Entre santos e vilões: “Apocalipse nos Trópicos” e os estereótipos sobre a fé no Brasil

Apocalipse nos Trópicos, novo documentário de Petra Costa, reforça católicos como “defensores dos pobres” e evangélicos como “defensores dos ricos”. Ignora assim o conservadorismo católico, reforça estereótipos sobre os evangélicos e deixa de lado a complexidade da religião no Brasil.

Imagem: Divulgação.

por Tabata Tesser

[Atenção, spoilers na pista. ⚠️]

Na última terça-feira, 14 de julho, entrou no catálogo da Netflix o documentário Apocalipse nos Trópicos, da diretora Petra Costa. Conhecida por seu estilo autonarrado, com forte apelo simbólico e político, Petra entrega uma obra carregada de emoção, excelente fotografia, mas com graves limitações analíticas sobre religião. Ao menos três razões levam ao fracasso do filme em oferecer uma interpretação robusta da paisagem religiosa brasileira, terminando por reforçar estereótipos persistentes sobre “os evangélicos” presentes tanto na grande mídia quanto em certos setores da esquerda. 

O primeiro equívoco é estrutural. O documentário adota uma narrativa apocalíptica que, ao dramatizar a ascensão política dos evangélicos, marginaliza o papel histórico do catolicismo na produção do conservadorismo no Brasil. A meu ver, esse é o principal problema de enredo do filme. Ainda que tenha como foco os evangélicos, é impossível compreender sua ascensão sem considerar o declínio da hegemonia católica e seu papel ativo na conformação do cenário político.

O filme cita brevemente Dom Pedro Casaldáliga, ícone da ala progressista da Igreja Católica e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e, no entanto, ignora a profunda crise institucional vivida pelo catolicismo e exemplificada na crise do clero, no esvaziamento das pastorais sociais e na dificuldade de diálogo com o mundo do trabalho precarizado. Ignora, ainda, a ascensão homérica da Renovação Carismática Católica (RCC) que, em muitos traços ritualísticos, se inspira no “modelo pentecostal” originalmente evangélico. Isenta-se também de tratar dos “padres midiáticos” que surgiram muito antes de Malafaia. E desconsidera, ainda, o papel ativo de setores católicos na construção de um projeto político autoritário e abertamente antimarxista.  

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Reduzir o catolicismo brasileiro à Teologia da Libertação é, no melhor dos casos, uma visão idealizada; no pior, uma falsificação histórica. O enredo opta por tratar católicos como defensores dos pobres, enquanto os evangélicos são apresentados como defensores da riqueza, da prosperidade e do golpismo. Por si só, é reducionista. A realidade é mais complexa, e certamente menos confortável para os que ainda romantizam um passado católico “progressista” no país. 

Não há, por exemplo, qualquer menção no documentário ao integralismo católico e ao clericalismo dogmático que sustentaram, ao longo do século XX, uma visão de mundo abertamente reacionária. Figuras como Plínio Salgado, Plínio Corrêa de Oliveira e Jackson de Figueiredo organizaram um pensamento católico contrarrevolucionário, antimarxista e elitista. A fundação da TFP (Tradição, Família e Propriedade), em 1960, foi resultado direto da sistematização política e cultural de uma teologia autoritária que defendia a “opção preferencial pelos nobres”, em oposição à “opção preferencial pelos pobres” da Teologia da Libertação.

Imagem: Divulgação.

Como o documentário retrata o presente, falemos dele. Apesar da perda de fiéis, o catolicismo segue sendo a identidade religiosa majoritária no Brasil. Segundo o Censo de 2022, 56,7% da população brasileira se declarou católica — confissão que lidera em todas as regiões e em todas as categorias de cor ou raça. O documentário desconsidera a presença majoritária de católicos entre os que apoiaram os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Dados do Monitor do Debate Político no Meio Digital (USP) indicam que 47% dos presentes nas manifestações por anistia aos golpistas eram católicos, contra 27% de evangélicos. Muitos desses católicos pertencem a grupos ultraconservadores ligados à tradição romana, à liturgia tridentina, e fazem parte da ascensão da chamada “teologia do domínio” — um fenômeno político particular que junta setores católicos e evangélicos na rejeição explícita aos direitos civis e democráticos. 

O segundo problema do filme está na fetichização do “populismo evangélico”, encarnado de forma caricatural na figura de Silas Malafaia. Embora Malafaia ocupe espaço relevante na mídia e na política, sua centralidade no documentário é desproporcional. Ao retratá-lo como “o homem mais poderoso do Brasil”, capaz de controlar o que Bolsonaro faz e fala, o documentário reforça à ideia de “controle mental”, baseada em uma leitura psicologizante e conspiratória da religião. A antropóloga Carly Machado (organizadora do dossiê “Religião e política não se misturam?” da revista Margem Esquerda #44) é crítica do uso da metáfora de “manipulação mental” como sinônimo de obediência cega à religião. Essa abordagem reduz a experiência religiosa à manipulação, e acaba por ignorar os sentidos morais e situados que movem a fé, mesmo em formas conservadoras. Tratar “os evangélicos” como massa homogênea e acrítica é uma visão que deveria ter sido superada. Como campo de contradições, a religião precisa ser analisada a partir de seus vínculos sociais, políticos e simbólicos, não como uma “ilusão” ou patologia coletiva. 

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Ao privilegiar a biografia de Malafaia, o documentário invisibiliza a pluralidade evangélica, expressa em diversos tipos de lideranças comunitárias, as redes de acolhimento e solidariedade em contextos periféricos, e a própria disputa que setores evangélicos fazem da hegemonia católica nos espaços de poder e participação social. A ausência de uma análise sobre o maior segmento evangélico do país, as mulheres negras, escancara esse erro. Ao não apresentar essas vozes (e a partir desses marcadores), o documentário silencia sobre a base social mais ativa do campo evangélico brasileiro. Ignora, por exemplo, o pastorado feminino. 

O terceiro ponto crítico é estético e narrativo. Ao adotar uma linguagem escatológica, Apocalipse nos Trópicos sugere que vivemos uma distopia religiosa que foi “pausada” com a vitória de Lula em 2022. A metáfora é eficaz como alerta, mas perigosa do ponto de vista político. Ela flerta com uma ideia de redenção messiânica e reforça uma leitura personalista da política (e da religião), exatamente o tipo de concepção que o pensamento marxista, sobretudo em sua vertente dialética, sempre alertou como limitadora. Ao abandonar a análise estrutural da religião como mediação social em contextos de desigualdade, o documentário recorre à emoção, à culpa e ao golpismo. A fé passa a ser representada como ameaça, e não como forma de organização do desejo e da mobilização de sentimentos coletivos. Diversamente, uma crítica marxista da religião exige mais: exige compreender a religião como espaço de disputa e contradições, não como vestígio de ignorância. E isso vale tanto para analisar o campo evangélico quanto o católico. 

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Por fim, Apocalipse nos Trópicos termina por flertar perigosamente com a construção de um sentimento fabricado e irreal de “cristofobia” contra evangélicos. Ao tratar esse grupo como ameaça em bloco, o filme contribui para a legitimação de discursos morais de perseguição religiosa que já têm sido mobilizados, especialmente por setores conservadores, como justificativa para endurecer políticas públicas e restringir direitos. Apocalipse nos Trópicos oferece uma denúncia justa do bolsonarismo e de suas alianças religiosas, mas tropeça ao tentar interpretar o Brasil profundo com as lentes de uma elite urbana que ainda enxerga a religião como anomalia ou ameaça. Perdeu-se, assim, a oportunidade de contribuir para um debate mais complexo sobre fé, religião e democracia num dos países mais cristãos do globo. 

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Tabata Tesser é doutoranda em Sociologia (USP), mestre em Ciência da Religião (PUC/SP) e socióloga da religião (FESPSP). Integra a linha de pesquisa de Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp). Ao lado de Ana Carolina Mariscano, assina o artigo “Associativismo e a ascensão da extrema direita católica no judiciário”, publicado na Margem Esquerda #44, revista semestral da Boitempo.


Margem Esquerda #44 | Evangelho
Nos últimos anos, o tema da religião tem comparecido cada vez mais nos discursos de esquerda, seja como enigma, lamentação ou bode expiatório – ou, ainda, pelas suas afinidades eletivas com os traços apocalípticos da conjuntura global. Partindo do mote durkheimiano de que “a religião é coisa eminentemente social”, o dossiê de capa desta Margem Esquerda investiga o fenômeno religioso e sua relação com a política no Brasil para além dos chavões e lugares comuns condescendentes. Organizada por Carly Machado, a seleção traz um rico mosaico de textos que abrangem a alarmante ascensão da extrema direita católica no judiciário, a questão do movimento negro evangélico, a relação entre religião e o debate sobre as fake news, a retórica salvacionista dirigida contra as mulheres evangélicas e até a influência do papado sobre a política doméstica.

A entrevistada da edição é a cientista social Maria Lygia Quartim de Moraes, figura importante do marxismo feminista brasileiro. Em seu tom caracteristicamente ácido e bem humorado, ela repassa sua intensa trajetória política e intelectual e não mede palavras para comentar os impasses e desafios da esquerda no Brasil. A edição ainda traz artigos de fôlego sobre Malcolm X, Clóvis Moura, Fredric Jameson, Paulo Arantes e Antonio Candido, além de um erudito roteiro de estudos sobre Luís de Camões elaborado por ninguém menos que José Paulo Netto. Na seção de homenagens, prestamos tributo a Beatriz Sarlo, Michael Burawoy e Paula Vaz de Almeida. O artista convidado desta edição é Sérgio Romagnolo; a poesia é de Amiri Baraka.


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