O legado feminista da Revolução Russa
Celebrando a primeira década da Revolução Russa, Aleksandra Kollontai - militante comunista que se tornou com a vitória bolchevique a primeira ministra de Estado moderna, responsável pela pioneira legalização do aborto e ampliação do direito ao divórcio, além de ter sido a primeira mulher nomeada embaixadora do mundo, em 1924 – reflete sobre os impactos mundiais das conquistas das trabalhadoras soviéticas. Traduzido por Thaiz Carvalho Senna e Ekaterina Vólkova Américo, o artigo "O que Outubro deu à mulher ocidental" foi publicado na antologia "A revolução das mulheres", organizada por Graziela Schneider.
Kollontai na embaixada soviética em Estocolmo (via Wikimedia Commons).
Por Aleksandra Kollontai
Todos sabem, de maneira clara e indubitável, o quanto Outubro deu às mulheres trabalhadoras em relação à sua emancipação. No entanto, como o Grande Outubro impactou na questão da libertação das mulheres nos países burgueses? Como ele contribuiu para a criação do tipo da “nova mulher”, relacionado às tarefas e aspirações da classe trabalhadora?
A [Primeira] Guerra Mundial, que na Europa e na América do Norte atraiu massas colossais de mulheres das camadas mais necessitadas da população para o círculo de produção e de administração pública, obviamente impulsionou a causa da emancipação da mulher. O rápido crescimento do trabalho feminino resultou em mudanças profundas e inéditas no cotidiano da família e no modo de vida geral das mulheres nos países burgueses. Entretanto, dificilmente o processo de emancipação feminina teria ido além disso caso Outubro não tivesse dado a última palavra. Outubro ajudou a estabelecer uma nova concepção de mulher, ao assegurar e revelar a imagem da mulher como unidade de trabalho socialmente útil. Desde os primeiros passos da Revolução de Outubro, ficou claro que a força e a energia das mulheres são necessárias não apenas para o marido e para a família, como se acreditava há milhares de anos, mas para a sociedade, para a coletividade social, para o Estado.
Não obstante, a burguesia não pode e não quer reconhecer esse fenômeno como um fato histórico inevitável, nem entender que a formação de um novo tipo de mulher está relacionada com a mudança geral, rumo à criação de uma nova sociedade trabalhadora. Não fosse Outubro, ainda seria dominante a visão de que a mulher independente é algo temporário e que o lugar das mulheres está na família, à custa do marido, que ganha a vida. Outubro mudou diversos conceitos. Essa reviravolta na avaliação das tarefas e do destino das mulheres na União Soviética impactou também no modo como elas são tratadas muito além dos limites do país. Hoje encontramos a nova mulher em todos os cantos do globo terrestre. A nova mulher é um fenômeno de massas. Talvez apenas os países semicoloniais e coloniais, onde o desenvolvimento das forças produtivas está atrasado em razão do domínio predatório imperialista, ainda sejam uma exceção. Não se pode levar adiante a luta de classes e grupos sociais sem a contribuição das mulheres.
A nova mulher é, antes de tudo, uma unidade independente de trabalho, cuja colaboração não se estende às necessidades particulares de uma família, mas ao trabalho socialmente útil e necessário. Ela está se livrando daqueles traços morais interiores que definem a mulher do passado. A mesquinhez feminina, o conservadorismo e a estreiteza de conceitos, a inveja, a malícia em relação a outras mulheres, vistas como rivais na caça ao chefe de família: todas essas características já não são mais necessárias no contexto atual, em que ocorre a luta das mulheres pela existência. Desde o momento em que a mulher começa a viver do seu trabalho, ela precisa desenvolver outras qualidades e adquirir novas habilidades. Milhões de mulheres trabalhadoras do mundo se apressam em busca de uma transformação moral.
É interessante observar como não só em nosso país, mas também no exterior, a mulher aprende a ser uma trabalhadora produtiva e essencial. Ela está perfeitamente consciente de que seu bem-estar e muitas vezes a existência de seus filhos dependem diretamente dela mesma, do seu trabalho e das suas habilidades. Ela se adapta externa e internamente às novas condições de vida. Na esfera psicológica, ela deixa de ser aquela criatura paciente e submissa que dava tudo de si para o marido e a família. Hoje, as mulheres não têm tempo para serem “sentimentais”, muito menos “submissas” e pacientes. Para elas, é mais importante confiar na sua força, ser firme no trabalho, não se distrair dele por causa das emoções.
Além do compromisso com o trabalho e do empenho em elevar o seu valor no mercado profissional por meio de qualificações e da preocupação com sua saúde e força física, a nova mulher trabalhadora ainda difere das mulheres anteriores no sentido de que expressa claramente os sentimentos e a consciência da ligação com sua classe, com o coletivo. A mulher participa da política. Repito, mesmo que a guerra tenha atraído grandes massas de mulheres para a luta política, somente a Revolução de Outubro admitiu publicamente, por meio de leis e do novo sistema soviético, que a mulher é uma trabalhadora da sociedade e que deve ser reconhecida como um cidadão ativo. A grande mudança na posição feminina na União Soviética gerou um impulso na consolidação das mulheres na luta entre os grupos sociais. A mulher também foi necessária nessa luta. Em todos os lugares, em todos os países, a atividade política delas tem aumentado ao longo dos últimos dez anos em dimensões sem precedentes. As mulheres tornam-se membros de governos (na Dinamarca, Nina Bang é a ministra da Educação; na Inglaterra, Margaret Bondfield compõe o gabinete de [Ramsay] McDonald), entram no corpo diplomático, estão entre os idealizadores dos grandes movimentos revolucionários, como Sun Tsin-lin (esposa de Sun Yat-sen). Elas estão cada vez mais acostumadas a administrar departamentos (ou, como os chamamos na União Soviética, seções), liderar organizações comerciais e orientar a política.
Seria isso possível sem o Grande Outubro? Poderia ter surgido uma nova mulher-cidadã e trabalhadora socialmente útil caso o grande turbilhão não tivesse passado pelo planeta? Se não fosse Outubro, teria sido possível às mulheres trabalhadoras de outros países darem passos tão largos rumo à própria emancipação? Qualquer ser pensante sabe que a resposta é não. É por isso que todas as mulheres trabalhadoras sentem que o décimo aniversário do Outubro é a maior festa dos proletários do mundo.
Outubro afirmou a importância das mulheres trabalhadoras. Outubro criou as condições em que a “nova mulher” triunfará.

Kollontai: desfazer a família, refazer o amor, de Olga Bronnikova e Matthieu Renault
Figura central na Revolução Russa de 1917, Aleksandra Kollontai foi pioneira do feminismo socialista e a primeira ministra de Estado do mundo contemporâneo. Esta biografia que recupera a vida e a obra dessa revolucionária russa, com destaque para suas críticas às relações de gênero. Os autores apresentam as dificuldades que Kollontai enfrentou no partido referente às questões sobre as mulheres e não deixam de mostrar aspectos contraditórios da biografada.
Antes de a contrarrevolução sexual varrer os avanços pós-1917, Kollontai foi figura central em importantes decisões, como o direito ao aborto e a facilitação do divórcio para as mulheres. Sua trajetória política sempre foi contrária ao senso comum de que questões relativas ao gênero deveriam ser problemas periféricos: “Kollontai não deixaria de demonstrar que a luta pela igualdade homens-mulheres no plano econômico e social e a reinvenção das formas do amor e da sexualidade eram indissociáveis, e que sua trama delineava um programa revolucionário completo, dotado de uma autonomia que não impedia – ao contrário, pressupunha – sua articulação estreita com as ‘tarefas do proletariado’. Por essa razão, a satisfação dessas reivindicações não podia ser adiada eternamente sem comprometer o futuro do próprio comunismo”, escrevem Bronnikova e Renault no prólogo.
A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética, organizado por Graziela Schneider
Uma coletânea histórica de escritos femininos da Revolução Russa de 1917, esta antologia percorre temas como feminismo, emancipação, trabalho, luta de classes, família, leis e religião, permitindo distinguir que houve, de fato, a conquista de direitos desde então, mas demonstrando também como ainda há muito o que conquistar. Os artigos, atas, panfletos e ensaios aqui reunidos são, apesar de clássicos, mais atuais do que nunca. A coletânea vem acrescida de fotografias das autoras e de cenas da Revolução.
Compre junto: Biografia Kollontai + A revolução das mulheres
Mulher, Estado e revolução, de Wendy Goldman
Vencedora do Berkshire Conference Book Award, a obra examina as mudanças sociais ocorridas na sociedade soviética nas duas primeiras décadas pós-revolução, retratando as grandes experiências da libertação da mulher e do amor livre na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois da Revolução – e refletindo sobre por que falharam, quando entrou em cena a burocracia stalinista. “Seu tema é a difícil relação entre vida material e belos ideais”, afirma Goldman. O livro examina as condições materiais da União Soviética logo após a Revolução e explora questionamentos relevantes para qualquer movimento social: quando um novo mundo poderá ser criado? Quais são as condições necessárias para se realizar ideais revolucionários? É possível que se crie total liberdade sexual para homens e mulheres sob condições de desemprego, discriminação e persistência de atitudes patriarcais? O que podemos apreender dessa experiência, depois da Revolução Russa? Combinando história política e social, o livro recupera não apenas as lições discutidas por juristas e revolucionários, mas também as lutas diárias e ideias de mulheres trabalhadoras e camponesas.
Rosa Luxemburgo: biografia, de Paul Frölich
Publicada originalmente em 1939, é considerada ainda hoje uma obra de referência indispensável, apresentando com grande inteligência e empatia a apaixonante vida da filósofa e economista marxista: sua juventude na Polônia, os estudos em Zurique, a emigração para a Alemanha, a relação afetiva e erótica com Leo Jogiches, a luta pelas ideias marxistas na social-democracia alemã, a participação na revolução russa em Varsóvia, os anos de prisão na Polônia e, durante a guerra, na Alemanha, em 1919, seu assassinato pelos bandos militares pré-fascistas trazidos para Berlin pelo ministro social-democrata Noske. Frölich analisa também, com grande acuidade, seus principais escritos: A acumulação do Capital (1913), sua grande obra de economia política, a famosa “Brochura de Junius” (A crise da social-democracia) de 1916, onde aparece a fórmula “socialismo ou barbárie”, a crítica (construtiva) aos bolcheviques em A Revolução Russa (1918), e os últimos escritos durante o levante spartakista de 1919.


Intersecções letais: raça, gênero e violência, de Patricia Hill Collins
Analisando situações como o assassinato de Marielle Franco no Brasil, o conflito na República Democrática do Congo, a condição das mulheres aborígenes na Austrália e da população negra nos Estados Unidos, a autora aponta metodologicamente e de maneira acessível como aplicar o conceito de interseccionalidade em investigações sobre as origens e as consequências violentas – por vezes, letais – da desigualdade e da injustiça.
“Provocativo e desafiador, este livro é fundamental para aquelas e aqueles que buscam compreender as raízes estruturais da violência, a qual Collins se recusa a aceitar como inevitável, convidando-nos a resistir a esse perverso fenômeno. Intersecções letais é uma leitura imprescindível para as pessoas engajadas na luta por justiça social e que buscam aprofundar suas reflexões sobre as conexões entre violência, relações de poder e desigualdades”
— Nilma Lino Gomes
O patriarcado do salário, de Silvia Federici
Revisitando a crítica feminista ao marxismo e trazendo para o debate perspectivas contemporâneas sobre gênero, ecologia, política dos comuns, tecnologia e inovação, Federici reafirma nesta série de artigos a importância da linguagem, dos conceitos e do caráter emancipador do marxismo. Ao mesmo tempo, esclarece por que é preciso ir além de Marx e repensar práticas, perspectivas e ativismo a fim de superar a lógica social baseada na propriedade privada e desenvolver novas práticas de cooperação social.
Quem tem medo do gênero?, de Judith Butler
Neste seu primeiro livro não acadêmico, Judith Butler analisa como o “gênero” se tornou central em discursos conservadores e reacionários, um fantasma com o objetivo de criar pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes.
Intervenção essencial em uma das questões mais inflamadas da atualidade, Quem tem medo do gênero? é uma convocatória arrojada a construir uma coalizão ampla contra as novas formas do fascismo. “É crucial que a política de gênero se oponha ao neoliberalismo e a outras formas de devastação capitalista e não se torne seu instrumento”, insiste Butler.
“Só mesmo o intelecto e confiança moral deslumbrantes de Judith Butler para nos orientar no labirinto de projeções, confissões, deslocamentos e cooptações que constituem as atuais guerras travadas em torno do gênero. É o sonho de um poder masculinista autoritário ultrapassado que une as diversas frentes dessa batalha – e somente a solidariedade entre todas as pessoas que se encontram na mira do fascismo pode nos salvar. Este livro é uma intervenção profundamente urgente.”
— Naomi Klein
“A filosofia de Judith Butler desafia as normas estabelecidas, promovendo diálogos cruciais sobre identidade e igualdade. É leitura fundamental para nos ajudar a construir uma sociedade verdadeiramente emancipatória.”
— Erika Hilton



Destinos do feminismo, de Nancy Fraser
A segunda onda do feminismo surgiu como uma luta pela libertação das mulheres e ocupou seu lugar ao lado de outros movimentos radicais. Mas a subsequente imersão do feminismo na política de identidade coincidiu com um declínio de suas utopias e com a ascensão do neoliberalismo. Em Destinos do feminismo, a filósofa Nancy Fraser defende um feminismo radical revigorado capaz de enfrentar os desafios atuais e a crise econômica global.
Conheça mais livros de Nancy Fraser publicados pela Boitempo.
Feminismo e política, de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli
Uma Introdução abrangente à teoria política feminista, discorrendo sobre temas como prostituição, aborto e representação política. Em tempos de questionamento do movimento, revela como as lutas feministas transcendem as questões específicas de gênero, impactando a estrutura social.
Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, de Maria Rita Kehl
A obra questiona as relações que se estabelecem entre a mulher, a posição feminina e a feminilidade na clínica psicanalítica. Existe uma diferença irredutível entre homens e mulheres, afinal? Partindo da defesa de uma ‘mínima diferença’, um modo de ser e de desejar através do qual homens e mulheres assumem papéis distintos na sociedade, a autora investiga o campo a partir do qual as mulheres se constituem como sujeitos, de modo a contribuir para ampliá-lo.

Lute como uma princesa, de Vita Murrow
E se o destino das princesas não se resumisse em casar com o Príncipe Encantado e viver feliz para sempre? Conheça um novo lado de suas princesas favoritas nesta exuberante coletânea em que 15 contos de fadas são recontados para uma nova geração de crianças.
A misteriosa história do ca.di.re.me., de Tatiana Filinto
Em um mundo de conexões instantâneas, Julia e Olivia desvendam segredos através de cartas, mergulhando em reflexões entre endereços distantes. Quando o misterioso sumiço do diário compartilhado por elas se entrelaça com o desaparecimento de Zulmira na ditadura, uma trama delicada e cheia de mistério se desenrola. Amizade, amor e transformação costuram esta narrativa única, convidando você a desvendar enigmas e emoções entre páginas.
As mulheres e os homens, de Equipo Plantel
Explorando as nuances das questões de gênero de maneira lúdica, esta história desafia estereótipos por um viés de igualdade e em respeito à pluralidade. Com ilustrações primorosas, foge das cores tradicionais e promove reflexões sobre desigualdade salarial, tarefas domésticas e papéis sociais.


Fala baixinho, de Janaína Tokitaka
Uma história delicada sobre a importância da comunicação e da escuta. Quando dois garotos brigam por uma bola perdida, uma menina tranquila tenta ajudá-los com sua voz suave. Um livro que ressalta as sutilezas da interação humana.
Leotolda, de Olga de Dios
Uma busca fantástica por Leotolda leva Tuto, Catalina e Kasper a experiências únicas. Nessa jornada não convencional, eles contam com a ajuda de dinossauros, sereias e até do próprio leitor. Uma história interativa que estimula a criatividade e a participação das crianças.
Deixe um comentário