O dólar como poder político
Imagem: Thomas Breher (Pixabay)
Por Rabah Benakouche
Em artigo anterior, mostrou-se que o tarifaço do presidente Donald Trump é um meio para salvar o estatuto internacional do dólar. Com efeito, “salvar o dólar” consistiria em salvar também os superpoderes da “hiperpotência” americana. Isso implica em dizer que o dólar se assenta em bases monetárias e não-monetárias; que, além do seu poder monetário, “outros” poderes de atores e fatores (tais como os do petróleo, FMI, Banco Mundial, BRI, OCDE, OMC, Wall Street etc.) agregam-lhe novos “poderes”.
Sobre o poder do dinheiro, James Carville, estrategista-chefe da campanha eleitoral que elegeu Bill Clinton presidente dos Estados-Unidos, sustenta — com humor — que ele impõe restrições à ação política. Dizia ele: “Antigamente eu achava que, se houvesse reencarnação, eu iria querer voltar como presidente, papa ou craque do beisebol”. Após convivência no ambiente presidencial, acrescenta: “Mas, agora, prefiro voltar como mercado financeiro. Você intimida qualquer um”1. Esses atores participam — e muito — na manutenção do estatuto internacional do dólar; e a fragilidade da economia americana não o afeta em quase nada2. Com efeito, note-se que em 1950 os EUA detinham 62% da produção industrial mundial, contra apenas 18% em 2025. Nesse período, os 80% de divisas mundiais que eram mantidas em dólar passam para 60%, enquanto os fluxos comerciais transnacionais em dólar vão de 70% a 45%. Registra-se, pois, um declínio relativo, mas o dólar continua proeminente.
Daí, se coloca a questão de saber em que consistem os mecanismos que fazem do dólar um ator político. Para sabê-lo, enfoca-se, inicialmente, o contexto monetário que gerou a “cria” e, num segundo momento, esmiuçam-se as bases que sustentam o dólar e seus “poderes”.
Contexto monetário
Antes da Primeira Guerra, até 1914, o ouro teve um papel de referência durante décadas (período conhecido como a era-ouro). O ouro então deixou de ser referência, porque os Estados Nacionais precisaram rodar suas máquinas de impressão de dinheiro para financiar os esforços de guerra. Isso fez com que a quantidade de ouro se tornasse insuficiente perante a quantidade de dinheiro fabricado3. Esse processo atravessa diversas situações. Quais sejam:
A Guerra 1914-1918 ou a primeira expansão monetária: todos os beligerantes, quer dizer, os aliados do Reich e os contrários, financiaram seus esforços de guerra com empréstimos realizados junto aos próprios bancos centrais, o que gerou inflação elevada. Por outro lado, enquanto a Europa se defrontava com essa Guerra, um evento monetário, com consequências globais inéditas em toda a história mundial, acontecia nos EUA: no dia 23 de dezembro de 1913, registrou-se a constituição do Federal Reserve (FED).
A Conferência de 1922 e a Crise de 1929: a primeira teve por objetivo examinar as “reparações de guerra” impostas à Alemanha vencida, e gerou hiperinflação; enquanto a segunda gerou um “crash” de repercussão mundial, com perdas drásticas das moedas. O dólar de hoje representa menos de 1% do seu valor em 1914.
A Guerra 1939-1945 ou a entrada do dólar na cena internacional: é aí que os EUA se tornam a nova liderança mundial na área industrial. O país fornece bens e serviços aos beligerantes, com pagamento em ouro. Acrescente-se a esse montante as 30.000 toneladas de ouro alemãs que foram posteriormente tomadas como butim de guerra. Tudo isso fez com que cerca de 80% do ouro dos demais bancos centrais passasse para as mãos do FED. Emerge, aí, o reinado do dólar, moeda essa que foi considerada “tão boa quanto o ouro”.
O dia 15 de agosto de 1971: diante da quantidade de ouro insuficiente nos cofres do FED para atender a tantas demandas de convertibilidade de dólares em ouro, o Presidente Richard Nixon decidiu, unilateralmente, decretar a inconversibilidade do dólar em ouro. Essa decisão significava que o dólar não era mais convertível em ouro, e que não era mais garantido pelo Estado. Houve um “golpe de Estado monetário”. Uma desconsideração com o “resto do mundo”. Inúmeras razões apontam nessa direção: os EUA decidiram sozinhos mudar as regras do sistema monetário internacional; romperam contrato com “o resto do mundo” unilateralmente ao saírem do campo do Direito para o da força.
O ano de 1973: quando ocorreu um aumento do preço de petróleo, resultando em transferência de recursos fantásticos para os países produtores. Essa transferência, contudo, deixou os EUA com receio de que seus aliados — maiores players internacionais de commodities, em especial do petróleo — pudessem renunciar ao uso do dólar nas transações internacionais. Nesse sentido, foi assinado um acordo com a Arábia Saudita para que todas as suas vendas de petróleo fossem faturadas exclusivamente em dólares. Isso daria lastro real ao dólar para manter seu estatuto internacional. Por outro lado, desde a inconversibilidade do dólar em ouro, está-se vivendo no “não sistema” monetário internacional.
O período 2007-2010: socorro aos bancos para evitar a tal “crise sistêmica” do setor financeiro nos EUA. No caso, houve, literalmente, transferência de valor do setor público ao setor privado. Por outro lado, houve pressões dos EUA sobre a Europa para que elaborasse programas de socorro aos bancos seguindo o “modelito” americano. Entende-se que tudo isso foi feito com a clara evidência de manter o status quo do sistema monetário e financeiro internacional, ou seja, manter a hegemonia internacional do dólar.
É preciso ainda explicitar quais atores e fatores foram mobilizados para a manutenção do dólar. Vejam-se as Bases de apoio ao dólar. Essas bases são diversas e múltiplas. Eis algumas delas:
Criação monetária: Um banco central tem por função ser um serviço público que cumpre o papel de criação monetária, ou seja, atua criando papel-moeda e moeda fiduciária ou eletrônica, moedas essas que são colocadas à disposição do Estado para garantir o bom funcionamento da sua economia. No caso dos EUA, tem-se o FED, que recebeu do governo a incumbência e o poder de criar moeda e vendê-la ao Estado cobrando-lhe juros. Estes representam um “imposto” que a nação paga ao FED para imprimir dinheiro. Esse ente, por sua vez, fixa a taxa de juro, ou seja, o preço da venda do dólar. Quanto maior for a taxa de juros, mais o Estado se endivida e mais o FED e bancos comerciais se enriquecem. Essa operação denomina-se empréstimo (dita também de moeda-crédito). Esse empréstimo exige juros, desembocando no pagamento anual do denominado juro da dívida (dito também serviço da dívida). Este é, na verdade, um tributo pago pelas populações dos EUA e do resto do mundo. Com uma dívida em trilhões, tem-se montantes de juros em bilhões!
Criação dos petrodólares: Na crise do petróleo de 1973, uma massa fenomenal de recursos é transferida aos países da OPEP. Diante disso, o Estado americano ficou receoso de perder o estatuto internacional do dólar, pois não seria viável obrigar todos os países a seguirem as decisões americanas. Foi aí que se escolheu, estrategicamente, o petróleo para que sua comercialização fosse sempre feita em dólar. A escolha não foi feita à toa, até porque o petróleo não é uma commodity qualquer. Tratou-se de uma decisão da maior importância econômica para os EUA, porque o petróleo passou a ser referência real e valiosa para o dólar; referência muito mais importante do que o ouro ou qualquer commodity. Qualquer país que não tenha petróleo (e são mais de 90% dos países do mundo) precisa comprá-lo em dólar. E para ter dólares — já que não pode fabricá-los — vai ser preciso exportar bens e serviços reais, pagos nessa moeda. Por outro lado, os EUA se abastecem de petróleo com papel fabricado à vontade. Tal é a “grandiosa contribuição” econômica, política e estratégica que os países produtores oferecem aos EUA. Essa contribuição ajuda a manter o dólar como moeda hegemônica. Isso beneficia os EUA, porque podem receber o petróleo com a dispensa de produzir bens e serviços para serem trocados pelo petróleo; e os produtores de petróleo transformam seus recursos em compra de títulos do tesouro, pois têm capacidade limitada de gastos. Eis os porquês de o dólar ter recebido um apoio e tanto para sustentar seu estatuto.
Concluindo
Desde o pós-guerra, o dólar é a moeda de reserva universal, isto é, aquela que é a mais acumulada (no sentido contábil e não físico) por bancos centrais do mundo inteiro. Já os EUA a emprestam para o mundo inteiro, sem deter estoque de divisas de outros países. Não precisam ser concorrentes em termos de taxa de juros para atrair capitais internacionais. E, paradoxalmente: quanto mais dólares são detidos pelo país estrangeiro, mais ele deve fornecer bens e serviços reais aos EUA pelo montante de dólares acumulado. Sua dívida externa é cotada em dólar, ou seja, na sua moeda nacional; por isso, os EUA não têm propriamente dívida, mas sim “quase dívida” — ou seja, seu “endividamento” é elástico, para não dizer ad infinitum! Esse “endividamento” cresce no “papel”. Gera mais déficit na balança de pagamento. E há mais e mais déficits porque os EUA importam mais bens e serviços do que exportam. O déficit anual é fenomenal. Por outro lado, montanhas (no sentido contábil) de dólares acumulam-se em bancos centrais do mundo inteiro, e nenhum deles pede a conversão em ouro ou em outras divisas. Sem essa demanda de conversão por parte do estrangeiro, o dólar faz ofício de moeda de reserva. Dentro dessa perspectiva, o Estado americano desfruta da confiança e do crédito das elites do mundo inteiro. Isto acontece, reitere-se, porque suas instituições internacionais referidas trabalham, articuladamente, em prol do dólar.
Em suma, verifica-se que o dólar é mais do que moeda por ser um ator político. Ele agrega, em cima da sua força monetária, as forças do aparato governamental americano e as das forças de nações e firmar aliadas, sejam elas grandes ou pequenas. Em suma, o dólar é ajudado por “n” atores e fatores; que recebem como recompensa a “Paz do Dólar”. Sustenta regimes políticos, garante estabilidade, cria espaço seguro de rentabilidade, mas também pune desobedientes, firmas e nações, entre outros. Eis alguns dos elementos que fazem do dólar um ator político e, enquanto tal, detentor de poder político. E que poder!
A importância econômica do poder do dólar expressa-se, pois, sob formas diversas: venda de títulos do tesouro, empréstimos, posição externa (i.e., a diferença entre os investimentos entrando e saindo…). Esse último ponto é apreciado pelo ex-presidente do FED, Alan Greenspan, nestes termos: “[…] a taxa de retorno de mais de US$ 2 trilhões de investimentos diretos dos EUA no exterior era de 11% em 2005, muito abaixo dos juros pagos aos estrangeiros sobre a dívida americana”4. A taxa paga pelos títulos do tesouro americano variava então entre 5 e 6% anuais, o que permitiu, com efeito, o revigoramento do dólar como moeda internacional hegemônica, com especial destaque para o direito de seigniorage5 e a reciclagem dos petrodólares. Com esse expediente, explica David Harvey, os EUA ficaram com “[…] o privilégio monopolista de reciclar petrodólares na economia mundial, trazendo de volta para casa o mercado do eurodólar. Nova York tornou-se o centro financeiro da economia global, o que, associado à desregulação interna dos mercados financeiros, permitiu que a cidade se recuperasse de sua crise e florescesse até o ponto da incrível opulência e do consumo ostensivo da década de 1990”6.
Eis, em suma, alguns dos mecanismos que serviram para “construir” o dólar como poder político.
Notas:
- Felix Martin. Dinheiro. Bibliografia não autorizada. Portfolio Penguin. 2016, p.141 ↩︎
- Ver: Rabah Benakouche. Moeda é poder. Por que constitui questão de Estado? Appris Editora, 2018. ↩︎
- Michael Hudson. Super Imperialism. The origin and fundamentals of U.S. World. Pluto Press, 2003. ↩︎
- Alan Greenspan. A Era da Turbulência. Rio de Janeiro: Campus, 2007, p. 340. ↩︎
- Ou direito de senhoriagem, que é o lucro obtido da diferença entre o material usado para cunhar moeda e o valor de face da moeda criada. ↩︎
- David Harley. Novo imperialismo. Rio de Janeiro: Loyola, 2004. p. 57-8. ↩︎
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Rabah Benakouche é Docteur d’état em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris e doutor em Engenharia Industrial pela École Centrale de Paris, professor titular (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina e autor do livro Bazar da dívida externa brasileira (Boitempo, 2013).

Bazar da dívida externa brasileira, de Rabah Benakouche
No Brasil, a dívida externa fez parte constitutiva da história do país; estendeu-se por um longo período de quase dois séculos. Atormentou suas relações externas e foi uma das principais fontes internas de instabilidade política. Seu fim, em fevereiro de 2008, foi um fato histórico inédito e, enquanto tal, merecedor de análises detalhadas, como a contemplada nesta obra. Benakouche entende que, por ser essa dívida um grande negócio, a variável econômico-mercantil é apenas uma das suas dimensões.
Enquanto os estudos nessa área costumavam focar, exclusivamente, a questão do equilíbrio do balanço de pagamentos e ignoravam todas as demais dimensões do endividamento, Bazar da dívida externa analisa as outras inúmeras dimensões, visíveis e invisíveis, ditas e não ditas, pessoais ou organizacionais, que entram no jogo, quer seja sob a forma de técnicas financeiras e jurídicas quer seja na divisão ou proteção de mercado, ou ainda na esfera de influência geoestratégica ou política. O livro tenta desvendar os sentidos e os significados das redes de conexão entre juros, spread, prazos, interesses, estratégias, decisões… e decisores.
LEITURAS PARA REFLETIR SOBRE O TEMA


História, estratégia e desenvolvimento, de José Luís Fiori
Quer entender como a geopolítica é chave fundamental para a compreensão do sucesso do desenvolvimento econômico em alguns países e da falência de tantos outros? Confira História, estratégia e desenvolvimento. No livro, o cientista político José Luís Fiori faz uma síntese da geopolítica do desenvolvimento capitalista. A partir de uma profunda análise da história mundial por meio da ótica capitalista, Fiori aborda desde a Europa do século XII até a globalização dos dias atuais, passando pela formação das economias nacionais, as lutas pelo poder e as guerras europeias.
A política externa norte-americana e seus teóricos, de Perry Anderson
Quer saber como os Estados Unidos desenvolveram seu poder imperial desde o final da Guerra Fria? Confira A política externa norte-americana e seus teóricos. O livro do historiador inglês Perry Anderson reconstitui os principais acontecimentos e inflexões da política externa dos EUA desde o fim da Segunda Guerra até os dias atuais, fazendo uma análise crítica desse período e de como foram tecidas as bases ideológicas, políticas, militares e institucionais em que se sustenta o poder imperial do país. A primeira parte se centra na análise das três frentes de expansão dos EUA: as operações naquele que um dia foi o Terceiro Mundo de antigas terras coloniais; a batalha com o que outrora foi o Segundo Mundo dos Estados comunistas; e os objetivos perseguidos por Washington no Primeiro Mundo do próprio capitalismo avançado. A segunda parte do livro se debruça sobre o pensamento dos principais analistas estratégicos do establishment norte-americano, que forma um sistema de discursos sobre o qual relativamente pouco tem sido escrito.


Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império, de Mike Davis
Para entender as transformações ocorridas após a derrubada das torres do World Trade Center em relação à política interna e externa dos Estados Unidos através das análises de um crítico ferrenho do imperialismo norte-americano. Apologia dos bárbaros se propõe a celebrar a contranarrativa dos que não pertencem à autoproclamada “civilização” hegemônica (os quais, portanto, inserem-se automaticamente na categoria amorfa da barbárie).
O império do capital, de Ellen Meiksins Wood
Mas o que afinal pode significar imperialismo na ausência de conquista colonial e dominação imperial direta? Desmanchando consensos, Ellen Meiskins Wood apresenta neste livro uma das mais respeitadas análises do imperialismo norte-americano, para ela, um fenômeno absolutamente inédito na história mundial. O livro investiga o novo imperialismo contra o fundo contrastante das formas mais antigas, desde a Roma antiga, passando pela Europa medieval, o mundo árabe maometano, as conquistas espanholas e o império comercial holandês.
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