“Homem com H” e a radicalidade de quem se atreve a ser seu próprio destino

Imagem: Divulgação

Por Cauana Mestre

Encenar a biografia de alguém é sempre um grande risco, pois qualquer narrativa que não esteja muito advertida de sua insuficiência pode achatar a complexidade de uma vida que só é vivida uma vez e que contém, em si, milhões de camadas.

Com essa ressalva fui assistir ao filme Homem com H, dirigido por Esmir Filho e estrelado por Jesuíta Barbosa. Tendo crescido ao som de Ney Matogrosso, como quase toda a minha geração, tive medo de que estragassem o que, para mim, sempre foi a grande coisa desse artista inigualável: a reticência, o furo, o enigma, o insondável. Temi que explicassem demais Ney Matogrosso, o que seria um crime.

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Saí do cinema arrebatada. O filme conseguiu não renunciar a nenhuma das verdades que realmente importam, processo que o cinema às vezes confunde com ideologia.

Um dos momentos marcantes é o show televisionado de 1973. Era o auge da ditadura e Ney aparece seminu, com o rosto pintado, movimentando o corpo sem nenhum pudor e cantando “Sangue latino”, um dos grandes sucessos de Secos e molhados. A tristeza que o filme me causou foi perceber que essa imagem ainda hoje seria revolucionária, e que os artistas, como Ney — que usam o corpo e a voz para libertar nossa alma cativa — continuam brigando pela arte diariamente sob o risco de vê-la partir junto com a frágil democracia.

A maior verdade de Ney Matogrosso é portada por ele, no corpo e na voz, e é essa a grande coisa que eu sempre vi, mas nunca soube nomear. A radicalidade de quem se atreve a ser sua própria bandeira, sua própria luta, seu próprio destino. Somos tão obcecados pelos nossos sentidos e ideais, tão decididos a mastigar nossos pensamentos obsessivamente, que nada surpreende mais do que o artista que transporta toda sua matéria humana para o corpo e aprende a dele se servir. Ney Matogrosso é, para mim, o maior representante dessa arte viva.

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E, na outra ponta, um acontecimento que se chama Jesuíta Barbosa, magnético em cena. A metalinguagem do trabalho é esquecida e em vários momentos os dois artistas se confundem com tanta precisão que a ficção se torna a única realidade, aquilo que Scorsese sabiamente chamou de “absolute cinema“. A atriz Zendaya, ao falar sobre Rue — personagem da série Euphoria e um de seus papéis mais desafiadores —, disse que a personagem vivia dentro dela de uma maneira estranha e que não era preciso procurá-la. Foi uma frase sobre a arte da interpretação que eu nunca mais esqueci, e da qual me lembrei muitas vezes ao ver Ney Matogrosso viver em Jesuíta Barbosa.

Homem com H é um acerto em vários sentidos, e seus erros, sejam quais forem, não têm força nenhuma. Afinal, os ventos do norte certamente não movem moinhos, mas Ney Matogrosso, sim. 



Por um comunismo transexual, de Mario Mieli
Considerado um dos precursores da teoria queer, explora a relação entre homossexualidade, homofobia e marxismo. Tradução direta do italiano e com apêndice crítico, é um texto essencial para compreender a luta pela libertação sexual e a necessidade de desconstruir a “Norma” heterossexual.


Quem tem medo do gênero?, de Judith Butler
Neste seu primeiro livro não acadêmico, Judith Butler analisa como o “gênero” se tornou central em discursos conservadores e reacionários, um fantasma com o objetivo de criar pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes.

Intervenção essencial em uma das questões mais inflamadas da atualidade, Quem tem medo do gênero? é uma convocatória arrojada a construir uma coalizão ampla contra as novas formas do fascismo. “É  crucial que a política de gênero se oponha ao neoliberalismo e a outras formas de devastação capitalista e não se torne seu instrumento”, insiste Butler.

“Só mesmo o intelecto e confiança moral deslumbrantes de Judith Butler para nos orientar no labirinto de projeções, confissões, deslocamentos e cooptações que constituem as atuais guerras travadas em torno do gênero. É o sonho de um poder masculinista autoritário ultrapassado que une as diversas frentes dessa batalha – e somente a solidariedade entre todas as pessoas que se encontram na mira do fascismo pode nos salvar. Este livro é uma intervenção profundamente urgente.”
— Naomi Klein

“A filosofia de Judith Butler desafia as normas estabelecidas, promovendo diálogos cruciais sobre identidade e igualdade. É leitura fundamental para nos ajudar a construir uma sociedade verdadeiramente emancipatória.”
— Erika Hilton


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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

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