Fome de outras greves: Glauber e seu gesto

Glauber Braga durante seu banho de sol, ao lado da deputada federam Sâmia Bomfim (PSOL-SP). Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

Por Clarisse Gurgel

O que é mais difícil? Sair ou entrar numa greve de fome? Ato extraordinário, que exige duração para sua própria validade, a greve de fome é, historicamente, um ato quase último, quando já não parece restar outro recurso de enfrentamento. Diríamos, talvez, que pela sua própria natureza uma greve de fome seria, acima de tudo, um ato de resistência. Não se trata de uma ofensiva — medida ainda mais ousada, em face de um acúmulo de força — nem de um gesto insurreto, de avanço sobre a estrutura de poder. A greve de fome tem, portanto, um caráter de destaque do limite, do esgotamento: limite do até onde algo pode ser suportável. A dimensão especular não pode todavia nos confundir: aquele que recorre à greve de fome forja pra si um último recurso, pois o que pode lhe suceder é a morte, o que coloca o grevista em uma condição, a princípio, ainda mais insuportável do que aquela que o levou ao ato. A escolha pelo “aparentemente pior” destaca, contudo, a profundidade do dano, ainda não percebida.

Como bem ilustrado por postagens recentes, a história do Brasil e do mundo é marcada por greves de fome enfrentadas por grandes quadros políticos, sejam indivíduos, como Gandhi e Mandela, ou coletivos, tais como os presos políticos que enfrentaram a ditadura civil-militar de 1964 em nosso país. Em geral, há uma natureza coletiva que sempre costumou fundamentar a decisão por aderir a uma greve de fome, mesmo quando levada a cabo por apenas uma pessoa. Quando Anthony Garotinho decidiu fazer uma greve de fome, consultou pessoas próximas, alegando que ter seu rosto exibido em uma capa de revista como a face do demônio era o limite para ele, que se apresentava como uma vítima de um silenciamento político. Garotinho era então âncora de um programa de rádio, mas decidiu apelar para um gesto-limite para tentar ser ouvido. Este foi um caso em que uma greve de fome caiu no ridículo, sendo objeto da chacota de muitos.

Há algum tempo, as greves — sejam elas de fome ou de trabalho — têm sido apontadas como medidas pouco compreendidas pela sociedade, quando não são tratadas como capricho de vagabundos, indiferentes às necessidades do povo. Diferentemente disso, foi a greve dos garis do Rio de Janeiro de 2013, ocorrida em pleno período de Carnaval, marcada por fitas laranjas (símbolo do movimento) e fantasias entulhadas nas esquinas, que despertou uma multidão para a desigualdade do mundo do luxo e do mundo do lixo. A greve que mais evidencia sua força de pressão é aquela que interrompe a circulação de mercadorias. Nas últimas décadas, as greves dos caminhoneiros e dos servidores técnico-administrativos da educação, assim como os breques dos apps revelaram-se, em suas devidas proporções, um instrumento atual e fundamental para o enfrentamento da acumulação de riqueza e poder, da desigualdade, e da barbárie delas derivada.

Glauber Braga e seu gesto

A greve de fome do deputado federal Glauber Braga foi um gesto-limite diante do que ficou muito evidente na própria sessão do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados que resultou em sua cassação. Após oito horas de intervenções em sua defesa, constando apenas dois parlamentares de direita no plenário, bastaram vinte minutos para que uma dezena de deputados ultraconservadores ocupasse o púlpito, encerrasse os debates e votasse sumariamente a favor do relator, que opinava por cassar o deputado. A hegemonia da direita ficou explícita — e não por maioria numérica, mas por seu domínio da situação e pela direção que detinha sobre o tempo e o espaço da política. A esquerda confiara em acordos de véspera com o Partido Liberal: crédula em acertos de gabinetes, contou que os “colegas” não garantiriam o quórum.

A votação ocorreu e um deputado socialista teve o processo de cassação aprovado no que se chama de Conselho de Ética. O motivo? Ter colocado pra fora do plenário da Câmara um performático, um provocador em busca de visibilidade. Paralelo a isso, Chiquinho Brazão, mandante do assassinato de Marielle Franco; Arthur Lyra, padrinho do orçamento secreto; e Bolsonaro, que dispensa comentários, contaram com outro tratamento. A situação era absurda, no sentido forte do termo: não era possível mais que a sociedade seguisse surda diante dos gritos de “Glauber Fica”. E não foram poucas as vezes em que a grande mídia ignorou esses apelos.

Não se tratou de um acting out, de uma pulsão, na busca por uma experimentação imaginária de uma catarse sem escuta. A greve de fome de Glauber Braga foi um grito maior, que carregava o que há de mais potente em Glauber: sua capacidade de agir com destemor. Algo somente possível com a confiança de quem não está só, de quem vive coletivamente, com a disposição para crítica e para a autocrítica e somente capaz de expandir-se e se elevar, ainda mais, pela consistência política que possui. O que assistimos com o gesto de Glauber, lastreado por mais de quinhentos mil brasileiros, foi um constrangimento nacional. Glauber, altivo e famélico, cobrou o mínimo de coerência diante do máximo de abuso. Por isso, o gesto envolvia viver ao máximo do mínimo — nada mais é passível de se perder. Não é um mandato que está sob risco, é o direito — que combina princípios formais a serem garantidos e respeito político por sua legitimidade — à atuação, dentro e fora da institucionalidade, daquilo que corresponde, hoje, ao campo mais consequente e responsável da esquerda brasileira. Um direito que vem sendo retirado dos socialistas, por todo tipo de força e violação, nos diferentes espaços em que atuam, seja nos parlamentos, seja nas instâncias internas de suas próprias organizações partidárias ou sindicais, por exemplo. O gesto de Glauber parece re-unir, em um nível elevado e não apenas “como um mal menor”, a esquerda.

Só o socialismo — em sua prática concreta de organização, trabalho coletivo, rebeldia disciplinada —, só o trabalho militante é capaz de imprimir a força de autenticidade que foi impressa nesse gesto aparentemente solitário de Glauber Braga.

Em um tempo em que os fracos simulam força, transigindo com seus opositores, Glauber e todo seu campo político expuseram a desigualdade politica, atualizando o que há de singular na forma de fazer política de esquerda, sua gramática exclusiva: da ética do trabalho, da comunhão, do amor, da solidariedade, da humildade, da fraternidade. É essa sua coerência radical que esteve fincada no pântano do parlamento brasileiro atual, em que o silêncio se tornou sinônimo de absoluta covardia.

Glauber suspendeu seu gesto. Voltou pra casa. Para seu filho, na Páscoa. E, nesse retorno para seu cotidiano familiar, segue lastreado por uma coletividade que, mais do que nunca, entendeu que toda luta precisa de cotidiano, de insistência, persistência e coragem.

Nesse sentido, podemos dizer que o ímpeto que alguns criticam em nosso Glauber tomou conta do Brasil. Tornou-se campanha. É disto que a esquerda precisa: ir a campo, produzir cotidiano, insistir nas decisões e nas estratégias. É isso que Glauber sabe fazer muito bem, e que a esquerda reaprendeu, nesse gesto, com ele. O novo salto, agora, é continuar, não esmorecer, não se deixar dispersar, saber sair de onde, em parte, Glauber já saiu, suspendendo a greve, sem se retirar da luta. Seguir em campanha, repetindo, persistindo, nas ruas e nos bastidores, para que nossa fome seja de outras greves.


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Clarisse Gurgel é cientista política, professora da Faculdade de Ciências Sociais da Unirio e autora do livro Ação performática: análise institucional e luta de classes (LavraPalavra, 2024). 

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