Olhares dialéticos sobre o império ocidental: 4 análises marxistas para uma crítica do contemporâneo

Theatrum Orbis Terrarum” [Teatro do Globo Terrestre], de Abraão Ortélio (1570), considerado o primeiro atlas moderno. Imagem: Wikimedia Commons

Conhecer criticamente o passado para ensejar novos horizontes de futuro é uma premissa basilar para aqueles que desejam transformar a realidade presente. Pensando nisso, e tendo por inspiração o lançamento de O império universal e seus antípodas: a ocidentalização do mundo (e sua crise), de Marcos Del Roio, que chega em primeira mão aos assinantes do Armas da Crítica — o clube do livro da Boitempo — deste mês, preparamos uma lista com quatro autores marxistas que produziram análises fundamentais para pensar o surgimento do mundo contemporâneo e lutar contra o capitalismo.


ERIC HOBSBAWN

Foto: WikiCommons.

Vinculado ao Partido Comunista inglês durante toda sua vida, Eric Hobsbawn é autor de uma obra monumental — inspirada não apenas pelo marxismo, mas também por sua própria trajetória de vida (ele, afinal, nasceu em 1917 e de algum modo acompanhou todos os eventos marcantes do século XX) — e manteve-se ativo política e intelectualmente até sua morte, aos 95 anos. Entre as décadas de 1950 e 1960, dedicou-se ao estudo da classe operária, sobretudo a inglesa no período de sua formação, trabalhos que, nas palavras do historiador Osvaldo Coggiola, contrapunham:

“à velha história do movimento operário centrada sobre suas instituições (sindicatos, partidos, líderes, greves e insurreições), […] um novo tipo de história operária e popular, inspirada nos avanços da historiografia acadêmica e baseada na pesquisa de fontes primárias, na qual condições materiais de vida, práticas cotidianas, hábitos, costumes e cultura ganhavam seu devido lugar, contribuindo para uma reconstrução histórica mais precisa, não dogmática ou hagiográfica”.

Sem sombra de dúvidas, contudo, seu grande trabalho foram os volumes conhecidos como “As eras”, um imenso esforço de síntese da história ocidental desde a Revolução Francesa. “Essas obras de Hobsbawm são um tour de force sem paralelos na historiografia contemporânea, marxista ou não. A agenda da obra, sua periodização do capitalismo, é de inspiração marxista: a vitória, estabilização, expansão mundial e, finalmente, decadência do capitalismo, ocupando cada volume”. Longe de uma vulgarização, trata-se de “um relato sintético magistral, de uma erudição sem precedentes em relação aos períodos considerados e de magnífica fluidez lógica e literária […] Nunca um historiador havia conquistado tal grau de difusão escolar e popular”, escreve o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo no artigo “Eric Hobsbawm, um historiador marxista”, publicado na Margem Esquerda #19.


SILVIA FEDERICI

Foto: WikiCommons.

Desde uma perspectiva da filosofia política e do feminismo, a marxista italiana Silvia Federici empreendeu um estudos históricos sistemáticos sobre a caça às bruxas — que não ocorreu apenas no continente europeu, nem é uma prática que ficou restrita à Idade Média —, demonstrando a interrelação entre a perseguição às mulheres instaurada pela Inquisição e os processos de cercamento e privatização de terras comunais essenciais ao surgimento do capitalismo. A partir dessas pesquisas, seu trabalho propõe uma releitura crítica da acumulação primitiva, conforme descrita por Marx em O capital, livro 1. Em Mulheres e caça às bruxas, ela defende que:

“O desenvolvimento do capitalismo começou com uma guerra contra as mulheres: a caça às bruxas dos séculos XVI e XVII, processo que, na Europa e no Novo Mundo, […] foi um elemento central do processo que Marx definiu como acumulação primitiva, pois destruiu um conjunto de sujeitos e práticas femininas que atravancava o caminho das principais condições para o desenvolvimento do sistema capitalista: acumulação de uma numerosa mão de obra e imposição de uma disciplina de trabalho mais coercitiva. Apontar e perseguir as mulheres como “bruxas” preparou o terreno para o confinamento das europeias no trabalho doméstico não remunerado. Isso legitimou sua subordinação aos homens, dentro e fora da família. Deu ao Estado controle sobre sua capacidade reprodutiva, garantindo a criação de novas gerações de trabalhadores e trabalhadoras. Dessa forma, as caças às bruxas estruturaram uma ordem especificamente capitalista, patriarcal, que continua até hoje, embora tenha se ajustado constantemente em resposta à resistência das mulheres e às necessidades sempre em transformação do mercado de trabalho” (p. 91-92).

Dessas análises deriva também a noção de “patriarcado de salário“, que compreende a relação entre o estabelecimento de contingentes massivos de trabalhadores livres para o desenvolvimento industrial europeu e a subjugação das mulheres na transição do feudalismo ao capitalismo, tanto confinando-as ao ambiente e trabalho doméstico quanto controlando sua sexualidade — ou seja, expropriando-as de sua capacidade de reprodizir as classes trabalhadoras.


C.L.R. JAMES

C. L. R. James aos 37 anos. Foto: WikiCommons.

Cyril Lionel Robert James nasceu em Trinidade e Tobago, em 4 de janeiro de 1901, e se tornou célebre por seu trabalho paradigmático sobre a Revolução Haitiana. Em 1938, no auge do nazifascismo e da predominância de teorias supremacistas em todo o mundo, o então jovem historiador dedicou-se a demonstrar a função histórica da escravidão e da opressão racial. Seu livro Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos apresenta um relato minucioso da insurreição de escraviados que expulsou os colonizadores franceses da ilha de São Domingos, iniciada em agosto de 1791 — apenas três anos, portanto, após a derrubada do absolutismo na França. No entanto, se a monarquia absolutista foi guilhotinada, instaurando a República, a metrópole colonial manteve-se intacta. Comparando o processo revolucionário no Haiti à sua matriz francesa, o marxista escreveu: “(…) a liberdade e a igualdade que os negros aclamavam enquanto iam para a batalha tinham muito mais significado em suas bocas do que na dos franceses. E numa luta revolucionária isso vale mais do que muitos regimentos” (p. 279).

A independência foi conquistada, mas isolados da economia internacional por terem se rebelado não apenas contra a colonização, mas contra a escravidão em uma época onde os Estados Unidos, Cuba e Brasil eram sociedades escravocratas, a rebelde ilha caribenha foi condenada ao atraso por sua ousadia. O destino de seu líder, Toussaint L’Ouverture, foi igualmente trágico.


MARCOS DEL ROIO

Em meados dos anos 1990, quando a esquerda radical parecia viver uma situação dramática após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, mas “também a desilusão dos que se julgaram vitoriosos não poderia ser maior”, Marcos Del Roio, professor titular de ciência política da Unesp e historiador de formação pôs-se a refletir sobre o tão propalado “fim da história”:

“É claro que a história teria continuidade”, escreve ele no prefácio a O império universal e seus antípodas: a ocidentalização do mundo (e sua crise), “mas essa expressão, até certo ponto arrogante, significava implicitamente que afinal, depois de mil anos, o Ocidente configurava seu império universal, que o capitalismo havia vencido, que não havia qualquer alternativa ao domínio do capital, o socialismo estava morto, o marxismo também. Os liberal-democratas insistiam que, com o fim da ‘guerra fria’, a luta em defesa dos direitos humanos e da preservação do meio ambiente representariam o núcleo da ação política, com a pressuposição de que a democracia liberal tenderia a se espalhar pelo mundo. Imaginou-se que a utopia liberal estava mesmo prestes a se realizar com a configuração do imperium mundi“.

Passadas três décadas, a crise não poderia ser mais evidente:

“A revolução científica e tecnológica, a ideologia e a política neoliberal não conseguiram recompor a hegemonia burguesa e conter o declínio da taxa de acumulação do capital. A militarização e a devastação ambiental só fizeram crescer, fazendo mais próxima uma catástrofe humana irreversível. Na sua luta para sobreviver, o capital ataca com toda a fúria a força antagônica em condições de contornar a barbárie tecnológica e gerar uma alternativa socialista emancipatória, que está constituída como classe subalterna e como povos colonizados. Classe ou grupos sociais subalternos, hoje acuados e subjugados, constituem ainda a única esperança para a humanidade”.

Produziu, assim, uma história do mundo contemporâneo de longo alcance, que volta às estantes em um período decisivo da luta política.


Em O império universal e seus antípodas, o professor Marcos Del Roio traz um panorama abrangente sobre a história moderna percorrendo a formação, o desenvolvimento, a transformação e o declínio de impérios e sistemas mundiais, apresentando o Ocidente ao longo de centenas de anos e sua contraposição ao Oriente. O autor mostra como nasceu e se consolidou a ideia de um Oriente negativo, inferior e desprovido de identidade, pronto para ser conquistado e salvo pelo Ocidente.
 
Mesclando história, política, filosofia, economia e religião, Del Roio traz amplo conhecimento da história moderna: “Não se trata de mais uma obra sobre o Oriente imaginário, mas sim da análise do papel da negação e subalternização do outro na construção da identidade do Ocidente e do projeto do império universal, processo no qual a representação política do Oriente é um dos aspectos mais importantes”, diz o autor no prefácio.

Com erudição e comprometimento com pesquisa e fatos históricos, surge um retrato fidedigno dos últimos mil anos de poder e imperialismo no mundo: “Através de uma escrita cristalina, Marcos vai nos mostrando como, a partir do ano 1000, a Igreja e o Estado no Ocidente foram afirmando seus poderes, ao preço de criarem e solidificarem a imagem de um Oriente atrasado e inimigo — espécie de eterno aleijão político, econômico e cultural — e um próprio Ocidente interno subalternizado, feito de trabalhadoras, trabalhadores e insubmissos de toda cepa”, escreve o historiador Iuri Cavlak no texto de orelha.

“Este livro narra a trajetória de um imperium mundi ocidental desde a Idade Média, sem deixar de atentar para os outros do processo: a mulher, a natureza, o herege, a feiticeira, o diabo, o judeu etc. Nada mais atual.

Marcos Del Roio acompanha essa história durante a modernidade, passando pelo liberalismo clássico e pela crítica comunista. Para ele, a alternativa ao liberalismo viu-se manifestada por um ‘reformismo social sem reformas substantivas’ ou ‘uma oposição comunista incapaz de gestar uma subjetividade antagônica à revolução passiva no Ocidente e no Oriente’.” 
— Lincoln Secco

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