Resgatar a história da política negra revolucionária: 4 pensadores que você precisa conhecer

Em África Vermelha: resgatando a política negra revolucionária, o pesquisador Kevin Ochieng Okoth busca se contrapor a certas tendências teóricas contemporâneas que afirmam “que o marxismo não tem nada a oferecer às pessoas negras ou que é inerentemente eurocêntrico e, portanto, deve ser descartado. Essa afirmação, por óbvio, é teórica e historicamente falsa. No entanto, de certa maneira, pessoas negras no ativismo e na academia a acatam como verdadeira”. A fim de desfazer esse equívoco, o autor recupera personagens históricos das lutas de libertação no continente africano, ressaltando suas formulações teóricas — tanto as feitas a partir da crítica da economia política legada por Marx quando suas contribuições originais ao pensamento marxista.

Sem nostalgia, mas buscando rememorar os dilemas do século XX para imaginar um futuro anticapitalista para o Sul global, nos inspiramos no livro de Okoth para preparar esta lista. Afinal, como defende o autor, “o que está em jogo no debate […] é a própria possibilidade de uma política revolucionária negra”. Confira abaixo as contribuições de quatro importantes pensadores e militantes dos movimentos de libertação africana para o marxismo e as lutas anticoloniais do passado e, por que não, também as atuais.


AMÍLCAR CABRAL

Amilcar Cabral. Foto: WikiCommons.

Nascido na cidade Bafatá (Guiné-Bissau, então uma colônia portuguesa) em 12 de setembro de 1924, Amílcar Lopes da Costa Cabral “desenvolveu sua política por meio de um envolvimento crítico com o marxismo e o movimento da négritude, juntamente com outros estudantes, enquanto estudava em Lisboa no início dos anos 1950″. Nas palavras de Kevin Okoth:

“O marxismo desses ativistas era um marxismo que, para usar uma frase de Cabral, procurava ‘regressar à fonte’, ligando os conhecimentos do método marxiano às condições da luta concreta. Essa abordagem criativa do marxismo era caraterística da tradição política e intelectual da África Vermelha.”

Teve um papel crucial — teórico e prático — no movimento de independência tanto de Guiné-Bissau quanto do arquipélago de Cabo-Verde, onde se estabeleceu ainda criança. De acordo com o autor de África Vermelha, “Cabral tinha imaginado que Guiné-Bissau e Cabo Verde, dois países com histórias, estruturas sociais e composições étnicas muito diferentes”, mas divididos apenas por uma estreita faixa do Oceano Atlântico, “seriam libertados em conjunto”. Nesse intuito, funda em 1959 o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), organização então clandestina que, poucos meses após sua criação, tomaria parte em uma importante greve de trabalhadores portuários.

“Quando a guerra de libertação eclodiu em 1963, Cabral tinha criado uma ‘rede de apoio transnacional, que incluía apoiadores em Gana, Argélia, Marrocos, Tchecoslováquia, Cuba e nos países nórdicos’. Cabral, portanto, foi capaz de fazer um uso pragmático da intensificação da Guerra Fria para obter apoio internacional e promover a causa do PAIGC.”

Sua proximidade ao bloco soviético, contudo, aliada às tensões internas entre guineenses e caboverdianos, alimentou descontentamentos nas fileiras do próprio partido. Em 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinado por militantes do PAIGC. Em um livro autobiográfico, a premiada escritora Maryse Condé “elogia figuras como [o angolano Mário Pinto de] Andrade e Cabral, que conheceu em Conacri na década de 1960: ‘Se me tornei marxista, foi graças ao contato com eles e não por um raciocínio pessoal'”.


AGOSTINHO NETO

Agostinho Neto. Foto: WikiCommons.

Revolucionário e poeta, o angolano António Agostinho Neto, como outras figuras “que viriam a desempenhar papéis cruciais em seus respectivos movimentos de libertação nacional”, era um “mestiço assimilado“, como se designava uma pequena parcela de súditos coloniais portugueses que acessavam direitos de cidadania. Okoth ressalta que “isso não significava que fizessem parte de uma elite colonial; na verdade, suas famílias eram em geral pobres”, embora a eles eram concedidas bolsas de estudo na Metrópole (no caso dele, para estudar Medicina), por meio das quais “Portugal esperava formar uma elite de estudantes africanos que pudesse ocupar cargos na administração colonial”. O tiro, porém, saiu pela culatra:

“Em vez de se integrar a essa elite, […] se reuniam na Casa dos Estudantes do Império (CEI) — um centro fundado em Lisboa por estudantes brancos de origem africana que simpatizavam com o regime de Salazar — para discutir o futuro das colônias africanas de Portugal (ou, mais especificamente, como se livrar dos portugueses). Também se interessaram cada vez mais pelas ideias marxistas e fizeram contato com os comunistas portugueses.”

Membro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, ao qual Chico Buarque se refere na famosa canção “Morena de Angola“), após a independência do país, em 1975, tornou-se o primeiro Presidente de Angola, ficando no cargo até 1979, quando faleceu. Compartilhamos um trecho do seu poema “Aspiração”:

E nas sanzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda

O meu Desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.


ANDRÉE BLOUIN

Andrée Blouin. Foto: WikiCommons.

Militante feminista e anticolonial, Andrée Blouin foi responsável por um “importante trabalho à frente de organizações de mulheres”, além de colaborar com governos de todo o continente africa no no pós-independência, atuação que embora ainda não tenha recebido o devido reconhecimento, “apresenta um fascinante retrato das esperanças, dos fracassos e das contradições da libertação nacional”. Reconstituindo sua trajetória, Okoth destaca:

“Após um encontro político com nacionalistas anticoloniais congoleses em Conacri, Blouin é encarregada de organizar as mulheres congolesas como chefe da seção feminina do Partido da Solidariedade Africana, o principal partido nacionalista do Congo Belga (atual República Democrática do Congo). Ela se dá conta de que as mulheres estavam cada vez mais conscientes da necessidade de se libertar não apenas do colonialismo, mas também de certos costumes — como o sistema de dote, que, afirma Blouin, tratava as mulheres como ‘meros bens móveis’ dos pais e dos maridos — e da missões católicas e protestantes – que desempenharam um papel fundamental na opressão colonial, ensinando ‘ignorância, apatia e submissão’. Blouin também começa a compreender o papel crucial desempenhado pelas mulheres congolesas comuns no projeto de libertação nacional.”

Sua autobiografia, intitulada My Country, Africa, ela “descreve sua carreira política desde sua cidade natal, Bangui (na atual República Centro-Africana), passando por Guiné, Madagascar e, por fim, a República Democrática do Congo, onde se torna uma figura-chave no gabinete de Patrice Lumumba”, fundador do Movimento Nacional Congolês e então primeiro-ministro do país que se tornara independente em 1960. Após a eleição, Lumumba ocuparia o cargo por apenas 12 semanas, antes de ser deposto por um golpe e assassinado ao tentar deixar o país.

Em um contexto ainda bastante patriarcal, além de submetido a pressões externas, “Blouin muitas vezes foi impossibilitada de influenciar como desejava a política pós-independência dos países a cuja libertação dedicou sua vida”. Comentando sua autobiografia, Okoth sublinha:

“Mas o que é interessante no relato de Blouin sobre a crise do Congo é a dureza com que julga Lumumba, a quem descreve frequentemente como cordial, tímido e, às vezes, ingênuo. O retrato que Blouin faz de Lumumba mostra-o sob uma nova luz. Ela descreve vividamente o momento em que Lumumba se entrega depois que sua esposa é presa — um momento dramático não só para sua família, mas também para os radicais negros de todo o mundo. Para Blouin, a incapacidade de Lumumba de colocar as necessidades da nação acima de sua família, como ela muitas vezes fez, foi uma traição à libertação nacional. Blouin dá a impressão de que a revolução africana, para usar uma frase de Fanon, teria sido mais radical se as mulheres responsáveis por sua deflagração tivessem encontrado espaço nos governos pós-independência, ou se tivessem estado mais intimamente envolvidas no processo formal de descolonização. No fim do livro, Blouin escreve: ‘Só lamento que não me tenha sido dado o direito, por meu sexo, de ir tão longe quanto podia’.”


KWAME NKRUMAH

Kwame Nkrumah com Che Guevara em 1965. Foto: WikiCommons.

Francis Nwia-Kofi Ngonloma, mais conhecido como Kwame Nkrumah, nasceu em Nkroful, na região oeste de Gana, em 21 de setembro de 1909. Sendo um dos fundadores do Pan-Africanismo, dedicou-se à formulação teórica e lutou contra o imperialismo e pela descolonização da África. Além de um importante internacionalista, contribuiu para pensar a questão colonial e racial como determinante no capitalismo:

“Na situação colonial, uma estrutura social racista não pode ser pensada separadamente da exploração de classe e da estrutura de poder capitalista-racista. Para Nkrumah, a exploração capitalista e o racismo são complementares (‘onde quer que exista um problema racial, ele está ligado à luta de classes’); por isso, avançar genuinamente na luta contra o racismo só é possível se a intelectualidade se envolver com o marxismo e outras organizações comunistas que incentivem o contato estreito com trabalhadores e camponeses. Em suma, os socialistas africanos devem se alinhar às massas oprimidas e se conscientizar da luta de classes na África.”

Após a Independência de Gana, em 1957, tornou-se primeiro-ministro e, em 1960, presidente do país. Governou até 1966, quando foi derrubado por um golpe militar. Exilado na Guiné, Nkrumah jamais retornaria em vida ao seu país de origem. Morreu em 27 de abril de 1972 e foi enterrado na vila onde nasceu. Segundo Kevin Ochieng Okoth, “o assassinato de Patrice Lumumba, em 1961, orquestrado pela CIA e pelo governo belga, assim como o golpe patrocinado pela CIA que derrubou o governo de Nkrumah, abalaram duramente o internacionalismo negro” propagado pelo movimento pan-africanista.


Qual o caminho para a emancipação dos povos – não brancos – do Sul global? Em África Vermelha: resgatando a política negra revolucionária, o pesquisador Kevin Ochieng Okoth sustenta que as discussões contemporâneas sobre radicalismo negro perderam de vista as principais preocupações dos militantes e intelectuais do século XX. Em uma crítica contundente ao esvaziamento do marxismo e das políticas radicais de transformação no continente, o autor propõe um resgate da tradição intelectual marxista anticolonial como chave para pensar o presente e construir o futuro.

O livro tem tradução de Heci Regina Candiani, orelha de Marcos Queiroz e capa de Mateus Rodrigues.

A partir de uma análise rigorosa das experiências de emancipação do século XX, Okoth questiona os limites das abordagens teóricas predominantes no século XXI — como o afropessimismo e a decolonialidade — que, segundo ele, descartam a crítica da economia política e reduzem o marxismo a uma ciência eurocêntrica e obsoleta.

Ao longo do livro, o autor articula eventos históricos africanos com a trajetória e a formação política e intelectual de figuras centrais do pensamento negro e anticolonial, abrindo caminhos para repensar as lutas do presente sob uma perspectiva marxista. Em vez de ver o marxismo como uma relíquia, Okoth o encara como uma ferramenta ainda vital para imaginar e impulsionar projetos políticos emancipatórios: “Mas por que se agarrar a uma política que supostamente está ‘ultrapassada’, como afirmam alguns? O objetivo, defendo eu, é recordarmos que havia, e ainda há, caminhos alternativos para a emancipação – caminhos que, no entanto, foram esquecidos, mas que continuam tão radicais e transformadores como sempre. Cabe a nós construir um comunismo para o nosso tempo a partir das ruínas da África Vermelha”, escreve.

“Este livro não é um simples exercício de nostalgia ou recordação de uma época em que a mudança revolucionária parecia possível. Pelo contrário, é um projeto político que espera resgatar o que resta da tradição da África Vermelha – que foi traída, violentamente suprimida ou apagada – e construir, a partir daí, uma política revolucionária. É, em resumo, um experimento de marxismo de salvamento: um comunismo das ruínas que resgata o legado da libertação nacional. Ainda temos muito a aprender com a política de Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral, Walter Rodney e Andrée Blouin. Ainda podemos construir algo novo a partir de seu pensamento político, algo que se apegue à promessa utópica de liberdade e se recuse a desistir.”
Kevin Ochieng Okoth

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