É preciso salvar Anora de seu criador

Imagem: Divulgação.

Por Alysson Oliveira e Patrícia de Aquino

As primeiras imagens do premiado Anora (2024) trazem mulheres dançando seminuas numa boate. A câmera enquadra seus corpos de costas, enquanto se dirige à personagem-título, interpretada por Mikey Madison. Ao contrário de suas colegas de trabalho, Anora está sentada no colo de seu cliente e de frente para a câmera, como se encarando o próprio público do cinema.

Escrito e dirigido pelo estadunidense Sean Baker (Projeto Flórida), o longa ganhou um dos principais prêmios no mundo do cinema, a Palma de Ouro, no Festival de Cannes, chamando a atenção para a obra de um cineasta até então considerado independente, que fazia um cinema de nicho.

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Com um gosto por retratar vida de trabalhadoras e trabalhadores do sexo, Baker parece tentar trazer uma nova lógica aos filmes sobre o assunto, imaginando fugir do universo fabuloso e idealizado de produções como Uma linda mulher. Mas seria exagero, porém, aproximá-lo de, por exemplo, Jean-Luc Godard e seu Viver a vida, filme de 1962 que acompanha o martírio de uma prostituta, interpretada por Anna Karina.

Baker, na verdade, contorce a lógica do tema para chegar ao mesmo lugar dos vários clichês do gênero, a começar pelo male gaze. Mais do que apenas filmar, a câmera alicia os corpos e, claramente, os transforma em produtos numa vitrine, o que não é nenhuma novidade do ponto de vista do capitalismo: somos todos mercadorias vendendo nossa força de trabalho, seja ela qual for. Mas o male gaze do diretor sobre Anora incomoda como escolha narrativa. Outros olhares sobre o corpo da personagem poderiam ter sido construídos de forma mais complexa, caso, por exemplo, a direção fosse de uma mulher. 

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Tão problemático, ainda, em Anora é maneira como perpetua a ideia de que a protagonista precisa ser escolhida em casamento e salva da prostituição. Dentro do pensamento feminista contemporâneo, a exemplo das autoras brasileiras Valeska Zanello e Adriana Ventura, a sociedade patriarcal gera dispositivos para impor às mulheres a necessidade de serem escolhidas, salvas e protegidas por meio dos relacionamentos amorosos, nos quais os homens têm o poder da escolha, e, às mulheres, resta-lhes a necessidade de atender as demandas e disputas sociais para serem escolhidas.

A vantagem é um reconhecimento identitário: ao ser escolhida, a mulher passa a ter valor, a existir, e a cumprir sua verdadeira função social. Anora, como dançarina e garota de programa, usa de seus talentos para conseguir não sua manutenção como trabalhadora sexual, mas os benefícios de um casamento com um homem. Conduzida pelo recorte da lente de Baker, a personagem é meramente uma serviçal do desejo masculino, sem conhecermos nela suas motivações mais profundas ou sua história pregressa.

A protagonista acaba caindo nas graças de Ivan (Mark Eydelshteyn), um jovem russo de passagem pelos EUA que, ao contratar seus serviços, a transforma numa mercadoria fetichizada que ele precisa possuir. E a jovem sabe como negociar seu corpo. Ivan oferece U$10 mil para contratá-la por um final de semana. Ela pede US$15 mil, ele cede e comemora. “Sabe de uma coisa, eu teria topado por U$10 mil”, confessa a garota rindo.

Esse comércio de corpos não é também de sentimentos. Ao menos, não parece, afinal, raramente (ou talvez nunca) temos acesso à vida interior da personagem a quem o sexo é ferramenta de trabalho, e não prazer pessoal. Se, por um lado, em seus diversos filmes, Baker é um diretor assumidamente bastante interessado na temática da prostituição (como é o caso de Tangerine, de 2015), por outro, o que suas obras trazem à tona é uma inesperada visão de mundo conservadora.

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Anora e Ivan se casam em Las Vegas, para a alegria de ambos — mas, claro, por motivos diferentes. Ao retratar de forma um tanto ingênua essa dinâmica como uma história de amor, Baker perde a oportunidade de abordar demandas reais de trabalhadoras do sexo, em que prostitutas querem seu trabalho descriminalizado, regularizado, e com direitos humanos e trabalhistas garantidos. Ao invés disso, o diretor nos mostra Anora completamente desesperada e apostando todas as cartas de sua juventude e sexualidade para conquistar a sua salvação na figura do casamento e na escolha de um homem, não importando quem ele seja.

Anora é de descendência russa, possivelmente a segunda geração de imigrantes soviéticos nos EUA, e suas transações físicas e afetivas visam atingir o sonho americano. Mas como alcançar esse objetivo num mundo marcado pelo neoliberalismo, em que, dentre outras coisas, a meritocracia é uma falácia? O filme é, além disso, todo marcado pela representação caricata de estrangeiros — especialmente do leste europeu, como Ivan, sua família e seus capangas.

Ao transformar Anora numa ideia cuja salvação deve ser perseguida pelo filme, Baker a destitui de agência e de sua face mais humana, pela qual poderíamos sentir qualquer identificação ou empatia. Ao mesmo tempo, estigmatiza as trabalhadoras do sexo cujo objetivo único na vida seria deixar o trabalho e ser salva, de preferência por um homem branco e rico. Não que a figura da protagonista não exista — pelo contrário, e a interpretação de Madison tenta lhe dar alguma dignidade o tempo todo, mas a mão pesada do diretor, com suas teses e certezas equivocadas, impede que exista espaço para a emancipação da personagem, que transita de um homem para outro. Mais do que salvar Anora da prostitução, é preciso salvar Anora de seu criador.


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Alysson Oliveira é jornalista e crítico de cinema no site Cineweb, membro da ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, e escreve sobre livros na revista Carta Capital. Tem Mestrado e Doutorado em Letras, pela FFLCH-USP, nos quais estudou Cormac McCarthy e Ursula K. LeGuin, respectivamente. Realiza pesquisa de pós-doutorado, na mesma instituição, sobre a relação entre a literatura contemporânea dos EUA e o neoliberalismo, em autores como Don DeLillo, Rachel Kushner e Ben Lerner. 

Patricia de Aquino é mestre e doutora em Literatura de Língua Inglesa pela Universidade de São Paulo – FFLCH/USP, professora universitária, fotógrafa, e membro do Grupo de Pesquisa e Prática Fotográfica Coletivo 50 Graus, da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e do coletivo Motim Cultural – Tocantins.

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