Pensamento ao cubo: rememoração crítica do passado e um futuro alternativo possível
Em "Lugar periférico, ideias modernas", Fabio Mascaro Querido demonstra como, a despeito do triunfo presidencial de um príncipe da sociologia, a vitória teórico-interpretativa esteve com os derrotados, "aqueles que não abriram mão da autonomia da crítica nem desprezaram os problemas constitutivos daquela 'nova intuição do Brasil'”.

Escadaria do Centro Universitário Maria Antônia, onde funcionou a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Imagem: Wikimedia Commons.
Por Pedro de Castro Picelli
“Para o instinto do purismo científico, qualquer impulso expressivo presente na exposição ameaça uma objetividade que supostamente afloraria após a eliminação do sujeito, colocando também em risco a própria integridade do objeto, que seria tanto mais sólida quanto menos contasse com o apoio da forma, ainda que esta tenha como norma justamente apresentar o objeto de modo puro e sem adendos.”
— Theodor Adorno, “O ensaio como forma”.
“Sem a rememoração crítica do passado, afinal, não há futuro alternativo possível. E ele é hoje ainda mais necessário.”
— Fábio Mascaro Querido, Lugar Periférico, Ideias Modernas.
Pode-se perguntar, afinal de contas, por que um ensaio sobre a formação no momento em que o reencontro do capital consigo mesmo parece ter se concretizado e as coisas no capitalismo retornado à normalidade?1 Isto é, por que tal aposta para o acerto de contas com uma tradição intelectual da formação na periferia do capitalismo quando delas — tanto dessa tradição quanto da formação e do ensaio — não se tem esperado mais nada?
Não se espera nada, melhor dizendo, além de seus traços evidentes de esgotamento, os quais têm servido, invariavelmente, de espantalho teórico para comprovar a suposta falácia universal das promessas da modernidade que teriam sido capazes de enganar a todos nós durante séculos. É o que todos nós, uns à direita e outros à esquerda, dizem. Aqui estamos nessa encalacrada social, histórica, política e intelectual.
A aposta nessa tensão histórica conduz formalmente a realização do pensamento em Lugar Periférico, Ideias Modernas: aos intelectuais paulistas, as batatas, ensaio oriundo da tese de livre-docência de Fabio Mascaro Querido defendida no Departamento de Sociologia da UNICAMP, e publicado pela Boitempo em 2024.
A escolha pela forma ensaio — caminho para autonomia, como nos disse Lukács em A alma e as formas2 — para refletir sobre o que foi pensado quando dos tempos de naturalização da “censura rigidamente classificatória”3 da consciência pavimenta o desvio das armadilhas do mundo administrado. Providência urgente do esforço interpretativo do autor ao revistar a produção teórica do “Seminário d’O Capital”, permitindo-o contrariar o diagnóstico adorniano de que a “reflexão sobre as coisas do espírito” tornou-se “privilégio dos desprovidos de espírito”.4
Mais do que fazer a descrição do objeto de análise do livro, pretendo enfatizar esse elemento da contradição como motor formal da obra, uma vez que ela destaca a vitalidade do pensamento do autor em confronto criativo com a tradição desacreditada — acertadamente, em certos aspectos — do tal Seminário. Ideias distanciadas por algumas décadas, mas que parecem afastar Querido dos autores dessa tradição, como Cardoso, Giannotti, Schwarz, Ianni, Franco, Weffort, Chauí, Oliveira, Arantes etc., por um lapso milenar de tempo. Como se não fossem parte do mesmo momento histórico — vertigem que o livro trata de desfazer a cada página.
Penso, nesse sentido, que há consequências teóricas e políticas de se apresentar uma tese de livre-docência na forma ensaística quando do “impasse global” (a expressão é do próprio Fabio Querido) em que estamos metidos. Para formular melhor minha percepção, recorro às palavras de outros autores: o recurso à forma ensaística — em grande parte alérgico ao “espírito científico acadêmico”5 — enfrenta um “mundo que ganha caráter cada vez mais fantasmagórico” (em que as formas se “tornam cada vez mais ocultas enquanto a parte visível só faz crescer”, diria Gabriel Cohn).
Devo dizer que não há nada de “original” na minha leitura, do ponto de vista da simples constatação de que, de fato, se trata de um ensaio. Na quarta capa da obra, Michael Löwy fizera a sugestão bastante precisa, apesar de despercebida, de que se trataria dessa forma de organização e exposição das ideias. Porém, tal reparo aparentemente despretensioso de Löwy merece ser desdobrado. Trata-se de pensar, no compasso do “balanço global” proposto por Querido, seus efeitos possíveis em face dos dilemas do exercício autônomo do pensamento crítico frente ao regresso do capital à sua normalidade.
Afinal de contas, não é despropositado que o próprio autor nos diga que “sem a rememoração crítica do passado”, “não há futuro alternativo possível”.6 E, a partir desse pressuposto, o ensaio crítico de Querido eleva ao cubo o espólio fundador do marxismo acadêmico no Brasil na urgência de formular em concreto o futuro. Fresta que ainda lhe parece estar disponível através do passo adiante dado junto à radicalidade negativa da crítica na periferia do capitalismo.
Os impasses aparentemente insolúveis e as promessas não cumpridas da modernidade fazem retornar, de um ângulo específico, ao problema formativo na periferia. Isso leva a tradição intelectual da Maria Antônia — endereço da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP —, reunida em torno do Seminário de 1958, a ser lançada à prova de seus próprios termos quando ambos se decompuseram historicamente. O que se pode observar na retomada de “quadros interpretativos” da modernidade bastante diversos, porém apoiados na obra de Marx, para repensar a relação descompassada entre o capitalismo, a democracia e as classes dominantes na periferia.
Argumentar pelo “declínio”, apontar para o esfacelamento de uma linhagem intelectual que foi se bifurcando progressivamente desde os anos 1950, consiste em um desafio de duas dimensões inescapáveis. A primeira está na acuidade necessária para se assegurar tal diagnóstico do ponto de vista teórico — demonstrado no domínio interno de Fábio Querido sobre as nuances de obras distintas entre si, mas enquadradas em uma mesma questão de análise. A segunda está em calibrar a percepção teórica do crítico (distante algumas décadas de seu objeto), e os inevitáveis pontos cegos daqueles intelectuais imersos em seus próprios impasses.
No que se refere ao aspecto “metodológico”, portanto, também não é coincidência que Roberto Schwarz seja o “fio vermelho” da tradição mais influente no texto de Querido. Em conteúdo, sobretudo no que se refere à periferia como ponto de vista privilegiado sobre o “conjunto do sistema capitalista”, mas também em forma, como não poderia deixar de ser para o método dialético de um dos maiores críticos culturais marxistas do século XX.
O “método” de um crítico literário que nunca deixou de ser sociólogo municia Querido para encarar Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Francisco Weffort, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Marilena Chauí e o próprio Schwarz nos termos propostos pela tradição oriunda da Maria Antônia. Aí reside, justamente, o desafio analítico: dialogar criticamente com suas ideias, sem deixar de situá-las na história para que seja possível depurá-las no tempo presente a ser desobstruído.
A desconfiança do autor de Lugar Periférico, Ideias Modernas com as formas burocráticas de explicação sociológica — repletas de armadilhas reducionistas daquele contextualismo que flerta com o presentismo do reificado — se converte em preocupação analítica e expositiva. O que é explicitado duas vezes no texto, atingindo formulação bastante precisa no trabalho com a “genealogia intelectual paulista”.
Diz o autor, a certa altura do primeiro capítulo, que o trabalho intelectual em si ou as possibilidades de inserção no campo intelectual à la Bourdieu não podem ser reduzidas à:
“condição de meros resultados determinados dessa sociogênese. Por isso mesmo, mais que restringir aos condicionantes sociais externos, trata-se aqui […] de se investigar o modo como as múltiplas camadas contextuais são modeladas no texto, quer dizer, no produto da atividade intelectual.”7
Assim, se eu estiver certo, a forma ensaio mantém viva, nas entrelinhas do texto, o próprio exame de Querido sobre o atual estado de coisas a partir do balanço crítico feito a respeito da gênese intelectual do Seminário.
É curioso que o próprio autor defina seu esforço como um balanço “global”, e não crítico, quando a razão do esgotamento da formação parece ser a mesma da lógica universal. Revelando, de certa maneira, que a crítica periférica se alçou ao balanço global, e o balanço global, à crítica periférica — e que, portanto, não se tratariam de sinônimos ou de um “universalismo abstrato”.
O ensaio como forma permitiu a acomodação deste processo histórico do pensamento (do qual o autor faz parte) sem sufocá-lo na objetificação interpretativa, posto que ele “não se deixa intimidar pelo depravado pensamento profundo, que contrapõe verdade e história. Se a verdade tem, de fato, um núcleo temporal, então o conteúdo histórico torna-se, em sua plenitude, um momento integral dessa verdade”.8
É o ensaio forjado pela crítica de Querido (através de termos que não são de sua descoberta, mas parte de um segundo momento crítico dessa tradição9) que orienta pela forma um modo intelectual de lidar com o colapso político e teórico das singularidades nacionais. Sobretudo, no que se refere à reflexão sobre o ponto de vista periférico para a explicação do estado de “desorientação geral” — tanto no âmbito do pensamento, quanto dos processos empíricos. É nesse sentido que ele se filia à tradição herética daqueles leitores d’O capital em busca da verdade histórica pela periferia.
A formalização do diagnóstico negativo do tempo presente permite que o autor do ensaio eleve à potência a tradição periférica do pensamento crítico da modernidade. Mesmo quando, para alguns, ela parece apenas cheirar a sepulcro. Porém, Querido o eleva a partir da potência ensaística do final dos anos 1990 — a de Roberto Schwarz, Paulo Arantes e Chico de Oliveira. Só assim, autoriza-se a sustentar a “hipótese geral do trabalho” de que a intelectualidade uspiana leitora d’O capital na Maria Antônia marcou ao mesmo tempo “o auge […] e o declínio do pensamento sobre as singularidades da modernidade brasileira”.10
A análise de processos políticos, sociais, culturais e históricos por meio da tensão dialética entre categorias como “auge” e “declínio”, “vitória” e “derrota” das ideias e de seus portadores movimentam o argumento. Nele, a tradição fundadora do marxismo acadêmico no Brasil faz o acerto de contas consigo mesma num momento de “desorientação geral” do pensamento (acompanhada da concretização do declínio mencionado há pouco).
As contas são feitas pelo balanço de um autor que diagnostica que, a despeito do triunfo presidencial de um príncipe, a vitória esteve com os derrotados. Portanto, vitoriosos foram aqueles que não abriram mão da autonomia da crítica nem desprezaram os problemas constitutivos daquela “nova intuição do Brasil”: Roberto Schwarz, Paulo Arantes e Francisco de Oliveira — nem por isso poupados da crítica de Querido.
Ficaram sem as batatas, mas produziram, como sugere o texto, as interpretações mais fecundas a respeito das contradições do sistema capitalista observadas do ponto de vista prejudicado da periferia. Hoje convertido em ângulo prodigioso.
Fabio Querido retoma os derrotados para o seu “espaço do possível”11, assim como fizera Schwarz com Adorno, Benjamin e Brecht, para pensar a desordem das ideias. Penso que é esse movimento — resultado do lançamento da tradição do Seminário ao desenvolvimento histórico de seus próprios termos — que faz com que Querido também se submeta às mesmas considerações. Mesmo que tal atitude crítica não seja explicitada, como de fato não é.
Em passagem derradeira, ao encaminhar seu “balanço global” por meio da “tomadas de posição da trinca Schwarz/Arantes/Oliveira”, Querido revela a relação que lhe interessa entre a forma ensaio e o esgotamento da crítica dos membros da tradição marxista paulista:
“É à luz da atualidade à qual [Roberto Schwarz, Paulo Arantes e Francisco de Oliveira] se agarram, na tradição do ensaísmo crítico, que suas tomadas de posição ganham inteligibilidade, inclusive em sua dimensão política. Assim, é com base nos ocasos do presente que a formação nacional aparece como objeto de um impasse permanente e inescapável – uma falha de origem, enfim. Bloqueada qualquer ambição hegemônica por parte das elites, e dada a posição do país no concerto global das nações, o Brasil se torna então um lócus por excelência de uma espécie de dialética negativa em ato.”12
A partir do esgotamento e do deslocamento dos problemas da “formação”, Fabio Querido eleva à terceira potência a crítica negativa nacional, fazendo seu ensaio ocupar “um lugar entre os despropósitos”13 a que foram legadas as ideias substantivas do Seminário d’O capital. Não como ingênuo otimismo da razão, mas enquanto diagnóstico preciso do próprio tempo presente a ser superado, ao qual o ensaio pôde formalizar sem admoestar ou reificar ainda mais o espírito — problema constitutivo da formação e que parece não mais poder se realizar.
Afinal de contas, “acabou-se o tempo em que, no vaticínio de Marx, a humanidade só se deparava com problemas que seria capaz de resolver”. Ao pensamento “cabe partir do que é, a fim de mostrar que o que é também comporta o que não parece ser, em cuja ‘objetividade’ se define o que não pode mais ser […]”. Isto é: elevar ao cubo o pensamento, “caso ainda queiramos evitar o pior”.14
À tradição do “ensaísmo crítico”, a redefinição da crítica.
Notas
- A ideia de retorno à normalidade a partir do reencontro do capital consigo mesmo é recuperada de trabalhos e entrevistas mais recentes do filósofo Paulo Arantes. ↩︎
- Lukács, G. A Alma e as Formas, Belo Horizonte: Autêntica, 2017. ↩︎
- Adorno, T. “O ensaio como forma” in Notas de Literatura, São Paulo: Editora 34, 2003, p.23. ↩︎
- Idem, p.19. ↩︎
- Ibid. ↩︎
- Querido, F. Lugar Periférico, Ideias Modernas: aos intelectuais paulistas as batatas, São Paulo: Boitempo, 2024, p. 266. ↩︎
- Idem, p.32. ↩︎
- Adorno, op. cit., p.26. ↩︎
- Diz-nos Querido (op. cit., p.258) na última frase de seu livro, antes de rumar à conclusão: “É importante, em todo caso, que ao menos em um primeiro momento, a crítica da crítica a tome em seus próprios termos, a fim de avaliar também seus resultados, e não apenas seus pressupostos confessos ou inconfessos.” ↩︎
- Idem., p.13. ↩︎
- Idem, p.232. ↩︎
- Idem, p.257. ↩︎
- Adorno, op. cit., p.17. ↩︎
- Querido, op. cit., p.266. ↩︎
NÃO PERCA!

Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (1958-2000), do sociólogo Fabio Mascaro Querido, é uma análise sobre os intelectuais ligados à Universidade de São Paulo dos anos 1960 à década de 1990. Resultado da tese de livre-docência do autor, defendida em dezembro de 2022 na Unicamp, a obra revela como a vertente “marxista acadêmica” exerceu significativa influência nos debates sobre a abertura democrática dos anos 1980 e na vida política brasileira nas décadas seguintes.
O livro examina como alguns personagens representaram simultaneamente o auge e o declínio do pensamento sobre a modernidade no país. Durante os anos 1970, em plena ditadura civil-militar, surgiram análises sofisticadas sobre as particularidades da sociedade brasileira, desafiando o desenvolvimentismo até então hegemônico na esquerda. No entanto, na década seguinte, com raras exceções, como a de Roberto Schwarz, observou-se um distanciamento dessas ideias por parte dos acadêmicos e uma aproximação destes com formulações universalistas, quer seja a visão de mundo neoliberal, que encontrará expressão no PSDB, ou a perspectiva classista, elaborada a partir da experiência do PT. O autor demonstra, assim, como a corrente intelectual da época moldou o pensamento sobre a democracia brasileira após a ditadura, bem como as mudanças e as divisões que ocorreram. Analisa esse importante capítulo da política, capaz de reinterpretar o passado e projetar futuros para o país.
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Pedro de Castro Picelli é doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desenvolve pesquisas nas áreas de pensamento social no Brasil, teoria social e sociologia da literatura, relacionadas sobretudo ao pensamento conservador e à modernidade possível ao Sul do capitalismo.
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