Crônicas de Berlim (23): A intempérie da desilusão
Por Flávio Aguiar.
Outro dia passava eu pela simpática feira perto de minha casa, na Winterfeldtplatz, quando deparei com um quadro verdadeiramente desolador.
Em meio às vitualhas – frutas, legumes, verduras, wursts (um coletivo para salsichas, salames, mortadelas, etc.), carnes, frangos – roupas, cedês, devedês, quinquilharias, facas, ferramentas, plantas ornamentais e de hortifrutos e pães e méis e geléias e vinhos e em meio à flora dos passantes que se produzem, mesmo com a chuva, para vir à feira, um sorumbático vendedor estava ilhado entre as peças da sua mercadoria.
Cercado pela chuvinha fina mas impiedosa que caía, ele contemplava, desiludido, as mesinhas e cadeiras de jardim que escolhera para vender nesta primavera. Primavera? Em meus 17 anos de frequência a Berlim, seis de residência, nunca vi uma primavera tão fria e excêntrica quanto esta. Frio para cria de Vacaria, no planalto gaúcho, não botar defeito. Enganado por um domingo ensolarado e já longínquo, eu já começara então a emalar (hoje estou para vocábulos preciosos) minhas roupas de inverno. Felizmente parei no poncho, e o que sobrou de lã e couro no meu estoque de roupas disponíveis me ajudou a atravessar os dias sombrios e as noites geladas desta primavera com ares de “outono verde”, como classificou, com felicidade, a minha companheira.
Mas havia algo especial naquele olhar perdido entre as mesas inúteis e as cadeiras agora decorativas, perladas pelas gotas que nas beiradas se acumulavam. Era um olhar para dentro. Pode ser que eu esteja viajando na mostarda – pasta mais tipicamente alemã do que a maionese, embora esta também tenha vasto uso por aqui – mas fiquei com a forte impressão que o olhar contava de um fracasso. Algo assim como se ele não culpasse o aquecimento global, que faz a corrente do Labrador, que nasce no Ártico, se encolher, puxando a do Golfo – aquecedor natural do norte da Europa – mais para dentro do oceano. Nem culpava as emissões de CO2, que partem sobretudo dos países desenvolvidos do hemisfério norte, entre eles a Alemanha. Também não culpava o desflorestamento global, o número excessivo de carros, a concentração urbana, a multidão de coisas culpáveis que haveria diante do emperramento de suas – em outras circunstâncias – adoráveis cadeiras e mesinhas coloridas.
Não: aquele olhar era um olhar para dentro. Eles – o olhar e seu dono – culpavam a si mesmos, confessavam o próprio fracasso. Como se o olhar exprimisse a desilusão: eu errei, eu calculei mal, eu apostei nas coisas erradas na primavera errada e agora eis-me aqui, ecce homo, diante do meu fracasso que poderia ter sido evitado se eu tivesse tomado as decisões certas ao invés das equivocadas. Bom, vá lá que isto seja meia-verdade. O cidadão deveria ter consultado a tábua das previsões de Greenwich, da Nasa, do Correio do Povo de Porto Alegre de 50 anos atrás, cujo palavreado meteorógico era tão vago que ele acertava mesmo quando errava. Mas isto seria apenas meia verdade. A outra metade é a de que um cidadão comum, em meio a esta sarabanda da crise européia que uma grande parte da Alemanha se recusa a aceitar como sendo de todo o continente e a aceitar que a culpa por ela também é sua, resolveu confiar suas economias e o seu crédito a um bando de cadeiras e mesinhas de jardim, na época hipoteticamente apropriada, isto é, a primavera, em que a esmagadora maioria das pessoas adora sentar-se ao sol, ao lado de uma loura ou morena cerveja, ou de um louro ou moreno copo de vinho. Só que hipotética, na verdade, era a primavera, que na prática se revelou tão traiçoeira quanto a Milady d’Os três mosqueteiros.
O olhar do cidadão me levou a pensar num certo karma que observo em distintas circunstâncias nesta controvertida Alemanha – a de ontem e a de hoje. Sei que estou entrando no movediço terreno das “generalizações perigosas”, mas vá lá: me arrisco de bom grado. Afinal, quem não se arrisca não escreve. Me refiro (perdoe, cara leitora ou leitor, a próclise do pronome fora do lugar; ou será ênclise? Ou mesóclise? Ou prótese? Ou procastinação, prevaricação com um pobre pronome? – eu avisei que estava para palavras difíceis), repetindo, agora sem erros de colocação, me refiro a certa dificuldade em lidar com desilusões nesta terra de Goethe, Schiller, Fritz Walter, Michael Schumacher, Beckenbauer, Oliver Khan, Balack e mais recentemente Thomas Müller.
A dificuldade em lidar com ela vem daquilo que eu antevi no olhar do pobre vendedor de primaveras hipotéticas, quando as reais não chegaram a tempo: no mais das vezes a desilusão é para dentro. Raramente existe um plano B nestas terras ao norte dos Alpes, cortada pelo Elba, a leste do Reno e a oeste do Oder e do Danúbio que agora desatam suas fúrias sobre as pobres cidades que estão no seu caminho, numa inundação primaveril que está sendo descrita como a enchente dos séculos: a do passado, a deste e provavelmente a do futuro. Bom, aqui está o roto falando do descosido, pois, continuando pelo terreno das “generalizações perigosas”, na nossa terra brasilis as desilusões vêm muitas vezes do fato de que nem houve sequer um plano A. Vai tudo meio aos trambolhões, confiando-se na Providência Divina, na Sorte do nosso lado e no Azar do outro lado, na ideia de que se no mundo neo-liberal do nosso vale-de-lágrimas é cada um por si e Deus na arquibancada, Deus, lá na geral ou nas cativas, estará vestindo a camiseta canarinho da CBF. Por aqui não. Deus é um juiz implacável das deficiências internas. A única alternativa diante desse permanente Juízo Final é afiliar-se religiosamente a uma racionalidade pragmática: planeja bem, e serás recompensado. Por isso às vezes me surpreende ver em meio à chuva e ao frio ora imperantes, mulheres de alcinha e homens de camiseta de física, bermuda e chinelão de dedo. Eu demorei, mas compreendi: estes corpos se planejaram – há meses, provavelmente – para a primavera. Se está frio, este é um problema dela.
Mas parece mentira, a nossa imprevidência permanente pode facilitar as coisas. No caso de um fracasso, existe um mundo de coisas a responsabilizar. A chuva, por exemplo.
Voltaremos ao assunto na próxima crônica. Eu ia arrematar com otimismo dizendo que nós acreditamos mais em que “água mole em pedra dura…” mas achei que não seria conveniente.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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