A morte de Soledad Barrett: um dos mais perversos crimes da ditadura brasileira

Passados mais de 50 anos de seu bárbaro assassinato pela Ditadura Militar, Urariano Mota clama por justiça a Soledad Barrett — cujos restos mortais seguem desaparecidos até hoje

Por Urariano Mota

No STF, o digno Ministro Flávio Dino já esclareceu: não existe anistia para o crime de ocultação de cadáver, porque é um crime permanente que continua a se consumar no presente, quando não devidamente elucidado. Este é o caso do corpo da paraguaia, guerreira internacional, internacionalista Soledad Barrett Viedma, assassinada no Recife. Até hoje não se sabe dos seus restos mortais. Ela teria sido enterrada no Cemitério da Várzea como indigente, sem nome, e não se achou mais.

Mas essa história não chegou a seu fim. Para Soledad Barrett, os dados continuam a rolar, como cantava Cazuza. A brava guerrilheira, poliglota, poeta, atraiçoada pelo marido, o agente duplo José Anselmo dos Santos, Cabo Anselmo, que a entregou grávida para a morte, ainda clama justiça. Musa do poeta Mario Benedetti, narrada em meu livro Soledad no Recife, merece urgente uma solução do crime que deixou seus restos mortais insepultos.  

Se, além de Fleury e de Cabo Anselmo, não temos os nomes de seus torturadores, cabe uma responsabilização dos peritos legistas que no Recife assinaram a FARSA da perícia tanatoscópica. Pesquisei com calma e paciência nos arquivos da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara e pude ver. Os peritos João Bosco Rolim Araruna e Agrício Salgado Calheiros, mais a testemunha policial Maria da Penha Procópio de Almeida, que assinam o documento, merecem ser, no mínimo, ouvidos em inquérito.

Como vaso ruim não quebra, é possível que depois de 1973, passados 52 anos dos crimes, estejam vivos. Se vivos, estarão por volta dos seus 82 anos de idade bem vividos na impunidade. Não foram os executores, mas legitimaram o processo e podem falar sobre o que viram assinaram e assassinaram.

Esta é uma história bárbara, feita por bárbaros, assassinos fascistas do regime implantado em 1964. O feto de Soledad foi arrancado de seu cadáver!

“Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão grande de terror. A boca estava entreaberta, e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou algum tempo deitada, e a trouxeram. O sangue. quando coagulou, ficou preso nas pernas; era uma quantidade muito grande. E o feto estava lá, nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo, no necrotério, que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”

Quando a grande advogada Mércia Albuquerque declarou essas palavras, ela não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco, falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “A boca de Soledad estava entreaberta”. No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa que fraterniza e confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”. 

O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmera de sofrimento. “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”. Os olhos de Soledad congelaram o seu último instante. Câmera invertida.

Ao fim do meu livro, pude escrever:

“As santas virgens do Paraguai carregam o filho nos braços e a seus pés têm anjos, às vezes também luas em quartos minguantes. Sangue e feto aos pés, só a guerreira Soledad Barrett Viedma.”

Agora neste artigo acrescento: Soledad, o teu corpo sem sepultura clama por justiça e punição. 

Urariano Mota ao lado do busto de Soledad Barrett no Recife, inaugurado em 13/02/2025. 


Soledad no Recife, de Urariano Mota
Um retrato ficcional extraordinário dos eventos reais que cercaram o brutal assassinato de Soledad Barrett no Recife, durante a ditadura militar. Uma jornada intensa e reflexiva, revelando a traição, o ativismo e a busca pela verdade nesse contexto histórico sombrio.

Delatada pelo próprio companheiro Daniel, conhecido depois como Cabo Anselmo, Soledad morre com um grupo de candidatos a guerrilheiros, na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O episódio ficou conhecido como “O massacre da chácara São Bento” e revelou-se mais um extermínio do que um confronto armado.

A trama real inspira o romance em que Urariano Mota – com a propriedade de que viveu e sobreviveu aos anos pós 1964 – resgata os vestígios da traição arquitetada contra Soledad e contra o país naqueles tempos, com o olhar reflexivo de quem volta ao passado. A vida e morte de Soledad é um forte contraponto a “história oficial” propagada pela mídia na época e um testemunho da violência do Estado.

Nas palavras de Flávio Aguiar, que assina a apresentação da obra, Soledad no Recife é a recuperação de uma história, “como preito àquelas vidas que se doaram e foram ceifadas pela traição inesgotável que foram o golpe e à ditadura de 1964 ao seu próprio país – traição espelhada na de Anselmo ao amor que, sabe-se lá por que, despertou em Soledad”.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.

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