, sendo a primeira mulher trans a vencer a premiação máxima dos festivais de cinema. Eu fiquei feliz por ela, mesmo sem ter visto o filme – que só viria a estrear no Brasil muito tempo depois –, pois achei que sua vitória era um avanço. Não só uma conquista individual, mas um símbolo que poderia ser usado como exemplo da excelência que as pessoas trans podem alcançar ao terem oportunidades e visibilidade. Que tristeza, eu estava profundamente enganada.

O refrão “a vaginoplastia agrada aos machos”, pertencente à canção que embala uma das cenas centrais do filme, ainda está martelando na minha cabeça. E toda vez que eu penso nessa frase (e involuntariamente a cantarolo no ritmo da música, revelando a eficácia com que mesmo uma melodia esteticamente pobre pode afirmar sua mensagem) tenho vontade de gritar em praça pública: representatividade não basta! qualquer minoria em qualquer espaço nem sempre é bom! basta dessa instrumentalização das identidades!

É inconcebível, pra mim, que uma pessoa trans tenha achado de bom tom participar de algo assim. Para além do número musical horripilante – que faz parte de um combo de músicas e cenas muito ruins, que preenchem o filme do início ao fim –, a trajetória de Emilia Pérez ao longo da trama reforça, mais uma vez, a ideia totalmente cisgênera de que uma pessoa transgênera só estará “completa” quando passar por uma cirurgia de redesignação sexual. É como se o corpo trans, ao não passar por processos cirúrgicos de aproximação máxima a um corpo cis, se tornasse um corpo inválido. A materialidade de uma identidade impossível de ser legitimada e, portanto, jamais respeitada.

Imagem: Divulgação.

Emília Pérez é, nesse sentido, um desserviço. Um filme que, ao ter uma protagonista trans, interpretada por uma atriz trans, ganhou um selo de “diversidade” e “inclusão” que empolgou os membros liberais das academias de cinema. Ao contrário da gente aqui no Brasil, que demorou a ter acesso a esse chorume cinematográfico, grande parte do Norte Global já tinha tido acesso ao filme, e muitas pessoas, principalmente aquelas com algum nível de consciência social e compromisso interseccional, já tinham alertado sobre os vários problemas da produção francesa. Mas, ainda assim, os ingleses indicaram Emília ao BAFTA, assim como os estadunidenses o indicaram ao Oscar.

São 13 indicações ao Oscar, superando as 10 indicações de Parasita e de O Tigre e o Dragão, que eram os filmes em língua não-inglesa mais indicados até então. É uma afronta, é um absurdo. Emília Pérez parece ser o sarcasmo máximo dos senhores ricos, brancos e cisgêneros da indústria cultural dos Estados Unidos e da Europa. Parece ser um deboche com quem gosta de cinema e com quem luta por uma sociedade menos opressora nas questões de gênero. Parece ser uma cuspida na cara dos mexicanos e demais latinos que tanto lutam para que nossas artes e culturas sejam devidamente visibilizadas e valorizadas em outros cantos do mundo.

Imagem: Divulgação.

Tem muita música e tem muita dança, mas Emília Pérez chega ao fim da temporada de premiações não como um musical, mas sim como um filme de horror. O quão gore1 são capazes de ser aquelas pessoas engravatadas que odeiam cinema, apesar de trabalharem com cinema? 

Nota

  1. Gore” é um subgênero do cinema de terror que  se concentra em representações gráficas de sangue e violência ↩︎


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Lana de Holanda é escritora e comunicadora, estudante de História e feminista decolonial. Mantém a newsletter a palavra não lida“.

1 comentário em Emília Pérez é um filme de horror: racista e transfóbico

  1. Avatar de Desconhecido leonorahermesluz // 28/02/2025 às 6:04 am // Responder

    Eu moro na França e na época vi o filme sem saber que o diretor era francês, que as atrizes não eram mexicanas e sem me perguntar se a atriz trans era operada ou não. Gostei muito do filme. Musicais costumam transformar temas tristes ou dramáticos em assuntos leves e este não. O drama da advogada ue engole sapos, obrigada a defender corruptos e assassinos por um salário “de mulher”, a ideia de recuperar os corpos dos desaparecidos pelo crime.do tráfico ainda que num contexto de adoração de uma personalidade de “santa”…e o fato de que sair do crime não necessariamente garante que o crime sai da pessoa, me pareceram.bons argumentos. Respeito a opinião sobre os pontos que levaram o filme, o diretor e a atriz principal ao “cancelamento” mas acho que ele tem excelentes pontos igualmente.

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