Estado, ideologia e revolução
Foto: Marcelo Camargo (Agência Brasil).
Por Marilena Chauí
O Estado […] é a forma pela qual os interesses da parte mais forte e poderosa da sociedade (a classe dos proprietários) ganham a aparência de interesses de toda a sociedade.
O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares da classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de exploração que existem na esfera econômica.
O Estado é uma comunidade ilusória. Isso não quer dizer que seja falso, mas, sim, que ele aparece como comunidade porque é assim percebido pelos sujeitos sociais. Estes precisam dessa figura unificada e unificadora para conseguirem tolerar a existência das divisões sociais, escondendo que tais divisões permanecem através do Estado. O Estado é a expressão política da sociedade civil enquanto dividida em classes. Não é, como imaginava Hegel, a superação das contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre as outras.
Como, porém, o Estado não poderia realizar a função apaziguadora e reguladora da sociedade (em benefício de uma classe) se aparecesse como realização de interesses particulares, ele precisa, então, aparecer como uma forma muito especial de dominação: uma dominação impessoal e anônima, a dominação exercida através de um mecanismo impessoal que são as leis ou o direito civil. Graças às leis, o Estado aparece como um poder que não pertence a ninguém. Por isso, diz Marx, em lugar de o Estado aparecer como poder social unificado, aparece como um poder desligado dos seres humanos. Por isso, também, em lugar de ser dirigido pelas pessoas, aparece como um poder cuja origem e finalidade permanecem secretos e que dirige as pessoas. Enfim, como o Estado ganhou autonomia, ele parece ter sua própria história, fases e estágios próprios, sem nenhuma dependência da história social efetiva.
Está aberto o caminho para a ideologia política, que explicará a sociedade pelas formas dos regimes políticos (aristocracia, monarquia, democracia, tirania, anarquia) e que explicará a história pelas transformações do Estado (passagem de um regime político para outro).
A divisão social, que separa proprietários e destituídos, exploradores e explorados, que separa intelectuais e trabalhadores, sociedade civil e Estado, interesse privado e interesse geral, é uma situação que não será superada por meio de teorias nem por uma transformação da consciência, visto que tais separações não foram produzidas pela teoria nem pela consciência, mas pelas relações sociais de produção e suas representações pensadas.
Assim, a transformação histórica capaz de ultrapassar essas divisões e as contradições que as sustentam depende de pressupostos (condições ou precondições) práticos, não teóricos. Esses pressupostos ou precondições práticos são:
1) Surgimento da massa da humanidade como massa inteiramente destituída de propriedade e em contradição com um mundo da cultura e da riqueza produzido por essa massa, que se encontra excluída da abundância por ela produzida; é fundamental, diz Marx, que haja total desenvolvimento das forças produtivas (capitalistas), isto é, que tenha sido produzido um mundo cultural e material abundante, pois, sem isso, a massa revolucionária teria de recomeçar o processo histórico partindo da carência e da escassez, da luta pela sobrevivência material imediata, e seria obrigada a repor as divisões e contradições que pretendia superar.
2) Que a divisão entre os proprietários privados das condições de produção e a massa destituída seja um fenômeno universal, de modo que, quando a massa destituída de um país iniciar sua revolução, seja acompanhada pela revolução de todas as massas do planeta; em outras palavras, é preciso que o modo de produção capitalista tenha se tornado um processo histórico mundial ou universal para que uma revolução plena possa efetuar-se. O capitalismo como mercado mundial é, portanto, o pressuposto prático do comunismo como sociedade na qual os indivíduos exercerão o controle consciente dos poderes que parecem dominá-los de fora (natureza, mercado, Estado).
A massa dos explorados enfim compreenderá que esses poderes foram produzidos pela práxis social e que, por serem produtos da atividade histórica dos seres humanos em condições determinadas, também podem ser destruídos pela prática social dos seres humanos em condições determinadas. Até agora os humanos fizeram a história, mas sem saber que a faziam, pois, ao fazê-la em condições determinadas que não foram escolhidas por eles, tomavam tais condições como poderes exteriores e dominadores que os compeliam a agir. Com a revolução comunista, os indivíduos saberão que fazem a história, mesmo que não tenham escolhido as condições em que a fazem.
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A ideologia nos permite tomar o falso por verdadeiro e o injusto por justo. Mas de que maneira essa miragem se manifesta? Pela política, pela cultura, pela educação, pela tecnologia? Quais são seus mecanismos e quais os impactos sociais e econômicos desse processo? De forma introdutória, mas sem perder a contundência de suas reflexões, a filósofa Marilena Chaui esclarece que a ideologia não é apenas um conjunto encadeado de ideias, como sugere o senso comum. Trata-se, na verdade, de um sistema histórico, social e político que não apenas estrutura a percepção da realidade, mas também a oculta, com o propósito de perpetuar a desigualdade social e a dominação política.
Ao longo dos capítulos, a autora investiga as transformações da ideologia no curso da história, oferecendo uma definição concisa e crítica, em sintonia com a tradição marxista ocidental. “Seu poder está em silenciar ou ocultar as contradições do modo de produção capitalista, a exploração econômica, o controle social e a dominação política do capital sobre o trabalho, ou da classe dominante sobre a classe trabalhadora”, escreve ela.

Nesta edição, a autora revisita e expande sua obra já clássica: o capítulo sobre a ideologia da competência foi atualizado, e um novo texto sobre a ideologia neoliberal foi incorporado, trazendo uma reflexão crucial sobre o avanço tecnológico. “Agora, entende-se por virtual algo real e existente que aguarda atualização; é o que pode ser infinitamente atualizado. O virtual não pode ser determinado por coordenadas espaciais e temporais, pois existe sem estar presente em um espaço ou tempo específicos – ou seja, sua própria forma de existência é a atopia e a acronia. Do ponto de vista subjetivo, a manipulação incessante do virtual pelos usuários de dispositivos digitais – acionados pelo toque dos dedos e pelo movimento constante dos olhos – gera a sensação de que existir é ser visto, dando origem a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é essencialmente depressiva.”
“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção econômica.”
— Marilena Chauí

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Marilena Chaui é professora sênior do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde começou a lecionar em 1967. Nascida em 4 de setembro de 1941, é especialista em história da filosofia contemporânea e publicou importantes obras sobre as filosofias de Espinosa e de Merleau-Ponty. É doutora honoris causa pela Universidade de Paris 8 (2003) e pela Universidade de Córdoba (2004). Com vasta produção, é uma das principais e mais importantes filósofas do país. Pela Boitempo, publicou Ideologia: uma introdução (2025). Foi entrevistada pela edição de número 13 da revista Margem Esquerda.
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