Luiz Carlos Prestes e o caminho brasileiro ao socialismo

Luiz Carlos Prestes em 1935. Foto: Arquivo Nacional / Wikimedia Commons.

 Por Anita Leocadia Prestes

Com o exílio da Coluna Prestes na Bolívia em fevereiro de 1927, Luiz Carlos Prestes — sua principal liderança — se volta para o estudo dos graves problemas sociais com os quais havia se deparado durante a Marcha dos “revoltosos” e a busca de sua solução. Impressionado com a miséria dos trabalhadores rurais brasileiros, Prestes, a partir de 1928 exilado na Argentina, encontra na teoria marxista-leninista a resposta para as inquietações que o acometiam. Ao mesmo tempo, verifica que, naquele momento, seria o movimento comunista latino-americano — e, em particular os comunistas brasileiros — a força política destinada a dirigir o processo revolucionário em nosso continente. Também seria importante o contato com o Bureau Latino-Americano da Internacional Comunista (IC), então sediado em Buenos Aires. 

Embora o PCB rejeitasse os insistentes pedidos de Prestes para ser aceito em suas fileiras, alegando suas origens pequeno-burguesas, o então “Cavaleiro da Esperança” aceitara e passara a apoiar o programa do partido. Em seu Manifesto de Maio de 1930, sem se declarar comunista, adotava a principal consignia do PCB: a luta por uma revolução agrária e anti-imperialista. Dessa forma, aderia à visão etapista do PCB e dos partidos latino-americanos integrados à IC. De acordo com tal concepção, vigente no PCB desde seu II Congresso, realizado em 1925, o processo revolucionário no país deveria passar por uma primeira etapa de caráter nacional-libertador, que abriria caminho para o estabelecimento de um suposto capitalismo autônomo, cujos desdobramentos permitiriam que se pudesse avançar rumo a uma segunda etapa — a revolução socialista. 

Em 1928, realizara-se em Moscou o VI Congresso da IC, com participação significativa de delegações latino-americanas, inclusive do PCB. Ao contemplar a situação dos países asiáticos, africanos e latino-americanos que já se haviam libertado do jugo colonialista, o VI Congresso os caracterizou como “semicoloniais”, concluindo que a luta revolucionária nesses países deveria, numa primeira etapa, ser de libertação nacional da exploração imperialista, seguida num segundo momento pela conquista do poder pela classe operária e seus aliados, rumo ao socialismo. 

O desconhecimento da realidade efetiva dessas nações ditas “semicoloniais” era geral no movimento comunista internacional e, certamente, a contribuição teórica dos dirigentes dos partidos comunistas latino-americanos também se revelou limitada e insuficiente.1 A única fala discordante nos debates então transcorridos foi do delegado equatoriano Ricardo Paredes, que apresentou um informe em nome da delegação latino-americana, discordando da caracterização de todos os países desse continente como semicoloniais e propondo para os casos da Argentina e do Brasil a denominação de dependentes. Segundo Paredes,  

“este novo grupo estaria constituído pelos países ‘dependentes’, e que estão penetrados economicamente pelo imperialismo, mas que conservam uma independência política bastante grande, seja devido a uma penetração econômica débil, seja devido à sua força política.”2

Ainda segundo Paredes, ao considerar as diferenças existentes entre os países semicoloniais e os dependentes, a consignia de revolução agrária democrático-burguesa não seria aplicável aos últimos.3 A proposta do equatoriano, entretanto, não foi discutida nem considerada durante os debates do VI Congresso da IC. 

Em 1929, realizou-se em Buenos Aires a I Conferência dos Partidos Comunistas Latino-Americanos, em que foram discutidas e aprovadas as resoluções do VI Congresso da IC relativas ao nosso continente. O dirigente de maior destaque na Conferência foi o argentino Victório Codovilla, defensor convicto e intransigente da concepção nacional-libertadora, vitoriosa no VI Congresso. Sob sua direção, a Conferência ignorou a tese defendida pela delegação peruana e cunhada por José Carlos Mariátegui — impedido de comparecer pelo seu estado de saúde —, contrária à visão etapista da revolução nos países do nosso continente. Segundo Mariátegui:

“Sem prescindir do emprego de nenhum elemento de agitação anti-imperialista, nem de nenhum meio de mobilização dos setores sociais que eventualmente podem concorrer para esta luta, nossa missão é explicar e demonstrar às massas que somente a revolução socialista poderá contrapor ao avanço do imperialismo uma barreira definitiva e verdadeira.”4

Essa frase de Mariátegui é incluída na apresentação feita pelo delegado peruano na Conferência de 1929, ocasião em que é lido e discutido por ele um documento intitulado “Ponto de vista anti-imperialista”, cujo teor consiste no programa apresentado pelos comunistas peruanos sobre a luta anti-imperialista. Seus argumentos não foram apreciados, seja nas falas dos demais participantes da Conferência, seja em suas resoluções finais. Era assim aprovada a visão etapista da revolução para o continente americano.5 Ao final do referido documento, há outra citação de Mariátegui em que se define com clareza o papel dos comunistas na luta anti-imperialista: 

“Somos anti-imperialistas, porque somos marxistas, porque somos revolucionários, porque contrapomos ao capitalismo o socialismo como sistema antagônico destinado a sucedê-lo, porque na luta contra os imperialismos estrangeiros, cumprimos nossos deveres de solidariedade com as massas revolucionárias da Europa.”6

No que diz respeito ao PCB, a concepção etapista do processo revolucionário teve aceitação de diversos setores da sociedade brasileira, pois tais posições convergiam com os sentimentos nacionalistas amplamente difundidos em sua sociedade civil, assim como os ideais liberais, dentre os quais se destacava a preocupação com a garantia da soberania nacional. 

As consequências para o PCB de tal situação foram advertidas por Eric Hobsbawm, quando escreveu: “O perigo real para os marxistas é o de aceitar o nacionalismo como ideologia e programa, ao invés de encará-lo realisticamente como um fato, uma condição de sua luta como socialista”7.

Embora a estratégia nacional-libertadora do PCB fosse aceita amplamente durante décadas pelos seus dirigentes e militantes, a partir de 1958,  Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do partido, passara a questioná-la, ao fazer restrições à Declaração de Março de 1958, documento aprovado pela direção partidária com seu apoio, decorrente da preocupação de preservar a unidade do PCB diante da repercussão da crise provocada no movimento comunista mundial pelo XX Congresso do PCUS, realizado em 1956. Prestes revelaria preocupação com o perigo de uma “tática reformista, que nos colocaria a reboque da burguesia”. Em artigo publicado nessa ocasião, escreveu: “A crítica superficial de nossos erros políticos pode conduzir agora ao erro oposto, à preocupação exclusiva com o movimento que se processa gradualmente, abandonando a meta revolucionária da classe operária.”8

Após a vitória da Revolução Cubana, em 1959, a experiência dos revolucionários cubanos, tendo à frente a liderança de Fidel Castro, seria reveladora de um processo ininterrupto de passagem da revolução nacional libertadora à revolução socialista. Como é apontado por Fernando Martínez Heredia, em Cuba houve uma “revolução ininterrupta”, acrescentando que “a revolução, que triunfou em 1959 teve que optar por ser socialista de libertação nacional” e foi “uma só revolução”.9

A Revolução Cubana mostrou que na atualidade, frente ao domínio econômico, político, social e cultural do grande capital internacionalizado, o processo de libertação nacional deverá evoluir para o socialismo ou não sobreviverá. É o que a prática de outras experiências tem revelado, como foram os exemplos da Guatemala, com Jacobo Arbenz, e do Peru, com Juan Velasco Alvarado.  

No Brasil, mesmo entre os comunistas, nos anos seguintes à Revolução Cubana, pouco se conhecia desse processo revolucionário e circulavam numerosas versões falsas. Nesse período, as concepções etapistas eram de longe as que predominavam em nosso país, sendo uma das poucas exceções a interpretação proposta pela ORM-POLOP (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária), fundada em 1961 e que resultara da “fusão de setores da Juventude do Partido Socialista – seção Guanabara – com um grupo de intelectuais partidários do pensamento de Rosa Luxemburgo, em São Paulo, e com setores da Juventude Trabalhista, seção de Minas Gerais”. A ORM-POLOP defendia o caráter socialista da revolução brasileira, mas em seu Programa Socialista, de 1967, propunha exclusivamente e de imediato o caminho armado da revolução com o objetivo de implantar o “foco guerrilheiro”.10 A ORM-POLOP, da mesma maneira que outras entidades da “esquerda revolucionária” no período citado, era uma organização pequena, e suas propostas tiveram repercussão muito limitada.

Luiz Carlos Prestes passara a questionar a estratégia nacional-libertadora, entendendo que era equivocada, pois o capitalismo dependente do capital internacionalizado encontrara caminhos para se desenvolver sem o recurso à revolução, como diversos estudiosos da realidade brasileira já haviam constatado; além disso, essa falsa estratégia levaria o PCB a incorrer em erros ora de esquerda, ora de direita na formulação de suas orientações táticas.11

Durante a preparação e a realização do VI Congresso do PCB, em 1967, as divergências de Prestes com a direção do partido tenderiam a se agravar, conflito que se tornaria explícito no exílio europeu dessa direção, levando à ruptura do secretário-geral com o Comitê Central do PCB em 1980, com a divulgação de sua Carta aos comunistas12

Esse conflito entre as posições defendidas por Prestes e a maioria dos delegados ao VI Congresso fica evidente ao compararmos algumas formulações da “Resolução política” aprovada com outras, presentes no “Informe de balanço do CC”, apresentado pelo secretário-geral. Assim não foram incluídas na “Resolução política” as seguintes formulações de Prestes: 

“[…] ao lutarmos pela revolução nacional e democrática, não lutamos pelo desenvolvimento capitalista, mas por um desenvolvimeno econômico democrático e independente, que abrirá caminho para o socialismo. Atualmente, toda revolução anti-imperialista é parte integrante da revolução socialista mundial. […] Marchamos assim para uma solução revolucionária que repele o capitalismo como perspectiva histórica, mas não exige de modo imediato a passagem para o socialismo. Vamos conquistar um poder revolucionário das forças anti-imperialistas e democráticas, que não terá ainda o caráter de ditadura do proletariado, mas será capaz de cumprir seu papel histórico e abrir caminho para o avanço ulterior, rumo ao socialismo.”13

Em artigo publicado em 1968, Prestes escreveria:

“A crise em que o Brasil se debate não pode ser resolvida sem a realização de reformas profundas em sua estrutura, isto é, não pode ser resolvida a não ser pela revolução. A luta contra a ditadura pode adquirir um rumo tal que a derrocada desta leve consigo o próprio regime social existente. Para que tal hipótese possa acontecer, entretanto, é necessário que as forças que  estão interessadas numa solução revolucionária — a classe operária, a pequena burguesia urbana e os camponeses — representem tal força dentro da frente antiditatorial e desempenhem tal papel na luta contra a ditadura que, ao derrubarem esta, estejam em condições de fazer prosseguir o processo e aprofundá-lo até que ele adquira um caráter revolucionário.”14 

Exilado em Moscou, desde 1971, por decisão do Comitê Central do PCB, Prestes discordava da direção do partido, que se voltara exclusivamente à luta contra a ditadura, à formação de uma frente ampla que viesse a derrotá-la através da crescente mobilização das massas. Na prática, a atuação dos comunistas ficaria restrita prioritariamente à participação em pleitos eleitorais.

Em Manifesto lançado por Prestes na ocasião do 50º aniversário do início da Marcha da Coluna Invicta, conhecida como Coluna Prestes, era destacado o papel revolucionário, que na sua opinião, o partido deveria desempenhar: 

“A conquista de um regime democrático não deverá significar […] uma simples volta ao passado. A frágil e vulnerável democracia de 1964 não corresponde mais aos anseios do povo. A luta de todos os patriotas e democratas só pode ter por fim a derrota definitiva do fascismo e a inauguração de uma nova democracia, que assegure amplas liberdades para o povo, uma democracia econômica, política e social, que possibilite a solução dos problemas nacionais mais graves e imediatos.”15 

A seguir, Prestes esclarece o conteúdo dessa nova democracia, por ele proposta:

“Trata-se da conquista de uma democracia que seja estável, que impeça a volta do fascismo. Para isso, a nova democracia terá que tomar medidas que limitem o poder econômico dos monopólios e dos latifundiários e que se orientem no sentido de sua completa liquidação. […] A nova democracia deverá ser o regime estabelecido por um governo das forças da frente única patriótica e antifascista, abrirá caminho para as profundas transformações de caráter democrático e anti-imperialista, já hoje exigidas pela sociedade brasileira.”16

Ao participar, em 1972, de um seminário dedicado à memória do revolucionário búlgaro Jorge Dimitrov em seu 90º aniversário natalício, e após destacar a contribuição de Dimitrov no combate ao radicalismo esquerdista, Prestes apontou em seu legado a atualidade das teses que, ao resgatar indicações de Lênin, afirmavam a importância das “formas de transição que conduzem à revolução”. Segundo Dimitrov, oportunistas de direita “inclinavam-se a estabelecer uma certa etapa intermediária democrática”. Uma nova etapa que, de acordo com Prestes, “no caso brasileiro, seria entre a ditadura da burguesia e o governo revolucionário. O que invariavelmente leva ao abandono, na prática, da bandeira revolucionária do partido, sem a qual não é possível ao proletariado conquistar a hegemonia na frente única antiditatorial”.17

Ao tentar definir melhor o que seria no Brasil “esse governo de transição para a conquista do governo revolucionário”, Prestes sustentou que tal governo:

“surgirá como aquele capaz de assegurar o desenvolvimento independente da economia nacional, será um governo de luta contra o imperialismo e a reação, de defesa da soberania nacional, o que exigirá tomar medidas contra o latifúndio e a dominação imperialista e preparar as massas para enfrentar a constrarrevolução.”18  

Com a devida prudência para não entrar em conflito aberto com a “Resolução política” do VI Congresso do PCB, Prestes recorreu à citação do “Informe ao VI Congresso” — texto de sua autoria e que não fora incluída na resolução — para acrescentar que tal “governo de transição” visava alcançar “uma solução que repele o capitalismo como perspectiva histórica, mas não exige de modo imediato a passagem para o socialismo. A seguir, escreveu:

“Um novo regime revolucionário que abra caminho de desenvolvimento da sociedade que, sem ser ainda socialista, rompe decididamente os moldes clássicos da estrutura capitalista e determina uma nova correlação  de forças internas. Ou, para citarmos o grande Lenin: ‘[…] Não seria ainda o socialismo, mas já não seria o capitalismo. Representaria um passo gigantesco para o socialismo’.”19

Para que Prestes chegasse a uma revisão radical da estratégia da revolução nacional e democrática, consagrada repetidas vezes na história do PCB e em particular no seu VI Congresso, com o reconhecido corolário da tese da conquista de um capitalismo autônomo no Brasil, contribuíram os debates que tiveram lugar no exílio com alguns comunistas brasileiros que estudavam em Moscou. Prestes acompanhou de perto os estudos em curso e participou desses debates, a partir dos quais constatou a existência na economia brasileira de um tripé constituído pelo Estado, pelos monopólios nacionais e estrangeiros e pelo latifúndio. O entrelaçamento desses três elementos era de tal ordem que se poderia postular a presença no Brasil de um capitalismo monopolista de Estado (CME) dependente, uma vez que o capital estrangeiro era o dominante no tripé. Era, portanto, inegável o nível relativamente alto de desenvolvimento capitalista atingido no Brasil, fato que invalidava a estratégia da etapa nacional e democrática da revolução brasileira. Na verdade, conforme trabalhos de pesquisa realizados no Brasil e no exterior revelaram, a dominação imperialista e o latifúndio não constituíram empecilho ao desenvolvimento capitalista do país, marcado, contudo, pela dependência do imperialismo e pela ausência de uma reforma agrária de caráter burguês.20

Em junho de 1975, realizou-se em Havana a Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina e do Caribe, cujos trabalhos preparatórios contaram com a participação de uma delegação brasileira e com especial atenção por parte de Prestes. O secretário-geral do PCB não só compareceu à conferência, como apresentou informe21 pormenorizado sobre a situação brasileira, contribuindo de maneira significativa para a elaboração da resolução final22 desse conclave. Sem utilizar o conceito de capitalismo monopolista de Estado (CME), Prestes apoiou-se em suas características essenciais para explicar a implantação do fascismo no Brasil: 

“A escalada de fascismo nas condições brasileiras consistiu em acelerar a passagem a um novo sistema de dominação dos monopólios, que abarca a economia e também a vida social, política, ideológica e cultural da nação. Trata-se assim de contribuir não só para o estabelecimento desse novo sistema de dominação, como também para seu desenvolvimento e manutenção, visando contribuir para a reprodução do capital monopolista sobre novas bases. Quando o Estado se convete em um elemento indispensável para o próprio processo de reprodução e os monopólios necessitam colocá-lo essencialmente a seu serviço, em última instância, se trata de contribuir para a conservação do sistema capitalista.”23

Essas afirmações são reveladoras de que o secretário-geral do PCB havia avançado consideravelmente no processo de revisão e abandono da concepção nacional-libertadora da revolução brasileira consagrada na “Resolução política” do VI Congresso do partido. Nesse sentido, Prestes  concluiu que “nas condições do Brasil, em que os monopólios estrangeiros são os que dominam, a grande burguesia monopolista brasileira está reduzida à condição de sócio menor do imperialismo24

A seguir, reafirmou a tese da luta pela conquista de um novo tipo de democracia, que não significasse uma volta ao passado, ou seja, à democracia liberal, mas uma forma de transição a um poder revolucionário: 

“A única forma de consolidar a vitória das forças antifascistas, impedindo a volta ao odioso sistema de opressão, será o estabelecimento de um novo tipo de democracia. Será um regime que representará os interesses das forças aglutinadas na frente patriótica e antifascista, constituindo uma forma de transição ao poder revolucionário e democrático, ou seja, antimonopolista e anti-imperialista. Esse regime democrático deverá garantir amplas liberdades para todas as forças antimonopolistas e iniciar o processo de limitação do poder dos monopólios, principalmente dos norte-americanos.”25 

A atuação intensa da delegação brasileira dirigida por Prestes nos trabalhos da Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina e do Caribe contribuiu para que, em sua resolução final, se afirmasse que “o socialismo é o único sistema capaz de garantir o desenvolvimento verdadeiro da América Latina com o ritmo acelerado que nossos países requerem”.26

Na virada dos anos 1960 para 1970 e durante a década de 1970, Luiz Carlos Prestes e o grupo de companheiros que o apoiavam junto à direção do PCB desenvolveram pesquisas reveladoras da formação no Brasil de um novo sistema de dominação do imperialismo, marcado pelo domínio dos monopólios nacionais e estrangeiros, articulados com o Estado e a transformação capitalista do latifúndio. Esse novo sistema de dominação havia estabelecido uma nova forma de dependência do imperialismo, principalmente do norte-americano. A partir de tal constatação se tornava evidente que, em grande parte dos países latino-americanos, a estratégia da revolução teria que ser socialista e não mais de libertação nacional. Estava clara a superação do etapismo.

No mesmo período, o grupo de cientistas sociais brasileiros de esquerda, formado principalmente por Vania Bambirra, Theotônio dos Santos e Ruy Mauro Marini, com a adesão de outros participantes, desenvolveu primeiro, ainda no Brasil, e depois, no exílio chileno, durante o governo de Salvador Allende, a chamada “teoria marxista da dependência”. Por caminhos distintos, tanto o grupo encabeçado por Prestes quanto os fundadores da “teoria marxista da dependência” chegaram a conclusões similares, o que foi reconhecido por Theotônio dos Santos em visita a Luiz Carlos Prestes em Moscou, na segunda metade dos anos 1970.27 

Em livro escrito em 1977 e publicado no México, em 1978, Vania Bambirra reconhece que no Partido Comunista Brasileiro, como em alguns outros partidos comunistas do nosso continente, houve certa receptividade às teses da “teoria marxista da dependência”. Certamente a autora levou em consideração a participação da delegação do PCB na Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, realizada em Havana, em 1975, e por ela citada:

“[…] desde o início dos anos setenta, talvez pela grande influência que a Unidade Popular [de Allende no Chile] exerceu junto à esquerda latino-americana, alguns partidos comunistas  começaram a mudar sua concepção estratégico-tática. Sintomas relevantes de reorientação  existem, por exemplo, no Partido Comunista Brasileiro. Essas mudanças apontam para a necessidade de definir como inimigo fundamental o grande capital  monopolista e a explicitar o caráter da revolução como socialista. Esta influência se manifestou também de certa maneira na reunião dos Partidos Comunistas da América Latina, realizada em Havana em 1975. Um fator sumamente importante para essa reorientação em curso é a recepção favorável de parte do Instituto de Economia Mundial da URSS das teses da dependência. […]”28 

Ao encerrar o texto citado, as afirmações de Vania Bambirra confirmam que as conclusões da “teoria marxista da dependência” se revelavam similares às defendidas por Luiz Carlos Prestes, embora estas últimas não tivessem aceitação junto à maioria do Comitê Central do PCB. Segundo Bambirra: 

“A incompreensão da característica básica e distintiva das burguesias latino-americanas como classes dominantes-dominadas leva à desvinculação da luta anti-imperialista da luta anticapitalista, à confusão na definição dos inimigos e dos aliados do proletariado no processo revolucionário, em suma, à utópica visão de que as burguesias latino-americanas ainda têm condições de liderar uma luta por profundas transformações econômicas e políticas de corte democrático. Tal concepção, que no passado foi a predominante no movimento popular latino-americano, conduz a um desvio de corte tipicamente reformista ao limitar o âmbito da luta de classes ao nível das conquistas democrático-burguesas.”

E a seguir, acrescenta:  

“Por outro lado, a simplificação, a exageração das formulações básicas da toeria mencionada pode levar a equívocos diametralmente opostos, ou seja, a acreditar que é possível uma passagem direta ao socialismo, sem que o proletariado e seus aliados tenham que conquistar, como condição prévia do seu triunfo total, as liberdades democráticas mínimas  e indispensáveis para sua ofensiva final rumo ao poder. Tal concepção extremada da luta de classes desvincula a luta democrática da luta pelo socialismo, não compreende que aquela deve ser entendida como um momento necessário desta e que  portanto deve ser inserida dialeticamente em seu contexto mais amplo.”29

À guisa de conclusão

Em artigo publicado em março de 1981 por ocasião do 59º aniversário do PCB, Prestes reafirmava sua concepção sobre o caminho brasileiro  ao socialismo, reconhecendo que “não tivemos a capacidade de fazer do PCB um partido efetivamente revolucionário”, em condições de “conduzir os trabalhadores à revolução socialista”. Frisou ter havido “incapacidade de nossa parte” de articular de maneira adequada todas as lutas das quais os comunistas participaram com “uma estratégia efetivamente revolucionária, com uma estratégia que, partindo de uma análise correta da realidade brasileira, apontasse o caminho para o socialismo nas condições de nosso País”. 

A seguir, ao apontar as “raízes do erro cometido”, Prestes escreveu:  

“Não podemos deixar de reconhecer que elas estão no nosso próprio atraso cultural, como parcela que padece do efetivo atraso cultural da sociedade brasileira, da consequente tendência a copiar ou transferir mecanicamente soluções adotadas para organizações revolucionárias de outros países para o nosso — dogmatismo, portanto —, além de nosso próprio desconhecimento da realidade brasileira, ao par de insuficiente conhecimento da teoria marxista-leninista. […]”30

Prestes lembrou que a tese segundo a qual “a contradição fundamental da sociedade brasileira” seria “a existente entre a Nação e o imperialismo” levara à formulação da estratégia errônea da revolução nacional e democrática, aprovada no VI Congresso do partido. Estratégia que o Comitê Central do PCB se recusava a rever: 

“Insistindo na estratégia errada, oportunista de direita, que já nos levou, durante tantos anos, a erros na política cotidiana, assim como a profundas deformaçãoes na organização do Partido, o CC revelou sua falta de honestidade e sua incapacidade moral para dirigir o Partido.  Tanto o mais que é impossível construir um partido efetivamente revolucionário, capaz de enraizara-se na classe operária, se se baseia numa falsa concepção da revolução.31

Prestes deixara claro que, para elaborar uma estratégia “efetivamente revolucionária”, seria necessário “construir um novo partido, efetivamente revolucionário, o que só alcançaremos através do trabalho de massas e aplicando uma política correta de alianças”.32

Notas

  1. Ver VI CONGRESO DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA. Primeira parte: tesis, manifiestos y resoluciones. 1ed. Mexico, Ediciones pasado y presente,1977, p.188-242. (66 Cuadernos de pasado e presente); VI CONGRESO DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA. Segunda parte: informes y discusiones.1ª ed. Mexico, Ediciones pasado y presente, 1978, p. 82-186. (67 Cuadernos de pasado y presente).  ↩︎
  2. VI CONGRESO DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA. Segunda parte: informes y discusiones. Op. cit., p. 179; tradução desta autora. ↩︎
  3. Idem. ↩︎
  4. MARIÁTEGUI, José Carlos. Escritos fundamentales. 1ª ed. Buenos Aires, Avellaneda: Acercándonnos Editorial, 2008, p. 51; tradução do espanhol de minha autoria; grifos desta autora. ↩︎
  5. “El Movimiento Revolucionario Latino Americano – Versiones de la Primera Conferencia Comunista Latino Americana”, Junio de 1929. Editado por la revista La Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires, agosto de 1929, p. 148-152. ↩︎
  6. Ibidem, p. 152; tradução do espanhol de minha autoria. ↩︎
  7. HOBSBAWM, Eric. Nacionalismo e marxismo, em PINSKY, Jaime (org.). Questão nacional e marxismo. São Paulo, Brasiliense, 1980, p. 310. ↩︎
  8. PRESTES, Luiz Carlos. “São indispensáveis a crítica e a autocrítica de nossa atividade para compreender e aplicar uma nova política”, Voz Operária, n. 460, 29/03/1958, p. 5. ↩︎
  9. HEREDIA, Fernando Mertínez. Pensamiento crítico y revolución. Antologia necessária.1ª ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: El Colectivo; Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe – IEALC; La Habana: Editorial filosofi@.cu; Morelos: Incendiar el Océano, 2022, p. 41, 51, 52; grifos e tradução desta autora. ↩︎
  10. Ver REIS FILHO, Daniel Aarão e FERREIRA DE SÁ, Jair (org.). Imagens da revolução. Documentos políticos das organizações de esquerda dos anos 1961-1971.Rio de Janeiro, Marco Zero, 1985, p. 89-116, 287. ↩︎
  11. Ver PRESTES, Anita Leocadia. A que herança os comunistas devem renunciar? Oitenta. Porto Alegre, LP&M, n. 4, 1980. ↩︎
  12. PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1980. ↩︎
  13. “Informe de balanço do CC ao VI Congresso (dez. 1967)”, em PCB: vinte anos de política (1958-1979). São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p. 197; grifos desta autora. ↩︎
  14. ALMEIDA, Antônio (pseudônimo de Prestes), “Carlos Marx e o marxismo”, Voz Operária, n. 41, jul. 1968, p.8; “A linha política e a tática dos comunistas brasileiros nas novas condições”, Revista Internacional, n. 6, jun. 1968, publicado também na Mundo em Revista, n. 5-6, 1968. ↩︎
  15. “Manifesto de Prestes” (29 out. 1974), Voz Operária, suplemento, n. 118, dez. 1974; grifos desta autora. ↩︎
  16. Idem; grifos desta autora. ↩︎
  17. PRESTES, Luiz Carlos, Intervemção em Seminário dedicado ao 90º aniversário natalício de Jorge Dimitrov, Sófia (Bulgária), 18/06/1972 (documento datilografado, 10 p; arquivo particular da autora). ↩︎
  18. Idem. ↩︎
  19. Idem. ↩︎
  20. Ver, por exemplo, OLIVEIRA, Francisco. A economia brasileira: crítica da razão dualística. Estudos Cebrap. São Paulo, Cebrap, n. 2,  out. 1972, p. 3-82; FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1975; CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios. Sao Paulo, Difel, 1972. ↩︎
  21. Intervención del delegado de Brasil, jun. 1975 (documento datilografado, 17 p.; arquivo particular da autora; tradução desta autora). ↩︎
  22. La América Latina en la lucha contra el imperialismo, por la independencia nacional, la democracia, el bienestar popular, la paz y el socialsimo (resolução da Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina), Havana, 13 jun. 1975 (documento datilografado, 54 p.; arquivo particular da autora). ↩︎
  23. Intervención del delegado de Brasil, cit.; tradução e grifos desta autora. ↩︎
  24. Idem; grifos da autora. ↩︎
  25. Idem; grifos da autora. ↩︎
  26. La América Latina en la lucha contra el imperialismo, por la independencia nacional, la democracia, el bienestar popular, la paz y el socialsimo, cit. ↩︎
  27. Informação fornecida por Prestes a esta autora. ↩︎
  28. BAMBIRRA, Vania. Teoría da la dependencia: una anticrítica. Serie popular Era. México, Ciudad Universitaria, 1978, p. 10; tradução desta autora. ↩︎
  29. Ibidem, p. 104-105; tradução desta autora. ↩︎
  30. PRESTES,  Luiz Carlos, “25 de março: o PCB completa 59 anos de lutas pelos interesses dos trabalhadores, pelas liberdades e por todas as causas justas do nosso povo: aprender com os erros do passado para construir um partido novo, evetivamente revolucionário”, Voz Operária, n. 167, mar. 1981, p. 1-4; reproduzido em Movimento, mar. 1981. ↩︎
  31. Idem; grifos desta autora. ↩︎
  32. Idem; grifos desta autora. ↩︎

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Anita Leocadia Benario Prestes  é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada (UFRJ) e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), dos livros Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017), Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento e A coluna prestes (Boitempo, 2024). Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979”, publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.


A coluna prestes, de Anita Leocadia Prestes
Em comemoração aos cem anos da Coluna Prestes (que durou de 1924 a 1927), a Boitempo relança a obra de Anita Leocadia Prestes sobre o assunto. Fruto da tese de doutorado da autora defendida em 1989 na Universidade Federal Fluminense (UFF), o livro é a mais completa obra de pesquisa e reconstrução sintética sobre a Coluna, apoiada em sólida formação teórica e aparato documental em grande parte inédito à época de sua primeira edição.

Dividida em três partes, a obra começa com um panorama da sociedade na época, ainda com resquícios do sistema escravocrata e caminhando para um maior desenvolvimento capitalista, em meio a uma crise econômica, política e social. A segunda parte aborda a marcha da Coluna, numa narrativa enriquecida por diversos depoimentos, entre os quais o de Luiz Carlos Prestes, pai da autora. Nela, Anita Prestes busca responder à questão central de como uma força armada com parco aparelhamento bélico e dotado de poucos recursos nunca foi derrotada. Já na parte final, é tratado o relacionamento da Coluna com as populações urbanas e rurais e as forças políticas da época.

“Anita conseguiu enveredar pelo difícil caminho da fonte oral – o herói invencível a relatar sua própria história – e saiu-se com rara felicidade dessa empreitada, demonstrando notável isenção como observadora do seu fato histórico e superando a ligação afetiva com aquele que era, ao mesmo tempo, o principal ator e a fonte fundamental de seu relato. Eis o primeiro e não menos importante mérito do trabalho, isto é, não cair na armadilha de seu próprio método”, escreve Maria Yedda Leite Linhares no prefácio.


Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes
A vida do revolucionário brasileiro cuja saga no movimento tenentista e na resistência antifascista contra Getúlio Vargas marcaram época. A autora, filha de Prestes e historiadora, oferece uma biografia política envolvente, embasada em metodologia marxista e documentação extensa.

Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo, de Anita Leocadia Prestes
A resistência e coragem da revolucionária Olga Benario Prestes nesta narrativa biográfica. Baseada em documentos inéditos da Gestapo, conta a jornada da jovem comunista desde sua luta política até sua execução nos campos nazistas. Amor, resistência e silêncio frente à brutalidade do Terceiro Reich.

Viver é tomar partido, de Anita Leocadia Prestes
Memórias marcantes entrelaçadas à história do comunismo no Brasil e no mundo. Um relato pessoal de lutas e perseguições, destacando o papel fundamental de mulheres na política radical. Leitura sensível e essencial para compreender a resistência contra a lógica capitalista.

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