“Destinos do feminismo” hoje: as armas da teoria crítica feminista contra os carniceiros do capital

No aniversário de Nancy Fraser, Niege Pavani resgata questões levantadas já nos primeiros textos da autora para interrogar o movimento feminista atual: "É fato que, de que 1989 para cá, Nancy Fraser caminhou por muitas fases e ciclos, todos ditados pela urgência das necessidades históricas e conjunturais (...). Talvez seja exatamente por essa maleabilidade intelectual, capaz de acompanhar o real e o político como se apresentam em nosso tempo, que o pensamento de Fraser seja cada vez mais imprescindível."

Foto: Wikimedia Commons

Por Niege Pavani

As últimas obras de Nancy Fraser têm se ocupado, de modo concentrado, da crítica ao capitalismo e do mapeamento de suas crises. Hoje, mais do que nunca, centralizar o diagnóstico crítico na dimensão multifatorial dos rearranjos do capital tornou-se tarefa determinante para sustentar algum vislumbre de horizonte e destinos de futuro: haverá sociedade pós sintomas largos do fantasma da extinção?

É na sua letra atual que Fraser vasculha as normatizações que orientam a marcha dos “carniceiros do capital”, narrando os dentes que abocanham a democracia liberal, o trabalho de cuidados e o planeta. Entre tantas dimensões dos anúncios de ruínas desse organismo sádico e canibal, a crise política é a mais saborosa ao seu paladar, exatamente por explorar os sentidos e sensorialidades atribuídas ao terreno do político, abrindo amplo terreno para disputas de ressignificação e atualização do seu funcionamento sedento. Para a filósofa, o capitalismo contemporâneo é canibal de si mesmo e abre espaço para o novo, mas também oportunidade para o nefasto.

Mas Fraser não é uma pessimista. Com a lupa da crítica e do feminismo, seu pensamento procura por entre os escombros, e diante de um mundo em chamas, algumas saídas de emergência podem ser reconhecidas já em seus textos inaugurais. Exemplo disso é Destinos do feminismo, cuja tradução foi recentemente publicada pela Boitempo em 2024. A obra é uma coletânea, e parte dos textos reunidos foram escritos ainda na década de 1980, extraídos do seu primeiro livro, Unruly Practices (1989), cujo recorte histórico é o momento em que o Estado de bem-estar social apresentava sinais de cansaço e abria as portas para receber uma nova etapa do neoliberalismo. Aqui é possível encontrar subsídios para uma sólida estratégia de interpretação e enfrentamento à atual forma da crise política e seus efeitos colaterais neste tempo centrado na tecnologia e na aceleração dos modos de comunicação.

Dentro de Destinos do feminismo, o capítulo 2 — “Luta pelas necessidades: esboço de uma teoria crítica socialista-feminista da cultura política do capitalismo tardio” — oferece um belo arsenal de armas. Nele é abordada a importância do discurso político público e as disputas que esse discurso inscreve ao apresentar, na primeira pessoa do plural, interpretações das necessidades mais latentes da classe que o articula; interpretações que assumem a forma de reivindicações postas na mesa, essa superfície plástica das disputas sociais que transladam entre o Estado, mobilizações populares e, em tempos contemporaneíssimos, a própria internet. É aqui que Fraser defende um modelo discursivo que nomeia de “política de interpretação de necessidades”, entendendo tal dispositivo como aquele que fabrica redes de relações de sentido, que por sua vez são edificadas no interior dos movimentos sociais, autorizadas, inclusive, pelas próprias arquitetas do discurso interpretativo anunciado.

Aqui, o que está em jogo é encarar a dinâmica de interpretar o “escrito” e normatizado pelo poder Estatal e seus braços do mercado como algo que pode abrir caminhos para a defesa de outros sentidos, outrora silenciados pelo capital. Pronunciado através de um corpo coletivo feminista, corpos tomados por passivos pelas políticas públicas, reconfigura sentidos através dum movimento de empenho pela reconquista do poder social das mulheres.

Com ares de utopia democrática, ela toma para a sua crítica a tarefa de forçar a vista para detectar as condições de possibilidade de uma arena pública onde o social e o político se entrelaçam, elevando as vozes das coletividades — subjugadas pelas opressões estruturais do sistema capitalista — ao status de posição política autônoma e soberana, apta a anunciar em si e por si suas demandas materiais e agendas políticas. No ambiente sociocultural, onde o econômico é coluna, mas não elemento exclusivo, o exercício de interpretar demandas faz emergir a compreensão de dispositivos de múltiplas determinações e dependência das esferas do capital, como uma grande ágora pública. Mais adiante e atualmente, nos textos sobre capitalismo, Fraser fará uso abundante de uma noção “expandida” de sistema-mundo que definiria o sistema capitalista e seus mecanismos de canibalismo indiscriminados.

Me autorizando a uma apropriação metafórica e livre do dispositivo de interpretação da luta por necessidades, aplicado sobre uma conjuntura fragmentada pelas crises multifatoriais do capitalismo, provoco: não seria esse modelo — o de considerar as vozes que produzem e autorizam discursos numa superfície universalmente acessível do político amplo — um instrumento razoável para analisar os modos de ocorrência do feminismo hoje? Avançando um pouco mais nas autorizações e plasticidades apropriativas: não seria esse modelo uma importante ferramenta para avaliar o peso e a “materialidade virtual” dos discursos políticos e feministas na internet? Seu alcance, impacto, a repercussão em termos da escala das disputas de interpretação de sentido miradas — considerando que esses discursos eventualmente têm mais impacto nas lutas históricas que temos travado do que as interpretações consolidadas e cristalizadas em textos da tradição feminista e marxista? Me restrinjo a fazer essa dupla de provocações, no intuito de evocar inspiração e alimento nutritivo para a imaginação de utopias — que andam escassas entre nós, feministas, marxistas e críticos do capital em geral. (E estamos todas de acordo que essas frestas de criação-interpretação são urgentes.)

É fato que, de que 1989 para cá, Nancy Fraser caminhou por muitas fases e ciclos, todos ditados pela urgência das necessidades históricas e conjunturais: da interpretação das necessidades à crise do Estado de bem-estar social; da vitória do neoliberalismo à mutação da financeirização; em sua teoria da justiça, que operou sínteses dentro de becos sem saída da teoria crítica e combinou as reivindicações de identidade com a defesa da igualdade como valor fundamental da democracia socialista. Talvez seja exatamente por essa maleabilidade intelectual, capaz de acompanhar o real e o político como se apresentam em nosso tempo, que o pensamento de Fraser seja cada vez mais imprescindível. Ainda mais no cenário de uma teoria crítica em disputa para a retomada do utópico, indo além do diagnóstico, e que suas fases ganham adeptos para um empenho interpretativo dialógico, colocando-a em diálogo consigo mesma.

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Niege Pavani é militante feminista e doutoranda em filosofia política contemporânea pela Unicamp, onde pesquisa dinâmicas do movimento feminista e crises capitalistas da atualidade. 


Destinos do feminismo: do capitalismo administrado pelo Estado à crise neoliberal, de Nancy Fraser
Justiça Interrompida é uma reflexão crítica sobre o que a filósofa Nancy Fraser denomina  condição “pós-socialista”. A autora procura compreender os desafios impostos pela derrocada dos socialismos no final dos anos 1980, pelo surgimento das políticas de identidade e pela fragmentação das frentes de luta progressista. Os textos e ensaios reunidos na obra, escritos entre 1990 e 1996, iluminam a polarização política e intelectual contemporânea, o quase abandono das reivindicações por redistribuição igualitária e o aumento de mobilizações sociais por reconhecimento, esvaziadas no termo “políticas identitárias”. Fraser nos oferece um quadro teórico abrangente para analisar as diferentes causas e soluções para as injustiças econômicas e culturais. Evitando posturas economicistas, que rechaçam políticas de reconhecimento como “falsa consciência”, bem como posturas culturalistas, que rechaçam políticas redistributivas como antiquadas, a autora desenvolve um modelo de crítica social que integra as duas dimensões.


Justiça interrompida: reflexões críticas sobre a condição “pós-socialista”, de Nancy Fraser
Justiça Interrompida é uma reflexão crítica sobre o que a filósofa Nancy Fraser denomina  condição “pós-socialista”. A autora procura compreender os desafios impostos pela derrocada dos socialismos no final dos anos 1980, pelo surgimento das políticas de identidade e pela fragmentação das frentes de luta progressista. Os textos e ensaios reunidos na obra, escritos entre 1990 e 1996, iluminam a polarização política e intelectual contemporânea, o quase abandono das reivindicações por redistribuição igualitária e o aumento de mobilizações sociais por reconhecimento, esvaziadas no termo “políticas identitárias”. Fraser nos oferece um quadro teórico abrangente para analisar as diferentes causas e soluções para as injustiças econômicas e culturais. Evitando posturas economicistas, que rechaçam políticas de reconhecimento como “falsa consciência”, bem como posturas culturalistas, que rechaçam políticas redistributivas como antiquadas, a autora desenvolve um modelo de crítica social que integra as duas dimensões.

Margem Esquerda 41 | Entrevista com Nancy Fraser
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