“Dying for sex”: a amizade feminina é insurgente

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SEM SPOILERS
Por Cauana Mestre
Quem tem uma amiga tem tudo — nunca essa frase foi tão bem encenada como em Dying for sex, nova produção da Disney+. Inspirada no podcast homônimo, criado por Molly Kochan e Nikki Boyer, a série explora a vida sexual de Molly após um diagnóstico de câncer terminal. O roteiro traça um brilhante percurso por essas duas grandes coisas da vida humana: o sexo e a morte.
Sem recorrer a clichês e partindo de um senso de humor profundamente feminino, a história de Molly ilumina questões importantes sobre a liberdade sexual das mulheres; o efeito das experiências traumáticas; a moralidade que recobre o prazer feminino; a incapacidade médica de acolher a morte e tantas outras coisas. São camadas belíssimas — e por que não dizer, importantes — da série, mas quero me fixar, aqui, no elemento que mais me comoveu: a amizade entre as personagens.

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Victoria Ocampo e Virginia Woolf. Ivone Lara e Nise da Silveira. Ella Fitzgerald e Marilyn Monroe. Lila e Lenu. Celie e Vettie. As irmãs do romance de Louisa May Alcott, Little Women (traduzido como Adoráveis mulheres). Jane Austen e Jenny Cooper. Hebe e Lolita. Rachel, Monica e Phoebe. Thelma e Louise. A história, o cinema e a literatura são povoados por essa espécie de amizade tão singular que acontece entre as mulheres, mas, ainda assim, insistimos na ideia de que a referência de amizade é masculina. Os vínculos deles seriam mais verdadeiros, mais livres de conflitos e ambivalências, enquanto as mulheres rivalizam, são competitivas, incapazes de encontrar liberdade no laço afetivo, sempre prontas para invejar e disputar.
Que essa crença tão socialmente enraizada tem sua origem no machismo a gente já sabe, mas quero extrair, do machismo, sobretudo o horror ao território feminino, tão bem descrito por Freud em 1918: “o homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado por sua feminilidade”.

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Juntas, Molly e Nikki escancaram os tabus sexuais, normalizam a anormalidade das fantasias, questionam o saber médico e científico, terminam duas relações, dobram a assepsia médica à emoção, interpelam os manejos hospitalares e transformam o hospital em uma habitação de humanidade. Juntas, Molly e Nikki conquistam o direito ao sexo e o direito à morte.
Não é por acaso. A amizade feminina é insurgente por natureza e, justamente por isso, silenciada. Não há discurso ou ideologia mais poderosamente feminista do que mulheres que não sucumbem à demanda social pelo ódio e decidem pelo amor e pela confidência.

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Dying for sex é uma daquelas coisas às quais a gente precisa se entregar, sem teoria de partida. É mesmo como estar diante do sexo e da morte: o saber vale só depois, o que importa de imediato é o corpo, o agora é o afeto. E talvez nada neste mundo revele mais a força dos agoras quanto estar ao lado de uma amiga que constrói conosco uma língua singular para coisas secretas e inauditas — ou mesmo para as indizíveis. Por encenar isso tão intensamente agradeço a essa produção que quase me fez morrer… de tanto chorar.
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Uma declaração: escrevi este texto à mão e, ao passá-lo para um arquivo de word, percebi que cometi um ato falho daqueles bem-sucedidos que fazem sorrir qualquer psicanalista. No lugar de anormalidade escrevi anormalizade. O inconsciente sempre dá mesmo o seu jeito de encontrar um bem-dizer, pois, para mim, não há nada como o privilégio de depositar minha anormalidade nas amizades, nada me salva mais do que a liberdade de ser anormal junto das minhas amigas.
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA
Mulheres e caça às bruxas, de Silvia Federici
Por que voltar a falar, hoje, sobre caça às bruxas? Em Mulheres e caça às bruxas, Silvia Federici revisita os principais temas de um trabalho anterior, Calibã e a bruxa, e nos brinda com um livro que apresenta as raízes históricas dessas perseguições, que tiveram como alvo principalmente as mulheres.
Federici estrutura sua análise a partir do processo de cercamento e privatização de terras comunais e, examinando o ambiente e as motivações que produziram as primeiras acusações de bruxarias na Europa, relaciona essa forma de violência à ordem econômica e argumenta que marcas desse processo foram deixadas também nos valores sociais, por exemplo, no controle da sexualidade feminina e na representação negativa das mulheres na linguagem. A partir desse debate, a autora nos mostra como as acusações e a punição de “bruxas” se repete na atualidade, especialmente em países como Congo, Quênia, Gana e Nigéria, na África, e Índia.
“As amizades femininas foram um dos alvos da caça às bruxas, na medida em que, no desenrolar dos julgamentos, as mulheres acusadas foram forçadas, sob tortura, a denunciar umas às outras, amigas entregando amigas, filhas entregando mães.
Foi nesse contexto que ‘gossip‘ se transformou, de uma expressão de amizade e afeto, em um termo de difamação e ridicularização.”
— Silvia Federici
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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.
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