Amigo é pra essas coisas

(uma página pouco conhecida da história de Karl Marx e Friederich Engels)


13.03.22_Prova de amizade

Por José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta.

[Nota dos editores: Este conto é uma obra de ficção.]

Londres, 1851. Sobre uma toalha estendida sobre a grama, Friedrich Engels e Jenny, a esposa de Marx, conversam. Então, de repente, surge Marx correndo. Atrás dele, seus três filhos: Kiki, Laura e Edgar.

Marx dribla as crianças, mas então, cansado, desaba sobre a toalha. O trio se aproveita e pula sobre ele

Marx: Não, cócegas não. Pelo amor de Deus!
Engels: Acho que seu marido precisa de ajuda.
Marx: Jenny, socorro!
Jenny: Muito bem, chega. (bate palmas) Atenção, atenção! Quem vier dar uma volta comigo vai ganhar um caramelo. Isso. Em fila: Laura fica na frente, depois Edgar e a Kiki vai atrás. Assim está bom. Agora sigam a tenente Jenny. (alto) Companhia, marche! Um, dois; um, dois; um, dois…

Os quatro saem batendo o pé. Recuperado, Marx passa as mãos pela roupa para se limpar. Ele e Engels sentam-se em frente à toalha de piquenique.

Engels: As crianças estão lindas.
Marx: Obrigado.
Engels: Kiki já fez sete?
Marx: Fará daqui a dois meses.
Engels: Edgar tem quatro.
Marx: Cinco. Laura é que tem quatro. Esperta, não acha?
Engels: Muito. Deve ter puxado à mãe.
Marx: Se Jenny fosse esperta não teria se casado comigo.
Engels: É bonito ver vocês brincando.
Marx: Os filhos são a alegria da vida. Desde quando trocamos suas fraldas até quando eles trocam as nossas.
Engels: Terei que trocar as minhas.
Marx: Não pensa em ser pai?
Engels: Nasci para tio.
Marx: Bobagem! Você seria um pai excelente.
Engels: Mary não quer ter filhos.
Marx: Se ela tem medo do parto, vocês podiam adotar.
Engels: E perder a parte mais divertida? Não mesmo!
Marx: Se vocês tiverem um filho, faço questão de ser o padrinho.
Engels: Vamos mudar de assunto?
Marx: Muito bem, mudemos. Sabe que consegui acesso à sala de leitura do Museu Britânico? Fico lá das 10h às 19h. Consigo ler muito. Em casa seria impossível com duas mulheres grávidas.
Engels: Duas? Sua empregada também?
Marx: Pois é, Lenchen…
Engels: Quem diria? Com aquela cara de santa… Essas são as piores. Pode ter certeza: mulher com cara de boazinha, quando pega um filisteu de jeito, acaba com ele. São umas diabas!
Marx: Não fale assim.
Engels: E quem é o pai?
Marx: Esse é o problema…
Engels: Por quê? Foi algum pervertido? Um bêbado?
Marx: Não, não.
Engels: Ela foi estuprada?
Marx: Também não é isso.
Engels: Então quem foi?

Marx fica calado. Toma um gole de vinho. Olha para os próprios sapatos.

Engels: Você! Você e Lenchen!?

Marx levanta, afoito.

Marx: Fale baixo, pelo amor de Deus!
Engels: Isso é uma piada?
Marx: Quem dera.
Engels: Com tantas prostitutas, com essa sua mão enorme…, e você engravida a própria empregada?!
Marx: Jenny estava viajando com as crianças. Tinha ido pedir dinheiro para a família…
Engels: … aí vocês ficaram sozinhos…
Marx: Pois é.
Engels: Isso é que é amar a classe operária.
Marx: Nunca mais vai acontecer.
Engels: Mas já aconteceu. Você traiu sua mulher com a empregada. E pior: ela ficou grávida! Que adianta ler tantos livros?

Marx começa a andar de um lado a outro. Está com os nervos à flor da pele.

Marx: Essa história está me queimando os miolos. Não consigo escrever nada.
Engels: Isso é o pior mesmo…
Marx: Sim, claro… Ah, você foi irônico.
Engels: Já pensou numa solução?
Marx: Estou olhando para ela.
Engels: Quê!?
Marx: Sinto muito, mas você tem que assumir a criança. É a única saída.
Engels: Por isso você estava dizendo que eu seria um bom pai.
Marx: Eu sou casado, você não. É o sacrifício do indivíduo pela coletividade.
Engels: Já faço isso quando lhe mando dinheiro todo mês.
Marx: Não há outra saída.
Engels: O Espírito Santo.
Marx: Ninguém mais acredita nisso.
Engels: Um namorado misterioso?
Marx: Ela nem sai de casa, é totalmente devotada à nossa família.
Engels: Principalmente ao pai.
Marx: Chega de tortura, por favor.
Engels: Você não vê que seria ridículo? Imagine que estou em sua casa almoçando. De repente, faço voz de arrependimento e começo a falar assim: “Jenny, minha querida amiga, tenho que lhe confessar uma coisa: um dia cheguei aqui, você tinha saído com as crianças e o Mouro estava enfurnado no Museu Britânico. Então Lenchen me recebeu com sorrisos, gentil como sempre. Mas eu, um libidinoso imprestável, não me contive e… a seduzi. Sim, eu a seduzi! Meus instintos animais foram mais fortes que a razão. Me perdoe…”
Marx: O texto está bom. Mas você pode trocar ‘instintos animais’ por ‘impulsos da natureza’.
Engels: Eu não vou dizer coisa nenhuma!
Marx: Desculpe, você já faz muitos sacrifícios por mim. Nunca terei como lhe agradecer.
Engels: Assuma o filho de Lenchen e me darei por satisfeito.
Marx: Não posso.
Engels: Você tem que arcar com as consequências.
Marx: Não sei o que me deu na cabeça para lhe propor isso. Que merda, que merda…

Os dois ficam calados. Engels enche os copos de vinho.

Marx: Eu tinha doze anos quando reparei em Jenny pela primeira vez; ela, dezesseis. Minha vizinha, a filha do barão von Westphalen.
Engels: Já escutei essa história mil vezes.
Marx: Um dia, não me pergunte por quê, ela aceitou meu convite para um passeio. Eu ardia em febre e respirava aos trancos. Parecia que ia explodir só por estar ao seu lado. Gaguejava como um idiota tentando lembrar uma fala de Romeu e Julieta.
Engels: Que fala?
Marx: “Você é tão bela que deve ensinar as tochas a brilharem.”
Engels: E ela caiu nessa?
Marx: Pois é… Ninguém acreditou quando a mais cobiçada moça de Trier aceitou o amor de um rapazote. Ela me esperou enquanto eu estava na faculdade e depois largou tudo: o luxo, o conforto, a família, e acabou vindo morar num cortiço em Londres. Fez tantos sacrifícios e agora lhe dou esta decepção…
Engels: Você acha que vou cair nessa história?
Marx: Que história?
Engels: Você só está me contando de seu amor por Jenny para eu ficar com pena e assumir a criança. Não sou tão inteligente quanto você, mas não sou um imbecil.

Jenny e as três crianças voltam e chamam Marx para brincar.

Marx: O quê?… Não, não podemos brincar de roda… Estou conversando com tio Engels. Jenny, tire-as daqui, por favor!

As crianças insistem.

Marx: Está bem, está bem, vamos lá. Formem uma roda.

Marx, Engels e Jenny formam a roda com as crianças. Todos giram e cantam uma cantiga infantil alemã: “Eine kleine Geige möcht ich haben. Eine kleine Geige hätt ich gern. Alle tage spielt ich mir zwei, Drei Stücken oder vier Und sänge und spränge gar lustig herum. Di-del-di-del-dum-dum, di-del-di-del-dum, di-del-di-del-dum-dum, dum-dum-dum.”

Durante a dança, Engels olha para as crianças com certa tristeza. Quando a cantiga acaba, o trio corre para longe e Jenny vai atrás.

Engels: Muito bem, Mouro, eu aceito.
Marx: O quê?
Engels: Serei o pai do seu filho.
Marx: Tem certeza?
Engels: Não pergunte outra vez.
Marx: Por que mudou de ideia?
Engels: Pelas crianças, por Jenny e pela causa. Seu nome não pode ser alvo de descrédito.
Marx: Isto vale para os dois, não?
Engels: Já sou bastante ridicularizado por ser patrão, por gostar de vinhos e por me deitar com uma tecelã. É só uma mancha a mais na minha reputação.
Marx: Obrigado.
Engels: Darei a notícia rápido e, logo que o bebê nascer, eu o levarei embora.
Marx: Lenchen ficará arrasada.
Engels: Se o bebê continuar por aqui, logo perceberão que tem seus traços e não os meus.
Marx: Mary cuidará dele?
Engels: Ela não quer filhos. Encontrarei uma família para se encarregar disso.
Marx: Ótimo. Só tenho mais um pedido.
Engels: Mais um?
Marx: Se for menino, quero que seu nome seja Friedrich.

Engels fica calado por um longo momento. Depois diz, emocionado: “Será uma honra.”

13.03.22_Prova de amizade_2

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José Roberto Torero é formado em Letras e Jornalismo pela USP. Roteirista, diretor e escritor, é colunista da Folha de S.Paulo desde 1998, tendo escrito também para o Jornal da Tarde e para a revista Placar. Autor, entre outros, de O Chalaça, Pequenos Amores (ambos vencedores do Prêmio Jabuti) e O Evangelho de Barrabás. Assina a orelha de A Bíblia segundo Beliel, de Flávio Aguiar.

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Michael Heinrich_boletim

Michael Heinrich está no Brasil para participar do IV Seminário Margem Esquerda: Marx e O capital, que integra a programação do projeto Marx: a criação destruidora. Hoje, dia 22/3, ele apresenta a conferência Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels, às 20h no Sesc Pinheiros.

10 comentários em Amigo é pra essas coisas

  1. Saulo Pinto Silva // 22/03/2013 às 3:52 pm // Responder

    bom, todos nós ouvimos já esta história diversas vezes, seja como assunto distinto, seja como deboche dos anti-marxistas, mas gostaria de saber se este diálogo é resultado da liberdade criativa dos camaradas que as escreveram ou se trata de algo que possui uma fonte real, concreta. digo isto, pois todos nós que somos marxistas nos interessamos, em regra, pela intimidade muito pouco conhecido e ainda menos explorada com seriedade dos grandes marx e engels. se alguém puder responder, ficaria bastante grato. de todo modo, agradeço aos autores pelo texto, muito interessante e de uma curiosidade absoluta. abraços.

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  2. Este texto é vergonhoso. Mancha a reputação da Boitempo, tão consciente de sua origem de esquerda, em nome de uma liberdade ficcional rasa e crassa. O diálogo é tristemente cínico, com menções jocosas a ideias importantes do Mouro, e imagina uma cumplicidade com moral bandida de dois dos maiores pensadores do século XIX. Boitempo, vergonha!

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  3. Plinio Araújo // 26/03/2013 às 1:50 pm // Responder

    Existe de fato uma suposição de que Marx teve um filho ilegítimo, mas não há prova ou documento não contestado desse episódio. Dar ênfase descabida a isso, como se fosse verdade, imaginando um diálogo entre Marx e Engels de baixo nível, grosseiro e rude, é propagar uma mentira. Como disse o comentário acima: Boitempo, vergonha!

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  4. José Roberto Torero // 27/03/2013 às 11:39 am // Responder

    É curioso que Marx ainda seja venerado de forma religiosa, como fizeram PW (que não ousa se identificar) e Plínio. É claro que o sujeito foi um gênio. Mas era humano. E cometeu erros, como comer a empregada e deixar que o amigo pagasse o pato. Além disso, fazia piadas escatológicas e tinha hemorróidas. Sim, hemorróidas. Creio que vergonha é o que os devotos sentem de Marx por ele ser apenas humano, demasiado humano. O texto é trecho de uma peça que não tem a intenção de ser jocosa com a dupla, mas sim de fazer uma homenagem a dois homens que tentaram, e conseguiram, mudar o mundo. Mas a peça não os trata como santos. Coisa, aliás, em que eles não acreditavam, mas na qual muitos fãs, pelo visto, ainda creem.

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    • Torero, seu texto acaba de entrar no Index stalinista dos marxóides, algo já esperado. A diferença entre o séc. XIX e a atualidade é que hoje temos métodos contraceptivos eficientes. O marxismo carece de humor e, principalmente, de criatividade, o que tais autores têm em mais-valia. Biriteiros, charuteiros e comedores de empregadas de todos os países, uni-vos.

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  5. Que porra é essa?

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  6. Américo Jurca // 29/06/2013 às 9:12 pm // Responder

    Torero, a razão é sua.Essas pessoas não entenderam bem o alcance de uma das grandes contribuições desses dois personagens: o método materialista dialético.
    Nada mais estranho a essa contribuição do que venerar Marx e Engels e não submetê-los à mesma “crítica” do método que eles propuseram.
    Agora, só achei que você podia ter deixado a questão da hemorróida ,pois isso não depende do caráter do indivíduo, ainda que hábitos também digam muito de nosso caráter.(risos)
    Outra coisa: pode não ter havido esse diálogo, mas provavelmente algo não muito distante dele tenha ocorrido.
    Alguém já disse(Zé Paulo Netto, do PCB) , para desculpar o grande ídolo,e ainda sobre essa história do filho, que Marx era um “homem do seu tempo”.
    Ok,só que uma das filhas dele teve altercações com Engels por achar que este tratava o garoto com frieza, quer dizer, havia “homens”(mulher, neste caso,a filha de Marx), que apesar de também serem do “tempo de Marx”, não pensavam assim como ele, isto é, já havia uma consciência de que não assumir um filho e entregá-lo à adoção seria demonstração de egoísmo e insensibilidade.
    Sou comunista e Marx e Engels estão em minha cabeceira como leitura obrigatória da mais legítima ciência social, mas sem engolir qualquer coisa que saísse da boca deles, afinal, não eram deuses.

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    • José Roberto Torero // 04/07/2013 às 2:42 pm // Responder

      Américo, que bom que você concorda com o tom geral do texto. Quanto às hemorroidas, escolhi citá-las porque parece que foram mesmo um grande sofrimento para ele. Sem falar que elas mostram bem o quanto o coitado passou a vida com a bunda em bancos de biblioteca. Não são hemorroidas inocentes. São hemorroidas ideológicas!

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