“Conclave”: um profundo drama político

Foto: Divulgação

Por Cauana Mestre

Conclave é nova produção do diretor Edward Berger, vencedor do Oscar com Nada de novo no front (2022). O filme é baseado no livro homônimo de Robert Harris e trabalha meticulosamente o ritual da igreja católica que escolhe um novo pontífice. É estrelado por Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow e Isabella Rossellini e constrói um suspense inteligente e imperdível.

Todos nós sabemos que a Igreja pertence ao campo político tanto quanto o Estado, mas o quanto essa política de bastidores decide quase tudo que orienta a vida coletiva é uma verdade que frequentemente nos escapa, e é ela que o diretor coloca em cena de forma detalhada. Os grupinhos de corredor, as tramas e conspirações, os abusos de poder e escândalos sexuais, as vaidades e ódios veladas pelo semblante santificado.

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Ralph Fiennes interpreta Thomas Lawrence, cardeal inglês responsável pela organização do conclave, que enfrenta dificuldades em sua relação com a fé. Antes de começar o ritual, ele faz um inspirado discurso sobre as incertezas do processo, uma cena primorosa que me lembrou muito de uma frase do filme Agnus Dei (2016), de Anne Fontaine, em que a madre superiora, diante dos horrores do nazismo, diz que ter fé é como ter vinte e três horas de dúvida e uma hora de certeza. Fiennes, que é um ator expressivo das nuances, vive seu papel de forma magistral. O rosto perturbado de hesitação, a alma inquieta pelas interrogações que não cessam nas orações noturnas, uma desesperança consistente que encena as trincheiras humanas da fé. A crença é um ato humano diante da dissolução das certezas, quando as sombras lançam seu vulto. Portanto, onde não há dúvida, não há fé, há apenas delírio.

O cardeal Vincent Benitez — interpretado por Carlos Diehz — é outro personagem extraordinário; sua participação no conclave surpreende a todos, pois ninguém sabia de sua recente nomeação como arcebispo de Cabul. Benitez é silencioso, observador, atento às necessidades daqueles com quem divide o mundo, preocupado sobretudo com o trabalho, com a causa que sustenta ativamente. Suas palavras apaziguadoras destoam da violência educada que circula entre os grupos e não pude deixar de associá-lo discretamente à figura do Papa Francisco que, aliás, assim como o ator, também é latino.

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O filme de Berger é esteticamente impecável. O diretor de fotografia Stéphane Fontaine consegue enquadrar a tensão dramática que permeia todas as cenas. Mas, para além de um filme de suspense que trata dos pormenores problemáticos da igreja, é um filme político. Estão lá todos os personagens aos quais nos acostumamos: o liberal, o conservador extremista, o reacionário, o progressista, o fascista, o alienado. Estão lá todos os processos que acreditamos garantir o exercício democrático, mas que sabemos serem tão frágeis quanto um cálice de vidro. Não por acaso Freud escreveu que governar é um exercício impossível, uma vez que é o impossível que se impõe, a cada vez, quando o elemento “humanidade” entra em cena.

Conclave torna-se, assim, um profundo drama político (e, portanto, humano até o último segundo) que constata que não há santos, há apenas homens; e que nem sempre importa o quanto a gente possa gritar, pois é provável que, apesar disso, o futuro coletivo continue sendo decidido por meia dúzia de poderosos sussurros.


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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

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