A noite em que tudo mudou: junho de 2013 e a década da revolução perdida

No dia em que se completam 12 anos do início das "jornadas de junho", leia um trecho da introdução de "A década da revolução perdida: a onda de manifestações que incendiaram o mundo" em que Vincent Bevins registra o ponto de viragem no processo de mobilizações contra o aumento da passagem de ônibus — rememorações de uma noite tão fria quanto era possível em São Paulo.

Foto: Marcelo Calvet (Wikimedia Commons)

Por Vincent Bevins

Em 13 de junho de 2013, a polícia militar nos atacou. Estávamos na rua da Consolação, no centro de São Paulo, maior cidade da América do Sul. A massa de pessoas tinha parado e estava olhando para a grande quantidade de policiais pesadamente armados, no alto da avenida, decidindo o que fazer em seguida, quando os PMs decidiram por nós. Sem aviso, começaram a disparar diretamente contra a multidão – gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, talvez projéteis de borracha —, era difícil saber no momento. O objetivo dessa espécie de repressão é forçar a pessoa a imediatamente buscar abrigo e parar de pensar em qualquer coisa que não seja a própria segurança. A multidão deixa de ser uma multidão e é reduzida a um amontoado de indivíduos. Você fecha os olhos e olha para o chão, dando rápidas miradas ao redor, procurando escapar. Nós nos dispersamos pela noite, em qualquer fresta que pudéssemos encontrar. Estava escuro, pois o inverno se aproximava, e tão frio quanto podia estar em São Paulo. Existem arranha-céus por toda parte nessa cidade, e encontrei algum abrigo na entrada de um edifício residencial. Levei alguns momentos para recuperar plenamente os sentidos e compreender onde estava, depois de ter confirmado que ainda conseguia respirar com alguma regularidade.

Eu havia estado em muitos protestos em minha vida, por todo o mundo e no Brasil, mas isso era novo. A repressão costuma vir em ondas de escalada, com rodadas cada vez mais intensas de provocações e reações entre policiais e manifestantes. Existem várias oportunidades para ir embora se você não quiser ficar para o jogo bruto, e com frequência você consegue até compreender por que a polícia age do jeito como o faz. Não dessa vez. A sensação era de uma investida intencional realizada pelo aparelho de Estado.

Eu não estava nas ruas na qualidade de manifestante. Estava trabalhando como jornalista, tanto como correspondente internacional quanto como uma das poucas pessoas dos Estados Unidos com algum papel na mídia brasileira. Parece um pouco tolo dizer que a polícia “nos” atacou, quando os repórteres provavelmente não eram o alvo pretendido da ofensiva nem eram os bravos protagonistas efetivamente dispostos a correr riscos e a fazer história naquela noite. Mas o fato de que os jornalistas também sofreram é, acredito, crucial para se compreender como esses eventos moldaram a história.

A investida da polícia começa a tornar-se compreensível se analisarmos tudo o que conduziu àquela noite. Mas ainda mais fascinante, ainda mais intrigante, é o que veio em seguida. Como foi possível que os protestos de junho de 2013 levassem ao país que existia no fim da década? Essa questão está longe de estar resolvida. Quando você a coloca para os brasileiros que viveram tudo aquilo, pode receber como resposta análises cuidadosas (embora usualmente variadas e contraditórias) ou se deparar com uma explosão de raiva ou uma expressão de desânimo, seguida por um olhar fixo e vazio, perdido na distância.

A esta altura, podemos resumir rapidamente os eventos subsequentes. A repressão em 13 de junho conduziu a uma explosão de simpatia pelas manifestações, que haviam sido organizadas por um pequeno grupo de esquerdistas e anarquistas que reivindicavam transporte público mais barato. Milhões de pessoas tomaram as ruas, sacudindo o sistema político brasileiro até o seu cerne. Novos manifestantes trouxeram novas demandas — mais educação e saúde de qualidade, menos corrupção e menos violência policial — para o movimento de massas, que podia ser visto como fundamentalmente progressista. Com efeito, os líderes do Partido dos Trabalhadores (PT) — no poder desde 2003 — interpretaram o levante exatamente dessa maneira.

No começo de 2013, era possível afirmar que, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores, o PT, havia impulsionado o mais significativo projeto social-democrata na história do Sul global. Longe dos países ricos do Primeiro Mundo, um governo tendendo para a esquerda havia conseguido combinar um crescimento econômico, dentro do sistema capitalista mundial, com políticas sociais deliberadamente concebidas para reduzir a pobreza, terminando por conquistar um apoio generalizado no âmbito de uma democracia liberal. Para Luiz Inácio Lula da Silva e sua sucessora, Dilma Rousseff, parecia que as pessoas nas ruas em junho de 2013 estavam simplesmente pedindo mais do mesmo. Porém, poucos anos depois, o país seria governado pelo líder eleito mais radicalmente direitista do mundo, um homem que defendia abertamente o retorno da ditadura e a violência em massa. Os serviços públicos se desmantelavam, enquanto a pobreza crescia e as autoridades se gabavam da morte de cidadãos brasileiros pelo Estado1. Em resumo, o povo brasileiro recebeu o exato oposto do que parecia reivindicar em junho de 2013.

Na década passada, de 2010 a 2020, esse tipo de história esteve longe de ser único. Por todo o mundo, a humanidade testemunhou a explosão dos protestos de massa que anunciavam profundas mudanças. Foram experimentados como uma vitória eufórica por seus participantes e recebidos com adulação e otimismo na imprensa internacional. Anos mais tarde, porém, depois de a maioria dos correspondentes estrangeiros ter partido, vemos que os levantes precederam — se é que não acarretaram necessariamente — resultados muito diferentes dos objetivos dos movimentos que os encabeçaram. Em parte alguma as coisas se desenvolveram efetivamente conforme o planejado. Em muitos casos, demasiados casos, as coisas pioraram bastante, segundo os padrões articulados pelas próprias ruas.

De fato, poderia até ser possível contar a história dessa década como a história dos protestos de massa e suas inesperadas consequências. Correndo o risco de parecer demasiado ambicioso, este livro tentará fazer exatamente isso. O que acontece se tentarmos escrever a história do mundo, de 2010 a 2020, guiados por uma pergunta intrigante: como é possível que tantos protestos de massa aparentemente conduzissem ao oposto do que pretendiam? Iniciados na Tunísia em 2010, os protestos rapidamente escalaram até se tornarem algo muito maior e qualitativamente diverso daquilo que tanto os participantes quanto as autoridades inicialmente esperavam. Com um governo derrubado, outros movimentos irromperam, fosse derrubando líderes, fosse conduzindo a profundas mudanças por toda a região, em um processo que a imprensa internacional apelidou de “Primavera Árabe”.

Em 2013, o povo e a mídia brasileiros já dispunham de um conjunto pronto de conceitos que podiam ser usados para interpretar seu incipiente movimento de protesto. Alguns canais terminaram por chamar as manifestações de junho de “primavera brasileira”2. Na noite de 13 de junho, a multidão irrompeu num cântico, enquanto era vítima do gás lacrimogêneo: “O amor acabou. A Turquia é aqui!”. Estavam se referindo aos protestos e à repressão que ocorriam naquela mesma ocasião em Istambul. Postei isso no Twitter e — em uma de minhas primeiras experiências com os altos e baixos da mídia social — a coisa viralizou. Nas semanas imediatamente seguintes, recebi fotos e mensagens de pessoas no parque Gezi, palco dos protestos turcos, empunhando cartazes nos quais estavam escritas coisas como “o mundo inteiro é São Paulo” e “A Turquia e o Brasil são um só”. Em 2020, depois de batalhas de rua do Chile a Hong Kong, o mundo tinha experimentado mais protestos de massa na década anterior do que em qualquer outro ponto na história humana, excedendo o famoso ciclo global contestatório dos anos 19603.

Mas era isso mesmo? O mundo inteiro era realmente São Paulo? Era de fato correto afirmar que “Tahrir está em toda parte”, como um slogan egípcio havia proclamado antes, nessa mesma década? Acredito que em muitos lugares, certamente no Brasil, as coisas teriam se desenrolado de maneira diferente se essas conexões não tivessem sido feitas. Será que fazia algum sentido declarar que havia uma “primavera” no Brasil, ou mesmo no próprio mundo árabe? As manifestações em certos locais inspiraram levantes em outras partes, tanto emocionalmente quanto nas táticas adotadas. O contexto local, porém, variou enormemente. Se assumirmos uma abordagem verdadeiramente global, podemos começar a ver quais fatores eram comuns em muitas localidades diferentes, e quais eram crucialmente distintos. Para compreender o que aconteceu durante essa década, e aprender com ela, é preciso atentar para ambos.

Quer o reconheçamos ou não, quer isso apareça claramente a olho nu ou não, vivemos agora em um sistema global. Mesmo lá atrás, em 1789, o ano da revolução que estabeleceu os parâmetros para tantos movimentos políticos que vieram depois, as rápidas mudanças dentro da França provocaram reações do resto da comunidade internacional. Hoje estamos muito mais interdependentes. Seja qual for o formato deste livro com que você esteja envolvido — digital, físico ou áudio —, ele é o produto do trabalho humano e de recursos físicos extraídos em diferentes partes do mundo, exatamente como suas roupas e quase tudo o mais que possuímos. Não existe um modo coerente de discutir movimentos políticos ambiciosos sem fazer referência a esse sistema.

Antes mesmo de examinarmos de perto essa década de protestos de massas, é possível reconhecer que um certo conjunto de abordagens foi moral e taticamente privilegiado de 2010 a 2020. Em graus variáveis, com frequência se ouviu que esses protestos de massa nas ruas ou em praças públicas das cidades não tinham lideranças, eram organizados “horizontalmente”, tinham caráter “espontâneo” e eram coordenados digitalmente. Eles assumiam formas que, dizia-se, “prefiguravam” a sociedade que deveriam ajudar a concretizar. Em relação a conceitos que possam parecer pouco familiares, tais como horizontalismo e prefiguração, — e mesmo para os já familiares — tentarei explicar como emergiram historicamente, e como tais processos moldaram o que significam na atualidade. A luta política não acontece de maneira automática. Quando seres humanos experimentam injustiça, é necessária uma onda de vontade e energia para que isso se converta na decisão de fazer algo; e, feita essa escolha, há ainda uma série de saltos a serem transpostos até que cada um se erga, saia à rua e adote um conjunto particular de ações. Os passos dados, acredito, decorrem da prática de recorrer a um leque de coisas já vistas ou realizadas no próprio país — ou, cada vez mais, em outras partes do mundo, testemunhadas
talvez pela internet4.

E então, depois de ser adotada uma série de ações, vem uma jornada muito diferente e bem traiçoeira para corrigir a injustiça ou melhorar a sociedade. Desde 2010, tem sido difícil acertar essa última parte. Minha esperança era que, pela análise cuidadosa da cadeia de decisões humanas e de consequências e ao se examinar os eventos da década em ordem cronológica, poderiam emergir algumas lições. Depois de trabalhar nesse projeto por quatro anos, acredito que tenham vindo à tona.

Notas

  1. Somando-se a declarações históricas feitas pela família Bolsonaro, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ameaçou os criminosos com execução sumária e celebrou publicamente a morte de um suspeito em 2019. Ítalo Nogueira, “Governador que só pensa em morte reclama de política sobre caixão”, Folha de S.Paulo, 23 set. 2019. ↩︎
  2. Santiago Wills, “The Brazilian Spring: An Explainer”, ABC News, 24 jun. 2013. ↩︎
  3. Samuel J. Brannen, Christian S. Haig e Katherine Schmidt, “The Age of Mass Protests: Understanding an Escalating Global Trend”, CSIS Risk and Foresight Group, 2 mar. 2020. ↩︎
  4. Cheguei a essa conclusão antes de começar este projeto e descobrir as sacadas fundamentais de Charles Tilly sobre os modos pelos quais os “manifestantes” recorrem a repertórios contestatórios preexistentes, mas o trabalho dele molda a abordagem desenvolvida a seguir e é citado em conformidade. O fato de um jornalista alheio à sua produção acadêmica ter se deparado com a mesma ampla compreensão com base em experiências ao longo dos últimos quinze anos é, acredito, mais uma prova de sua relevância permanente ↩︎

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Vincent Bevins foi correspondente do Los Angeles Times no Brasil, de 2011 a 2016, e editor do blog From Brazil da Folha de S.Paulo, de 2012 a 2016. Jornalista premiado, cobriu o Sudeste asiático para o Washington Post, dedicando especial atenção ao legado do massacre de 1965 na Indonésia – tema do seu livro O método Jacarta: a cruzada anticomunista e o programa de assassinatos em massa que moldou o nosso mundo (Autonomia Literária, 2022). Antes disso, trabalhou para os jornais Financial Times, de Londres, e The Daily Journal, de Caracas.
Graduado em economia política pela Universidade da Califórnia, Berkley, e mestre em economia política internacional pela London School of Economics, escreveu para diversas publicações, tais como The Atlantic, The Economist, The Guardian, Foreign Policy, The New York Review of Books, The New Republic, The New Inquiry, The Awl, The Baffler, New York Magazine, The Nation, The New York Times e n+1. Nasceu e foi criado na Califórnia. Desde que se mudou para o Brasil, em 2010, passou a maior parte de seu tempo morando em São Paulo.


A década da revolução perdida: a onda de manifestações que incendiaram o mundo, de Vincent Bevins

Da chamada Primavera Árabe ao Gezi Park, na Turquia, do Euromaidan, na Ucrânia, às rebeliões estudantis no Chile, até as jornadas de Junho de 2013 no Brasil, Bevins apresenta um relato detalhado dos movimentos de rua e suas consequências. Ele se baseia em quatro anos de pesquisa e centenas de entrevistas realizadas em todo o mundo, bem como em suas próprias experiências como correspondente no Brasil, onde uma explosão de protestos liderados por progressistas levou, anos depois, a um governo de extrema direita que incendiou a Amazônia.

Uma investigação cuidadosa revela que o pensamento convencional sobre mudanças revolucionárias está bastante equivocado. Nesta obra inovadora, que cobre uma abrangente cadeia de eventos e conta com prefácio inédito do autor à edição brasileira, manifestantes fazem uma retrospectiva dos sucessos e das derrotas, oferecendo lições urgentes para o futuro.


Junho de 2013: a rebelião fantasma, organizado por Breno Altman e Maria Carlotto
A rebelião de 2013 chegou sem aviso prévio. Afinal, a economia emitia sinais de prosperidade, com taxa de crescimento. Mas em junho daquele ano, gigantescas multidões tomaram as ruas das principais cidades. O que havia começado como um movimento contra o aumento das passagens de ônibus se transformou em uma insurgência que sacudiria a vida política do país.

Entender o que havia ocorrido se tornou um dilema para estudiosos e agentes políticos. Era necessário compreender os impactos daqueles acontecimentos sobre o processo político dos anos seguintes. Após dez anos, é possível traçar um diagnóstico daquele momento? As manifestações foram uma explosão popular autônoma? É possível afirmar que Junho de 2013 contribuiu para o aumento e consolidação da extrema direita nas esferas de poder do país?

Essas e outras perguntas servem de bússola para os nove artigos e para o ensaio visual que compõem a obra Junho de 2013: a rebelião fantasma, organizada por Breno Altman e Maria Carlotto. Além de textos dos organizadores, o livro traz contribuições de Camila Rocha, Jones Manoel, Lucas Monteiro, Mateus Mendes, Paula Nunes, Raquel Rolnik, Roberto Andrés e Vladimir Safatle, Prólogo da ex-presidenta Dilma Rousseff, além de fotografias das manifestações feitas por Maikon Nery. Com diferentes perspectivas, os autores buscam desvendar aquele momento, que se tornou uma das maiores ondas de mobilização social dos últimos anos.

Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, com textos de Mauro Iasi, Lincoln Secco, Silvia Viana, Raquel Rolnik, Venicio A. de Lima, Leonardo Sakamoto, Jorge Luiz Souto Maior, Carlos Vainer, João Alexandre Peschanski, Pedro Rocha de Oliveira, David Harvey, Ermínia Maricato, Mike Davis, Ruy Braga, Slavoj Zizek e Felipe Brito
Refletindo sobre as manifestações do Movimento Passe Livre, reúne análises de renomados pensadores. Aponta para temas como desigualdade social, direito à cidade e esgotamento do modelo político, apresentando uma visão multifacetada das vozes rebeldes nas cidades brasileiras.

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