Cultura inútil: Pequenas lembranças
Mouzar Benedito faz uma seleção de curiosidades na coluna "Cultura inútil": a divisão da história humana na Bíblia, a teoria da evolução (e da "involução"), os primeiros discursos anticiência, os "cidadãos de bem" anticomunistas, a origem das palavras "greve" e "micareta" e uma das primeiras fake news.

ILUSTRAÇÃO: JOÃO MONTANARO
Por Mouzar Benedito
Pensar é muito difícil para um pessoal aí. Obedecer é muito mais fácil. Diferente dos leitores desse blog, claro. Pensando na turma que não pensa, resolvi “requentar” umas coisas de cultura inútil que publiquei aqui há anos. Não devem ser lidas pelos não pensantes, mas dedico a eles. Se é que os leitores (sempre pensantes) de hoje são os mesmos de quando foram publicadas, acredito que se esqueceram porque são coisas que não têm a menor importância.
Começo pela crença de que o mundo foi criado mesmo há poucos milhares de anos. Esse negócio de eras geológicas é invenção de comunistas, né? Então… Adão e Eva foram criados no sexto dia de atividade de Deus, que resolveu descansar depois (se não me engano: foi no sexto dia mesmo?). Bom, aí vai a divisão real das eras, não a inventada por ateus. Segundo a Bíblia, a Primeira Idade, vai de Adão até o dilúvio e teve 1656 anos; a Segunda Idade, do dilúvio até o reino do patriarca Abraão, durou 427 anos; a Terceira Idade, de Abraão até a entrega da Tábua de Mandamentos a Moisés, durou 430 anos; a Quarta Idade, da entrega dos mandamentos a Moisés até a construção do Templo de Salomão, durou 488 anos; a Quinta Idade, da construção do Templo até sua destruição, foi de 467 anos; a Sexta Idade, que vai da destruição do Templo de Salomão até o nascimento de Jesus, durou 536 anos. Somando tudo, de Adão ao nascimento de Jesus foram 4004 anos. Então, com mais 2022 anos de lá pra cá, o mundo tem pouco mais de 6 mil anos.
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Ciganos também são uns subversivos. Eles acreditam que Adão e Eva não existiram. Ou, se existiram, foram experiências malsucedidas de Deus. Na versão deles, Deus cozinhou o homem e a mulher num forno. Na primeira tentativa, deixou assar demais e surgiram os negros. Na segunda, assou de menos e resultou nos brancos. Aí fez na medida certa e saíram com a cor legal, dos ancestrais dos ciganos.
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Charles Darwin, sabe-se bem hoje em dia, inventou esse negócio de evolução das espécies. Será que era um comunista? Pode até ter convivido com Karl Marx, pois nasceu em 1809, na Inglaterra, e morreu em 1882 – e Marx viveu um tempo na Inglaterra também. Mas houve uma espécie de anti-Darwin antes dele, também subversivo perigoso. Georges de Buffon (1707-1788), naturalista francês, pensava, entre outras coisas, que o macaco era um homem degradado, e o jumento a degradação do cavalo. Essa teoria poderia se chamar “involução das espécies”, contrapondo-se (antecipadamente) à teoria darwiniana da evolução.
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Falando nessa involução, de vez em quando surgem uns animais estranhos que emitem sons imbecis quando não barulhos de tiros. Não vamos falar deles. Todo mundo sabe que o cão ladra, a vaca muge e o cavalo relincha. Mas o morcego, o tucano, o urutau e a coruja, por exemplo? Pois aí vão alguns verbos referentes às vozes de alguns animais: coruja: crocitar, chirriar; cutia: gargalhar, bufar; urutau: gargalhar, gemer, regougar, lastimar; ariranha: regougar; morcego: trissar, farfalhar; lagarto: gecar; tucano: chairar; galinha d’angola: fraquejar; camelo: blaterar; juriti: soluçar, arrular, turturinar.
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Será que haverá um carnaval em outubro?
Uma festa muito famosa de Feira de Santana acabou se espalhando pelo Brasil todo, a partir dos anos 1990: o carnaval fora de época. Tem um nome curioso: micareta. De onde vem isso? De mi-carêne, que em francês significa “meio da quaresma”. Desde o século XVI existe na França essa espécie de carnaval no meio da quaresma, que também é conhecido como “festa das lavadeiras”. Ao que tudo indica foram elas que iniciaram essas festividades, com a participação de vendedores de carvão e de água. Em Feira de Santana, o nome micareta foi oficializado em 1937, depois de um “plebiscito” feito pelo jornal A Tarde. Mas moradores da também baiana Jacobina reivindicam prioridade nisso: segundo eles, desde 1912 há na cidade um carnaval no meio da quaresma, e o nome micareta foi oficializado lá em 1935. Hoje, o carnaval fora de época que acontece em muitas cidades não se restringe ao período da quaresma, podem ser em qualquer época do ano.
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Segundo Câmara Cascudo, a micareta surgiu mesmo em 1937, em Feira de Santana, porque houve uma chuvarada muito forte no Carnaval, que não permitiu o festejo. Então, transferiram a festa para depois da quaresma (na época era pecado pra lá de mortal fazer festas desse tipo na quaresma). Micareta não seria simplesmente uma adaptação de mi-carême, e sim uma “mistura” de mi-carême com careta, já que os foliões saíam fantasiados.
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Um empresário modelo para o Brasil de hoje (espero que não de amanhã) seria Henry Ford. O badalado industrial dos Estados Unidos era simpatizante do nazismo. Para escrever a “bíblia” do nazismo, Mein Kampf, Hitler usou ideias antissemitas de Ford. E o industrial gringo ainda dava uma boa grana para o movimento nazista. Hitler mantinha uma foto de Henry Ford sobre sua mesa… e Ford mantinha uma de Hitler na sua.
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Gente anticiência é coisa antiga, apesar de tão presente num certo meio do Brasil de hoje. O francês Antoine-Laurent de Lavoisier, que revolucionou a química, era desafeto de Jean-Paul Marat. Quando este revolucionário francês tornou-se um dos líderes radicais da Revolução, conseguiu que o químico fosse guilhotinado, em 1794. O motivo da pena de morte era de que ele teria vendido tabaco adulterado (!!!). Foram feitos vários apelos para poupar a vida de Lavoisier, mas o juiz que o condenou (esse sim anticiência) manteve a pena, argumentando que “a Revolução não precisa de homens de ciência”.
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Por pouco o rei Luiz XVI e Maria Antonieta não escaparam da guilhotina! Eles fugiam da França, em 1791, a carruagem em que viajavam parou em Sainte-Menehoul para trocar de cavalos, eles saíram para esperar (uma esticadinha nas pernas que custou caro!) e foram reconhecidos, detidos e levados para Paris.
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Um exemplo de “Cidadão de bem” nos Estados Unidos, no século passado, era Al Capone, anticomunista radical. Certa vez discursou contra o comunismo dizendo: “Devemos conservar a América íntegra, segura e intacta”.
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Lembrança de outros tempos bestas: a execução dos operários Sacco e Vanzetti, nos Estados Unidos, repercutiu no Brasil. Em 23 de agosto de 1931, houve uma manifestação operária em Santos em memória dos dois anarquistas. Eles haviam sido executados na cadeira elétrica quatro anos antes (em 23/8/1927). A repressão assassinou o manifestante Herculano de Sousa e prendeu as comunistas Pagu (Patrícia Galvão) e Guiomar Gonçalves.
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E hoje, é diferente? Assim falou Getúlio Vargas, quando lhe perguntaram sobre a qualidade dos ministros de seu governo: “Uns não são capazes de nada. Outros são capazes de tudo”.
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Vamos mudar de assunto, falar de costumes… epa! Assunto perigoso! Mas vamos lá. Pichação de paredes é coisa mais antiga do que imaginamos. Numa das poucas paredes que não caíram quando uma erupção do vulcão Vesúvio destruiu a cidade de Pompeia, no sul da Itália, estava escrito: “Gosto de mulheres com cabelos nos lugares certos, e não depilada e raspada. A gente pode então se abrigar do frio, como se fosse um casaco”. Enfim, a depilação da área genital feminina também é coisa antiga, assim como a preferência de parte de alguns pelas não depiladas.
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Centrão, baixo-clero… Dos 513 deputados federais e 91 senadores que existem no Brasil, quantos já ocuparam a tribuna para falar alguma coisa? Sim, tem uma maioria silenciosa que está mais preocupada com coisas práticas, como o orçamento secreto, emendas parlamentares… Pois essa maioria, que não se pronuncia nunca, pode dizer que se inspira em Isaac Newton, descobridor da lei da gravidade. Ele fez parte do parlamento inglês, e sua única fala foi um pedido para que abrissem a janela.
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Voltemos à perigosa pauta de costumes. Gay originalmente significava alegre, em inglês. A palavra deriva do francês, gai, que significa também alegre, jovial. Em português, em outros tempos, ela virou gaio, depois “progrediu” para gaiato. Mas tem um detalhe: em francês, gai significa também invertido. No Brasil, há alguns anos, invertido era uma gíria preconceituosa para qualificar homossexuais. Coincidência?
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Greve! Desempregado faz? Não é à toa que a gente nem escuta essa palavra. Mas fazer greve é ir para a praia? Para alguns é, quer dizer, era. Bom… Isso tem história. No francês antigo, grève era praia com areia e pedregulhos. Na beira do rio Sena, em Paris, havia uma delas, a Place de Grève, onde funcionava um órgão encarregado de cadastrar desempregados. Então, desempregados iam para lá. “Fazer greve” era se reunir na praça, por falta de trabalho. A primeira vez que se usou a expressão “fazer greve” no sentido que tem hoje foi em 1805. E muitos grevistas iam lá protestar. Em 1806 mudaram o nome da praça para Place de L’Hotel de Ville, nome do prédio da administração municipal de Paris. A Comuna de Paris foi proclamada nessa praça, em 1871.
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Venezuela é um tema recorrente para um pessoal que fala ao povo brasileiro de forma ameaçadora. Vamos lembrar então do venezuelano Simón Bolívar, que comandou os exércitos que libertaram a Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e Panamá, e teve papel importante também da libertação do Peru. Segundo contam (lenda ou verdade?) participou de 200 batalhas e teve 200 amantes. Ele morreu de tuberculose, aos 47 anos, em 1830. Foi no Monte Sagrado, em Roma, que, quando tinha 22 anos, Bolívar jurou libertar a sua pátria.
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Isso faz lembrar o tratamento que se dá à cultura no Brasil desta era que tem que estar se acabando: o primeiro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura foi o francês René Sully-Prudhome, em 1901. O premiado deveria ser Leon Tolstói, mas um dos jurados conseguiu convencer os demais a não dar o prêmio a ele, porque Tolstói era defensor do anarquismo, tinha crenças religiosas consideradas excêntricas e havia declarado que os prêmios em dinheiro não eram bons para os artistas, eram prejudiciais para sua arte.
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Por falar em Leon Tolstói, ele ficou horrorizado ao ver uma execução pública em Paris, e disse: “Jamais, sob qualquer circunstância, servirei a nenhuma forma de governo, seja lá qual for”.
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Agora um tema pra lá de atual, as fake news, uma prática antiga e eficiente. Em 1507 foi publicado na Europa o livro As quatro navegações de Américo Vespúcio, obra fantasiosa em que o dito cujo aparece como “grande descobridor”, segundo o cosmógrafo Martin Waldesemüller, que foi quem propôs que o continente levasse o seu nome. Em 1513, o próprio Waldesemüller reviu isso e propôs que o continente se chamasse Colômbia, mas o nome América já tinha pegado, não teve jeito.
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Para terminar, lembro que mesmo um pessoal metido a branco puro-sangue, na grande maioria, inclusive os descendentes das primeiras “boas famílias” formadas há mais de quatrocentos anos aqui, tem sangue indígena (e muitos, sangue africano também). As primeiras mulheres europeias a chegarem ao Brasil foram três meninas órfãs enviadas pela coroa portuguesa em 1551.
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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em coautoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2021, Editora Limiar). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.
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