Sob fogo: o Ocidente retira-se do Afeganistão
Tomasz Konicz reflete sobre a retirada do Ocidente do Afeganistão, cujas consequências foram um Estado fracassado e uma situação de terra arrasada.
Por Tomasz Konicz.
Com a retirada dos EUA do Afeganistão e a tomada de Cabul pelo Talibã, apresentamos uma análise feita ainda em 29 de junho de 2021 por Tomasz Konicz sobre a situação do país da perspectiva da crítica do valor. Uma versão ligeiramente abreviada deste texto apareceu no periódico alemão Konkret em 6 de junho de 2021. A tradução é de Marcos Barreira, para o Blog da Boitempo.
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O Ocidente retira-se do Afeganistão e deixa para trás terra arrasada e um Estado fracassado.
Durante cerca de três anos, até abril de 1992, o regime pró-soviético de Mohammed Najibullah ainda foi capaz de resistir contra os mujahidin apoiados pelos Estados Unidos depois que a União Soviética retirou suas tropas do Afeganistão em 1989, após uma guerra constante que durou quase doze anos. Najibullah permaneceu em Cabul mesmo durante a guerra civil subsequente entre milícias islâmicas até ser preso, torturado e assassinado em 1996 pelos mesmos islamistas da Idade da Pedra do Talibã que deram refúgio e uma base (a conhecida Al-Qaeda) para a rede terrorista de um tal Osama Bin Laden como digno veterano da luta contra as tropas soviéticas no Afeganistão.
Os Estados Unidos permanecem no Afeganistão mais tempo do que os soviéticos, mas é questionável se as estruturas rudimentares de poder estatal estabelecidas por Washington após a queda do Talibã em 2001 sobreviverão tanto quanto o mencionado regime-satélite soviético, depois que a máquina militar estadunidense e seu anexo da Otan deixarem o país. O serviço de inteligência dos Estados Unidos avaliam que o Talibã deve recuperar o amplo controle desse país maltratado, um protótipo do “Estado fracassado”, dentro de “dois a três anos”. A República Islâmica do Afeganistão é, com efeito, uma vila ao estilo Potemkin na qual Washington gastou quase um trilhão de dólares para levantar, como parte da intervenção e de sua fracassada “construção da nação”. O New York Times, por exemplo, perguntou no final de abril quanto tempo as “forças de segurança” afegãs seriam capazes de resistir ao Talibã, pois, ao se retirar, Washington deixaria para trás estruturas militares e policiais “despedaçadas e danificadas”.
O contingente oficial das forças de segurança corruptas afegãs, que inclui cerca de 300.000 soldados, é um sonho impossível, pois muitos postos do exército e da polícia estão vagos para proporcionar renda adicional aos comandantes. O New York Times relatou que há unidades do exército que possuem efetivamente metade das tropas. Os 74 bilhões de dólares gastos por Washington para construir o exército em parte irrigaram estruturas informais de poder moldadas por clãs, por bandos étnicos ou religiosos. O equipamento do exército é frequentemente vendido, de modo que, por exemplo, o fornecimento de equipamento de visão noturna dos Estados Unidos que dariam vantagem à polícia afegã teve de ser interrompido. Há falta de veículos blindados e até mesmo de munição – algumas unidades disparam um “número excessivo” de cartuchos a fim de vendê-los como sucata no mercado negro.
O baixo moral da polícia e do exército afegãos, miseravelmente pagos, também resulta das altas perdas que eles têm que aceitar. Desde 2001, mais de 3.500 soldados das forças da coalizão ocidental dos Estados Unidos morreram no Afeganistão. Em contraste, as forças de segurança afegãs – cujos feridos recebem cuidados médicos separados e de péssima qualidade – perderam 66.000 homens. Atualmente, também, a polícia e o exército do Afeganistão precisam lidar com perdas muito elevadas, que dizem estar perto de 300 mortos e 200 feridos a cada mês. Isso levou a uma enorme queda na taxa de recrutamento, que mesmo no norte do país – onde as tensões étnicas contra os Talibãs, de maioria Pashtun, tiveram um efeito motivador – caiu de cerca de 3.000 candidatos mensais para apenas 500. Além disso, a força aérea do Afeganistão é muito ineficiente para realizar ataques aéreos com bons resultados.
Embora o exército estadunidense ainda esteja presente no país, o Talibã – que foi fundado nos campos de refugiados paquistaneses financiados pela Arábia Saudita durante a guerra civil – atualmente controla mais terras do que em qualquer outro momento desde sua queda em 2001. Os islamistas da Idade da Pedra operam em cerca de dois terços do território do Afeganistão. Várias bases militares no sul, no território alcançado pelo Talibã, estão efetivamente cercadas e têm de ser abastecidas por meio de helicópteros. As negociações para a retirada das unidades militares fracassaram porque os Talibãs exigem que os soldados deixem seus equipamentos militares para trás. Desde o anúncio da retirada, muitos postos policiais foram invadidos pelo Talibã ou simplesmente abandonados, pois seus ocupantes desertaram ou passaram para o lado do Talibã. No início de maio, os islamistas também lançaram uma ofensiva em várias partes do país, na qual mais de uma centena de pessoas foram mortas. O Pentágono declarou pouco antes da luta que estava se preparando para os ataques diretos do Talibã durante a retirada, que deve ser concluída até o 20º aniversário dos ataques ao World Trade Center. O exército estadunidense poderia assim ser forçado a uma retirada debaixo de fogo.
De fato, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, prevaleceu contra fortes reservas no Pentágono no início de abril e ordenou uma retirada incondicional que continuaria mesmo com a deterioração das condições de segurança no Afeganistão. Ao fazer isso, Biden está, assim, efetivamente continuando a política de Trump, que iniciou conversações com o Talibã em fevereiro de 2020 – excluindo o governo afegão, o que levou a tensões entre Cabul e Washington e acelerou as tendências de desintegração no aparato estatal afegão. Em troca do fim dos ataques às tropas da “coalizão” ocidental e de um distanciamento formal da Al-Qaeda e do Estado islâmico, milhares de talibãs foram libertados das prisões. Além disso, negociações diretas estão em andamento entre os islamistas e o “governo” afegão, mas os jihadistas têm mais influência e jogam com o tempo devido ao aumento das mortes de oficiais do governo e da dinâmica no campo de batalha.
No final das contas, porém, essa derrota estratégica dos Estados Unidos em sua dispendiosa “construção da nação” no Afeganistão contou principalmente com a colaboração de fatores socioeconômicos e não militares. Com cerca de 143 bilhões de dólares, os gastos de Washington com a reconstrução civil do Afeganistão foram aproximadamente o dobro da quantia bombeada para as forças armadas do país colapsado. Portanto, o Pentágono sabia muito bem que não poderia vencer a guerra sem elevar os padrões do país em uma das terras mais pobres do mundo. Entretanto, estudos publicados no início de 2021, que examinaram a eficácia de uma amostra de 7,8 bilhões de dólares investidos em escolas, hospitais, prisões, projetos rodoviários e pontes, chegou a uma conclusão devastadora: apenas 1,2 bilhões de dólares foram investidos em projetos que continuariam a ser “utilizados como previsto”. Só uma pequena parte desses investimentos em infraestrutura examinados – eles compreendem 343 milhões de dólares – permanece em “boas condições”. Cerca de 2,4 bilhões de dólares foram gastos em projetos que eram simplesmente inúteis. A taxa de propagação dos fundos de reconstrução civil parece, portanto, ser ainda mais alta do que a do exército.
O projeto central de infraestrutura dos Estados Unidos no Afeganistão consistiu na reconstrução da chamada Ring Road, um sistema rodoviário de 3.200 km que deveria (re)conectar as principais cidades: Cabul, Kandahar no sul, Herat no oeste e Mazar-e Sharif no norte. Construído originalmente pela União Soviética nos anos 1960, a rota de transporte de longa distância mais importante desse país inacessível e montanhoso foi em grande parte destruída durante a guerra civil financiada pelos Estados Unidos nos anos 1980-90. O custo de construção do ambicioso projeto subiu de 1,5 bilhões para três bilhões de dólares. Além das exigências militares (“onde as estradas terminam, começa o Talibã”, declarou o então presidente Geroge W. Bush por ocasião do anúncio do projeto), a esperança de um renascimento da economia deprimida – que sob o regime do Talibã consistia principalmente no cultivo de drogas e na agricultura de subsistência – também desempenhou um papel importante no planejamento.
Apesar dos persistentes ataques talibãs desde o início da construção, a seção mais importante entre Cabul e a segunda maior cidade do Afeganistão, a antiga metrópole talibã de Kandahar, foi concluída no final de 2003, reduzindo o tempo de viagem entre essas cidades de dezoito para seis horas; mas com a invasão do Iraque pela administração Bush, que foi acompanhada de cortes maciços e uma redução das tropas no Afeganistão, a situação de segurança se deteriorou rapidamente. Entre 2003 e 2009, os Talibãs conseguiram expandir em larga escala seu raio de ação e se estabilizar em quase metade do território – aumentaram especialmente os ataques ao longo da Ring Road, que se tornou o alvo principal. Segundo estimativas das autoridades estadunidenses, 20% dessa linha vital do país já está destruída, enquanto 80% está em desintegração. Mesmo a seção estrategicamente mais importante entre Cabul e Kandahar mal é transitável por civis, e a destruição total ameaçaria o colapso do governo central, advertiram estudos estadunidenses, pois implicaria a perda do controle sobre o sul dominado pelos Pashtuns.
O fracasso na construção de uma infraestrutura confiável e um poder estatal estável no Afeganistão no âmbito da “construção da nação” estadunidense indica apenas que tal projeto simplesmente não tinha uma base econômica que não fosse alvo de qualquer intervenção militar. A utilização de trabalho assalariado em amplitude social suficiente para financiar uma classe de assalariados e – por meio de impostos – um Estado, não ocorre na “terra arrasada” caracterizada pela economia de subsistência, que o Estado fracassado do Afeganistão representa em termos econômicos. Por isso, o aparato estatal, que tem sido engordado com bilhões de dólares pelos Estados Unidos, é visto pelos vários bandos pós-estatais principalmente como uma loja self-service, que gera renda em uma situação economicamente desesperadora – junto como seus cartuchos vendidos como sucata.
O produto interno bruto (PIB) do Afeganistão era de apenas 19 bilhões de dólares em 2019, o que equivale a um valor per capita de 507 dólares. A Albânia, país mais pobre da Europa, tem uma renda per capita de 5 300 dólares, cerca de dez vezes maior. Além disso, o aumento da crise em 2020, desencadeado pela pandemia, levou a uma contração de 1,9% do PIB já pequeno (só as estimativas do Banco Mundial encontram-se disponíveis), de modo que pelo menos metade da população está agora vegetando na miséria absoluta, abaixo da taxa oficial de pobreza.
A única exportação de sucesso do Afeganistão é o ópio, que é necessário para a produção da heroína. E essa guerra contra a base de financiamento do Talibã – na qual podem, por exemplo, atacar os policiais afegãos com o equipamento de visão noturna estadunidense comprado destes – também terminou em derrota total. Antes da invasão estadunidense do Afeganistão, o Talibã cultivava a papoula necessária para a produção de ópio em uma área de cerca de 74.000 hectares. Em 2019, espera-se que a área cultivada tenha mais de quadruplicado para cerca de 328.000 hectares.
Sobre o tema, leia também “Nossa resposta ao Talibã“, de Slavoj Žižek e “Debacle no Afeganistão“, de Tariq Ali, aqui no Blog da Boitempo.
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Tomasz Konicz é escritor e jornalista de origem polonesa. Colaborador das revistas Exit! e Streifzüge, entre outras, concentra-se em questões de política econômica e crise. Publicou recentemente Klimakiller Kapital. Wie ein Wirtschaftssystem unsere Lebensgrundlagen zerstört. [Como um sistema econômico destrói as bases da nossa vida]. Ao lado de Ernst Lohoff e Norbert Trenkle, ele é um dos autores do dossiê de capa sobre crítica do valor coordenado pro Maurilio Botelho para a edição de número 35 da Margem Esquerda, revista semestral da Boitempo. Dele, leia também “Crise do coronavírus: o colapso iminente“, no dossiê sobre coronavírus e sociedade do Blog da Boitempo.
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