Neste breve volume, ao interpretar a renúncia do papa Bento XVI, em chave, a um só tempo, teológica e política, escatológica e histórica, Giorgio Agamben aborda a questão da crise da sociedade e das instituições contemporâneas ressaltando como ponto crucial a confusão entre legalidade e legitimidade. No bojo de suas considerações, o filósofo italiano aponta ainda o papel da Igreja nos dias atuais.
O livro é composto por dois textos. O primeiro, "O mistério da Igreja", é uma reflexão sobre o significado do gesto de Bento XVI à luz de Ticônio, teólogo donatista do século IV cuja doutrina teria influenciado fortemente santo Agostinho em sua concepção das duas cidades, a dos homens e a de Deus. O segundo, "A história como mistério", é a transcrição de uma conferência que o autor proferiu na Suíça, em novembro de 2012, quando recebeu o Título honoris causa em teologia. Logo no início do volume, Agamben adverte o leitor da pertinência de publicá-los lado a lado: ambos tratam da mesma questão, o "significado político do tema messiânico do fim dos tempos, tanto hoje como há vinte séculos".
Essencial para a compreensão dessa aproximação é o Apêndice, no qual o autor reproduz os textos que são os pilares de sua interpretação: a "Declaração de Celestino V" (1215-1296), o outro papa que entrou para a história por ter renunciado ao cargo, a "Declaração de Bento XVI" - ambos em versão bilíngue, latim-português -, a segunda e a sétima regra do Liber regularum de Ticônio, respectivamente, "O corpo bipartido do Senhor" e "O diabo e seu corpo", e o capítulo XIX do Livro XX de A cidade de Deus, de santo Agostinho, dedicado ao comentário da Segunda epístola aos tessalonicenses, do apóstolo Paulo.
O ponto de partida para a leitura que Agamben faz da "grande recusa" de Bento XVI é um artigo que o teólogo Ratzinger escreveu em 1956, aos 30 anos: "Considerações sobre o conceito de Igreja de Ticônio no Liber regularum". Segundo o filósofo, a consciência de que o bem e o mal são intrínsecos à própria Igreja e de que o mistério está na história, ainda que vá além desta, evidenciada no texto do então futuro papa, permite dizer que seu gesto, muitos anos mais tarde, foi um ato de coragem. Fazendo uso do poder espiritual, sua decisão aponta a necessidade de que a Igreja assuma sua responsabilidade histórica e messiânica e coloca em xeque a legitimidade dessa instituição que "persegue com obstinação as razões da economia e do poder temporal".
Distinguindo dois princípios essenciais da maquinaria política, a legitimidade e legalidade, Agamben mostra como a atitude de papa Bento XVI afeta nossa sociedade, não só porque questiona a legalidade das instituições, mas também a sua legitimidade. Na visão do filósofo, os poderes e as instituições hoje não estão deslegitimados porque caíram na ilegalidade. Ao contrário, a ilegalidade é tão difundida e generalizada que os poderes perderam toda a consciência de sua legitimidade. Por isso, escreve o autor, é errado acreditar que se pode enfrentar a crise das sociedades por meio de ação (certamente necessária) do poder judiciário, "uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do direito".
A tentativa moderna de equiparar legalidade e legitimidade é - além de resultado do interminável processo de decadência em que entraram as instituições democráticas - totalmente ineficiente, uma vez que as instituições de uma sociedade se mantêm vivas somente se estes princípios continuem presentes e atuando sem se coincidirem. Num mundo dominado por opiniões ligeiras, este livro restitui o lugar do saber, do conhecimento e da reflexão cuidadosa na sempre necessária crítica à sociedade em que vivemos.