Sobre Schwarz – sobre Adorno [sobre Beckett]

O mundo de Beckett é o mundo dos despossuídos, dos outros e de si mesmos. É um fim de partida, sem fim.

Imagem: Adolf Hoffmeister (Wikimedia Commons).

Por Bruna Della Torre

Um dos grandes méritos filosóficos de Adorno é desenvolver uma teoria da sociedade contemporânea que leva a sério o que a arte moderna conta a seu respeito […] O seu desafio está em reconhecer o mundo na arte e vice-versa, o que pressupõe sempre um pulo do gato, já que os polos são correlativos, mas não idênticos. A chispa que os une não é automática nem fácil, e é sempre um achado, uma trouvaille com alcance real. É uma operação que exige olho clínico, a capacidade de ver uma coisa na outra, sem confundi-las, nem ignorar seu parentesco.
— Roberto Schwarz, “O mundo bloqueado: a façanha artística de Beckett e sua decifração por Adorno”

2024 se encerra num fim de partida, com a reedição de um texto de Roberto Schwarz na revista Piauí. Publicado numa outra versão há alguns anos, como a primeira parte de um capítulo intitulado “Dialética da Formação” no livro Experiência formativa e emancipação, organizado por Bruno Pucci, o texto é um dos raros momentos em que Schwarz se dedica a um exercício “metateórico”, por assim dizer, de comentário ao próprio “fazer” da crítica literária – algo que, no restante de sua obra, aparece na práxis, em interação com os objetos literários num sentido amplo do termo. Nesse sentido, o texto sobre Theodor W.  Adorno se equipara em muitos sentidos a “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”, e não é fortuito que, em sua primeira versão, a análise também se encerre com uma reflexão sobre a crítica literária de Antonio Candido (e suas vantagens em relação ao autor alemão). Por isso, esse texto, que deriva de uma palestra ministrada em 2006, é tão importante em sua obra; guardadas as devidas proporções de escala e tema, é como o “Prefácio para a Crítica da Economia Política” para a obra de Marx. Se, de um lado, sabemos que a dialética importa como aquilo que se faz em ato, por outro lado, vale confessar, nós marxistas bem que gostamos de um debate sobre o método de vez em quando e, se juntarmos as reflexões de Candido sobre O método crítico de Silvio Romero, suas reflexões sobre a crítica literária e os comentários de Schwarz sobre Candido e Adorno, podemos dizer que temos um belo assunto para tratar no âmbito da crítica literária, como momento importante do projeto de literatura comparada.

Schwarz se debruça sobre a crítica literária de Adorno, ainda hoje amplamente lida (embora ainda sem tradução completa para o português), mas surpreendentemente pouco discutida enquanto tal. Num momento em que a reflexão teórica é expulsa de todas as áreas das ciências humanas, talvez ela seja muito exógena para a literatura e muito literária para a filosofia e as ciências sociais, permanecendo de certa forma deslocada, numa espécie de limbo – uma referência, mas não exatamente um objeto de estudos bem acolhido. A palestra de Schwarz mostra como esse trabalho pode ser feito, sua importância e ganhos críticos para todas as áreas em questão. Menos preocupado com cercamentos disciplinares, Schwarz destaca:

[…] a articulação complexa e produtiva de crítica literária, filosófica e social, o projeto de Adorno em várias frentes: o diagnóstico da atualidade, a crítica a Heidegger e Sartre, a revelação de outro Beckett, muito mais decisivo, o elogio da radicalidade da arte avançada, uma variação de prismas em que os temas são retomados com alto grau de evidência polêmica e artística (Schwarz, 2024, p. 86).

A palestra toma como objeto um dos melhores ensaios de crítica literária de Adorno, “Tentativa de entender Fim de Partida” (1961) – um ensaio que forma um par com outro texto do autor, “Engajamento”, de 1962, cujo manuscrito levava inicialmente o curioso título de “Dialética do Engajamento”. O primeiro, como o nome diz, trata do drama Fim de Partida, de Beckett, e da falência do existencialismo. O segundo aborda as obras de Beckett, Bertolt Brecht e Jean-Paul Sartre de maneira menos consistente que o primeiro, mas em evidente diálogo. O fio que une ambos os ensaios é Sartre, embora Brecht permaneça como uma sombra no ensaio de 1961. Como meu texto é o comentário de um comentário de um comentário, ou melhor, o comentário de dois brilhantes ensaios, não vou me ocupar em repetir os argumentos de Schwarz e Adorno – ótimas leituras para o final de um ano que acaba com a vitória de Donald Trump e a ameaça de guerra nuclear na Europa –, mas chamo a atenção para a atualidade metodológica, estética e histórica dessas reflexões para a teoria crítica.

Schwarz realiza um exercício extremamente difícil. A relação dos conceitos e ideias no interior do ensaio de Adorno se dá de maneira que não se expõe ou deduz um a partir de outro, mas como um emaranhado que não se deixa desmanchar. Isso é transparente para quem se debruça sobre sua obra como um “comentador”, pois é só puxar um fio desse aparente nó para que muitos outros venham junto, tornando o trabalho do especialista extremamente difícil. Apesar disso – e sem reorganizar o material de maneira, digamos assim, positivista – Schwarz destaca alguns movimentos do ensaio de Adorno.

O primeiro diz respeito à relação entre literatura e história. Schwarz mostra como Adorno simultaneamente localiza historicamente a peça de Beckett e ao mesmo tempo mostra como a peça impele a uma outra historicização do século XX. De um lado, “ela se passa ‘depois’, isto é, depois de muita coisa, propositalmente difusa, ou pouco ou nada precisada. Depois, por exemplo, de uma catástrofe nuclear incompleta, a qual permitiu, por assim dizer, que a vida continue” (Schwarz, 2024, p. 85). Schwarz comenta também a sugestão adorniana clássica, de que talvez ela tenha acontecido depois de Auschwitz, bem como destaca que ela “se passa igualmente depois de Sedan, um lugar de guerras repetidas, em particular de dois grandes desastres militares franceses. Um em 1870, quando França de Napoleão capitulou diante da Prússia. Outro em 1940, no começo da Segunda Guerra Mundial, que abriu o caminho para que os alemães ocupassem Paris” (Schwarz, 2024, p. 85). Ou seja, chama a atenção para como primeiro Adorno fornece a ela uma referência – que é também de lugar, talvez a Europa (porque a peça foi escrita em francês), talvez um bunker –, que no texto de Adorno aparece como sinédoque para a atomização individual no capitalismo tardio. Mas Schwarz sublinha, por outro lado, o movimento reverso que encontramos em Adorno, pois ele mostraria que a peça de Beckett “não corresponde à historiografia corrente. Esta última nos conta, por exemplo, a vitória dos aliados sobre o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial, ou a vitória da democracia sobre o comunismo, que se completou com a queda do Muro, ou o progresso da civilização e da técnica etc. etc., – tudo histórias positivas e edificantes. A história de Beckett conta outra completamente diferente” (Schwarz, 2024, p. 87). Ou seja, mostra como Adorno localiza internamente na peça a sua referência histórica, mas demonstra, ao mesmo tempo, como a fatura final da obra aponta para uma outra leitura, mais crítica da realidade do pós-guerra e muito atual para pensar nosso presente (o fim do indivíduo, da historicidade e da memória e o triunfo do capitalismo de terra arrasada), como comentarei mais à frente.

O segundo movimento diz respeito à relação entre literatura e filosofia, talvez o núcleo da leitura de Adorno, original em relação a outros intérpretes de Beckett, como Martin Esslin, que, também em 1961, publicou o livro Teatro do Absurdo, incluindo o dramaturgo como um dos grandes representantes do gênero. Adorno recusa essa leitura, como mostra Schwarz, e vê no centro da peça de Beckett uma crítica ao existencialismo e às suas categorias:

A noção de absurdo supõe vivacidade e reação do sujeito, um mínimo de reflexo inconformista que nessa situação recente, de impotência de um novo tipo, perde o chão. O termo deixa de se aplicar (embora esteja na boca de todos, como um cacoete desatualizado). Algo parecido vale para a ideia da situação, que vocês conhecem de Sartre. Ela sugere um sujeito capaz de negar, alguém que estando em situação pode recusá-la e buscar outra. Ora, na falta de alternativa, a partir de certo grau de desvalimento, a ideia mesma do homem em situação perde a substância e fica impossível falar nela de maneira plausível, a não ser por ironia, como acontece aqui (Schwarz, 2024, p. 86).

Adorno mostraria, então, que a miséria dos personagens de Beckett (Hamm, Clov, Nagg e Nell, que estão presos numa “paralisia”, como diz Schwarz, ou no que Adorno chamaria de pseudo-atividade) é a miséria da filosofia existencialista, que deposita seus conceitos principais – como situação e decisão – na figura do indivíduo (que a primeira metade do século XX tratou de destruir). Schwarz, por sua vez, demonstra como a filosofia é elemento interno da matéria literária de Beckett e, portanto, exige que o crítico saiba também manusear esse material para acessar a malfadada “forma”. Isso importa porque Schwarz mostra, a partir de Adorno, como a relação da crítica literária com a filosofia não precisa resultar numa leitura filosofante da literatura. Ao contrário, nos dá argumentos para pensar que o crítico literário que não estiver atento aos debates filosóficos de sua época pode perder o bonde. O ensaio de Schwarz (bem como o de Adorno) não é uma aula do que hoje recebe o nome duvidoso de “interdisciplinaridade”, mas uma defesa da mediação disciplinar que qualquer análise marxista consequente da literatura deve almejar, pois para entender a peça de Beckett é preciso entender também que seu significado prescinde de mediação filosófica – algo que só se entende passando pela filosofia, e não a evitando. Hoje, a peça de Beckett atinge em cheio novas manifestações do existencialismo em algumas tendências decoloniais, cujos motes “decolonize sua mente” e “se desligue da matrix de poder” reatualizam a categoria de decisão e a ideologia da escolha como seu eixo central. Nessa chave, o modernismo de Beckett, conforme ressalta Adorno, aparece aqui não como expressão do moderno, mas como sua obsolescência.

O terceiro movimento do ensaio de Schwarz diz respeito à relação da literatura com os gêneros literários. Schwarz discute como Adorno observa uma novidade na maneira como Beckett mobiliza a comédia pastelão para contar algo trágico, mas sem sentimentalismo. Ele se apropria de um gênero ligado ao humor, conforme mostra Adorno, para retorcê-lo e fazê-lo dizer outra coisa. Recorrendo à teoria dos gêneros de Aristóteles, Schwarz explica:

A peça em certo sentido respeita a regra clássica, das unidades de lugar e tempo, já que tudo se passa dentro de um quarto e em poucas horas. Entretanto, a unidade perdeu o sentido, já que o lugar, embora seja um só, é ostensivamente inespecífico. Por sua vez, a unidade de tempo tampouco tem força, porque, como as coisas pouco se articulam, como a ação não tem aquele mínimo de consistência necessário para que a unidade de tempo funcione, ela está desmanchada. As coisas ocorrem num tempo curto a que faltam os atributos do tempo. Idem para a unidade da ação: tudo – ou nada? – se passa entre o senhor e o seu criado, com um pouquinho de intervenção do casal mutilado, resultando em algo como um sarcasmo difuso quanto à ideia mesma de unidade da ação. Uma alteração semelhante, enfim, ocorre com a separação dos gêneros, que já comentei. Estamos diante de uma tragédia? De uma comédia? De uma mistura dos dois? Ao que parece, na situação nova a separação dos gêneros não se aplica mais, ou melhor, as definições deixaram de funcionar. A matéria é de comédia, mas com a gravidade da tragédia, cuja consistência contudo lhe falta totalmente (Schwarz, 2024, p. 86).

Schwarz chama a atenção aqui para um elemento central na leitura que Adorno faz de Beckett: o problema do humor, que, por sua vez, é um tópico subestimado na própria obra de Adorno – tema que está presente nela de ponta a ponta. Até mesmo em suas aulas, Adorno pedia às e aos estudantes que fizessem uma tipologia do riso (uma maneira de analisar também as várias manifestações do autoritarismo). E mais do que isso, Schwarz ressalta como a peça, ao transformar a forma de apresentação do humor (e da comédia) ou ao que ele se refere (no caso, à catástrofe) resulta numa desestabilização gêneros literários historicamente enrijecidos (e que, muitas vezes, perderam sua base social). O efeito, diz Schwarz, ao invés de cômico ou trágico, é realista – e mostrar que o elogio de Adorno ao modernismo está ligado, na verdade, a uma concepção mais profunda de realismo é algo que só uma crítica marxista da obra do teórico crítico pode alcançar.

“O mundo bloqueado” também nos ajuda a pensar a diferença entre a crítica literária e o close reading, que por vezes tenta se passar por crítica imanente. Schwarz mostra que a teoria literária que interessa deve estar informada por uma teoria da sociedade e, por sua vez, construir essa também a partir da arte, ou seja, que há uma dialética entre forma estética e forma social, que não permite que uma prescinda da outra. Ele mostra como a forma entendida como conteúdo sedimentado, como quer Adorno, exige — da crítica — mediação e conhecimento histórico (da história social e da arte), político, sociológico e filosófico para além do fetiche do “corpo a corpo” com a obra. Por isso o texto é também uma grande aula de teoria e crítica literária.

Mas, aproveitando o ensejo criado pela palestra de Schwarz, gostaria de dizer mais uma ou duas palavras sobre a atualidade dessas reflexões, não só de Schwarz, mas de Adorno e de Beckett.

“Tentativa de entender Fim de Partida” talvez seja o mais apocalítico dos textos de Adorno. Lá, ele apresenta Beckett como esse autor, em certo sentido, pós-apocalíptico (um pouco como o pós-colonialismo é uma continuação do colonialismo por outras vias). Algo no espírito do que disse Susan Sontag (1990, p. 89): “a questão não é mais apocalipse agora [apocalipse now], mas apocalipse de agora em diante [apocalypse from now on]”. Lido nessa chave (ou melhor, vinculado a esse subgênero), a peça dá um baile na arte contemporânea. Em seu texto, Adorno destaca a superioridade da obra de Beckett em relação à ficção científica e sua reflexão é extremamente atual para pensar o momento que vivemos.

Não é um exagero dizer que, hoje, a chamada ficção científica especulativa em grande medida se reduz à construção de “cenários” apocalípticos e pós-apocalipticos. Ela figura o “e se…”, “o que pode acontecer se continuarmos nesse caminho”… e aparece hoje como o subgênero literário por excelência de figuração da catástrofe: na literatura, no cinema, nas plataformas de streaming. O apocalipse, nesse sentido, se torna uma das mercadorias (e temas) mais lucrativos da indústria cultural. Num mundo no qual o pós-apocalipse é vivenciado na forma de espetáculo, com livros, filmes e séries que pouco se diferenciam de videogames (e de uma pornografia da violência), permeados por epidemias e zumbis, a obra de Beckett (e vale conferir suas peças para a televisão, nesse sentido) é ela própria um protesto contra a indústria cultural. Esse protesto se manifesta em sua lentidão exasperante (que escancara o estilhaçamento de nossa atenção), sua falta de ação (que expõe nossa própria pseudo-atividade) e seu aspecto cinzento (que nos mostra como nos distraímos facilmente com as luzes de neon de Hollywood). Ao recorrer à comédia e retorcê-la, ela evidencia também o prazer ideológico envolvido nesse hiperconsumo da catástrofe a que estamos assistindo. Beckett faz um jogo interessante com as palavras: o “fim de partida” no xadrez se caracteriza pela diminuição de peças no tabuleiro e de desfechos possíveis para um jogo. Na peça em questão, há quatro personagens e uma partida estranha (que ninguém parece poder ganhar). Talvez ela aluda ao próprio teatro ou à arte como jogo, e às limitações de suas possibilidades no pós-guerra, demonstrando como a arte que busca figurar a experiência da catástrofe e o próprio fim da experiência deve incorporar uma reflexão sobre a possibilidade de narrar ou figurar essa história.

Mesmo de uma perspectiva política, a peça avança em relação ao gênero especulativo, uma vez que, atualmente, essa mesma “especulação” se torna uma ferramenta de administração do caos: hoje, consultores de todas as áreas, literatura, economia, ciência política, são recrutados por militares e Estados nacionais para aventar “hipóteses” sobre o que pode acontecer daqui em diante uma vez que a imaginação contemporânea não consegue mais compreender os laços entre presente e futuro e vive um processo de des-historicização da memória. Beckett, ao contrário, expõe como o exercício especulativo é limitado por não se dar conta do que já aconteceu.

O quarto ou bunker onde estão presos os personagens de Beckett pouco se diferencia do cenário precário – mais um elemento para o qual Schwarz chama a atenção – em que vive a maior parte da população mundial, especialmente na periferia do capitalismo. Pouco se diferencia dos labirintos digitais nos quais estamos presos (seria interessante ler a peça à luz da distopia de Vale do Silício hoje – que nos cerca e elimina qualquer “exterior” à nossa vida de outras formas). Mas hoje se torna quase literal com mais de vinte milhões de americanos (e os números na Europa crescem a cada dia), que constroem bunkers para sobreviver ao fim dos tempos – vale conferir uma outra figuração do tema por Beckett em “Ghost trio” aqui. A obra de Beckett reflete – no melhor sentido do termo – a imagem do capitalismo neoliberal tardio. Fim de Partida escancara a atomização individual, a crise do cuidado, a dependência de remédios e entorpecentes para suportar a realidade, a vontade de fugir, mas sem ter para onde, a irracionalidade da dominação e a prescrição do trabalho, uma paisagem (desértica) destruída com um mar que secou ou não se move, a lata de lixo que toma o lugar do lar. O mundo de Beckett é o mundo dos despossuídos, dos outros e de si mesmos. É um fim de partida, sem fim. Por enquanto…

Referências Bibliográficas

ADORNO, T. W. “Versuch, das Endspiel zu verstehen”. InNoten zur Literatur III. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1965. p. 249–280.

SCHWARZ, R. O mundo bloqueado. Piauí, 2024. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-mundo-bloqueado/. p. 84–87.

SONTAG, S. Illness as Metaphor and AIDS and Its Metaphors. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1990.



Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (1958-2000), de Fabio Mascaro Querido
Resultado da tese de livre-docência do autor, defendida em dezembro de 2022 na Unicamp, a obra faz uma análise sobre os intelectuais ligados à Universidade de São Paulo dos anos 1960 à década de 1990. Ele revela como a vertente “marxista acadêmica” exerceu significativa influência nos debates sobre a abertura democrática dos anos 1980 e na vida política brasileira nas décadas seguintes. O livro examina como alguns personagens representaram simultaneamente o auge e o declínio do pensamento sobre a modernidade no país. Durante os anos 1970, em plena ditadura civil-militar, surgiram análises sofisticadas sobre as particularidades da sociedade brasileira, desafiando o desenvolvimentismo até então hegemônico na esquerda. No entanto, na década seguinte, com raras exceções, como a de Roberto Schwarz, observou-se um distanciamento dessas ideias por parte dos acadêmicos e uma aproximação destes com formulações universalistas, quer seja a visão de mundo neoliberal, que encontrará expressão no PSDB, ou a perspectiva classista, elaborada a partir da experiência do PT. O autor demonstra, assim, como a corrente intelectual da época moldou o pensamento sobre a democracia brasileira após a ditadura, bem como as mudanças e as divisões que ocorreram. Analisa esse importante capítulo da política, capaz de reinterpretar o passado e projetar futuros para o país.

Margem Esquerda #40 | Matéria brasileira
“A matéria nacional é nossa tarefa histórica.” Assim insiste nosso maior crítico literário marxista na entrevista que abre esta edição da Margem esquerda. Aos 84 anos, Roberto Schwarz é categórico: mesmo em um cenário de aguda desagregação social como o nosso – sepultados o desenvolvimentismo ingênuo e os sonhos de socialismo em um só país – a formação do Brasil segue sendo nosso problema fundamental, quase como uma “herança maldita”. Em conversa com Fabio Mascaro Querido, ele discute os rumos da tradição crítica brasileira na atualidade, e fala sobre aspectos pouco conhecidos de sua trajetória. O dossiê de capa aprofunda o mergulho nas contradições da “matéria brasileira” (para usar a expressão consagrada pelo crítico), em um conjunto de ensaios das novas gerações da teoria crítica. Reunido por Tiago Ferro, o quarteto investiga, retrabalha e testa alguns dos insights da obra schwarziana em confronto com a atualidade política do país.  

Nós que amávamos tanto O capital, de Emir Sader, João Quartim de Moraes, José Arthur Giannotti e Roberto Schwarz
O livro é resultado do Seminário Internacional “Marx: a criação destruidora”, realizado pela Boitempo em parceria com o Sesc São Paulo em 2013, que recuperou os eventos ocorridos entre 1956 e 1964, quando um grupo de jovens professores da Universidade de São Paulo (USP) dá início ao estudo da obra de Marx. Esses estudos, ficaram conhecidos como Seminários Marx. Nessa coletânea, quatro participantes dos Seminários Marx expõem muito mais que seus depoimentos sobre aquela experiência: trazem para o debate atual o significado que tais estudos tiveram para a compreensão científica de realidades brasileiras que desenvolveram em seus trabalhos futuros.

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Bruna Della Torre é coordenadora científica e pesquisadora no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg, onde também edita a revista Apocalyptica. Integra o comitê editorial da revista Crítica Marxista e o conselho científico de Constelaciones: Revista de Teoría Crítica (Madrid). Em 2023, foi Horkheimer Fellow no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt (Otto Brenner Stiftung). Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob a supervisão de Jorge de Almeida (2018-2021), com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt (anfitriã: Rahel Jaeggi) e no Departamento de Sociologia da Unicamp sob supervisão de Marcelo Ridenti (Fapesp). Doutora em Sociologia (bolsista Capes), mestra em Antropologia Social sob a orientação de Lilia Katri Moritz Schwarcz (bolsista Fapesp) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, realizou estágio de pesquisa na Universidade Goethe, em Frankfurt e no Departamento de Literatura da Universidade de Duke (anfitrião: Fredric Jameson), com bolsa da Capes. Tem experiência de pesquisa em e organização de arquivos. Com bolsa do DAAD, conduziu pesquisa no Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim, em 2014 e em 2019 e no arquivo de Oswald de Andrade (CEDAE/Unicamp) em 2011 com bolsa Fapesp. Em 2024, fez parte do projeto da International Herbert Marcuse Society de organização dos arquivos de Douglas Kellner, abrigado pela Universidade de Columbia. Foi, entre 2017 e 2018 e em 2021, professora visitante na UNB. É autora do livro Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil. É membra da coletiva “marxismo feminista“.


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