Motel Destino e as tensões do tesão

Imagem: Divulgação
Por André Alves
[Atenção, spoilers na pista. ]
“Uma luxúria descarada” é como alguém descreve o filme mais recente de Karim Aïnouz no letterboxd, a rede social de filmes tão idolatrada pela internet. Motel Destino é isso tudo mesmo: erótico, exuberante, exagerado, sem vergonha de nos levar aos limites do tesão. O longa nos mostra um emaranhado de corpos suados e pulsantes; lutando, transando e sofrendo nos dias escaldantes e noites neon do Ceará. Nessa sarração entre o trágico e o cômico, somos atravessados pelos perigos do desejo em cena, lembrados do potencial reparador e também destrutivo da sexualidade, essa estranha força que pulsa dentro de todos nós. E que nos torna tão capazes de devorar, arrebentar e até de amar.
Para nos ambientar, um breve panorama da trama, levemente salpicado de spoilers. Motel Destino conta a história de Heraldo (Iago Xavier), um sujeito que está tentando escapar de uma chefona do crime e também do luto de seu irmão. O destino leva nosso protagonista ao motel em que ele conhece Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção), casal que administra o local. Daí para frente, é esse trisal inesperado e violento que vai nos colocar na vibe sensual e febril desse noir dos trópicos.
Imagem: Divulgação
O motel que nomeia o filme é uma espécie de gabinete das curiosidades de Elias, um sujeito que mistura o estereótipo do clássico cafajeste que foi morar na praia com um explorador dos prazeres da carne; um homem que, por um golpe do destino, conseguiu empresariar a safadeza. Um bom resumo de Elias vem na cena em que, ao observar um animado par de jegues, ele dispara: “se a vida fosse só isso…”. Talvez o motel seja a tentativa de Elias de, no seu entre-muros próprio, viver apenas entre prazeres e fetiches. Perversos têm mesmo essa habilidade de se defender da castração ao se colocarem como senhores da lei. Mas é cedo — ou tarde — demais para arriscar diagnósticos. O que nos interessa aqui é observar como, mesmo que essa escolha de Elias lhe traga uma imensidão de desprazer e insatisfação, sua curiosidade insiste, provoca, segue ereta.
Nos séculos XVI e XVII, os gabinetes de curiosidades cresciam na Europa como versões informais e muito exóticas de museus, espaços que apresentavam coleções de estranhezas, raridades, bizarrices e tudo aquilo que fosse capaz de arquear as sobrancelhas. No gabinete de Elias, os artefatos são as cenas sexuais que cada casal, trio ou grupo de clientes é capaz de produzir. Ao longo do filme, os personagens vão flagrando e sendo flagrados, nos lembrando que todos nós somos, em alguma medida, exibicionistas e voyeuristas. Tudo isso faz do Motel Destino uma espécie de templo-purgatório do sexo, onde o barulho do prazer — e do desprazer — pode ser ensurdecedor. No filme, vamos conhecer esse espaço sagrado-profano por dentro, lidar com os resíduos e restos da farra, como se estivéssemos nos corredores imundos e irresistíveis do tesão.
Essa atmosfera irresistivelmente clandestina é uma bela representação da forma como muitos sujeitos lidam com a sexualidade no contemporâneo. Primeiro, podemos pensar em como a sociedade geralmente trata um motel, esse espaço estranhamente marginal, como um lugar ao mesmo tempo encantado e repugnante. Temos, aqui, notícias de como geralmente tentamos manter a sexualidade à margem, restrita a ambientes e situações muito particulares, um quarto escuro que deve ser mantido fechado, cercado, lacrado. Segundo ponto interessante: o mesmo motel que “prende” Heraldo é também o lugar em que ele vai encontrar refúgio e proteção. Bem como a nossa sexualidade, esse campo psicossomático e relacional que pode nos libertar e nos render. Para complicar, é também nesse local “seguro” que nosso protagonista vai conhecer o perigoso potencial destrutivo da paixão. E tudo que vem junto com isso tudo. Como canta Naiara Azevedo, um mesmo motel tem o poder de nos prometer o céu e de nos tirar o chão.
Imagem: Divulgação
A história de Heraldo nos ajuda a pensar na quantidade de afetos negativos que estão presentes na sexualidade: o medo, o ódio, a agressividade, a vingança, a trapaça e uma infinidade de partes menos nobres que levamos para a cama — ou para o motel. Estamos no campo das tensões do tesão. É fascinante, por exemplo, como ninguém é muito confiável no Motel Destino; os personagens não hesitam em trair ou sabotar, em agir sem pensar muito, como se estivessem tomados por algo mais instintivo que pulsa dentro deles. E é precisamente nesse estado mental que, muitas vezes, percorremos os traiçoeiros labirintos do desejo. A trairagem transborda no tesão.
Ao mesmo tempo, esse elemento de trairagem tão presente no filme é também uma forma de nos fazer experimentar a realidade psíquica de Heraldo. Em uma sessão de quase duas horas, vamos conhecendo as profundezas e penhascos de um homem jovem que foi atravessado por muitas perdas; que, cedo demais, conheceu quantidades desmedidas de violência. Um sujeito que se viu recorrentemente em situações nas quais a única coisa que sobrou foi o desamparo relacional. Lacan nos ensinou que o sujeito se constitui na falta, mas para Heraldo, faltou demais.
Imagem: Divulgação
Como é comum na história de muitos homens, o acúmulo de dor e abandono não encontra muitas formas de elaboração. Escoa sem palavra e, consequentemente, vira violência. E uma vez que um dos princípios básicos da violência é a repetição — assim como ocorre a boa parte daquilo que não conseguimos elaborar —, Heraldo quer bater, quebrar, matar. Quando se tem que carregar tanta dor que foi pouco elaborada, viver em perigo acaba sendo um jeito de ajeitar as coisas porque, muitas vezes, é apenas em estado de alerta que dá para tocar a vida. Temos aí uma pista de quem sustenta relações tão perigosas.
O sexo pode ser uma forma de lidar com a raiva, com o desespero, ou até mesmo com a opressão. Afinal, as experiências sexuais podem nos fazer acessar estados de tensão e pavor com um pouco menos de risco de destruição. Isso, claro, quando não estamos em situações de abuso e violência, vale ressaltar. Com sorte, no sexo temos a oportunidade de transformar nosso sofrimento em formas temporárias e muito complexas de prazer. Por isso mesmo, dominação e poder estão sempre presentes nas experiências sexuais. Como escreveu Amber Hollibaugh, ativista e escritora LGBTQIAP+, em My Dangerous Desires, “o poder é o coração, e não apenas o monstro, de toda investigação sobre o sexo”.
É interessante notar como essa agressividade que tangencia a violência também funciona como uma espécie de combustível do desejo do nosso trio Heraldo-Dayana-Elias. Heraldo passa o filme se atracando: nas lutinhas com o irmão, na noitada com a mulher misteriosa que o leva ao motel, nos embates com Elias, nos amassos com Dayana. Já Dayana, casada — ou condenada — ao opressor Elias, acaba se apaixonando pelo homem recém-chegado que ameaça lhe quebrar o pescoço. E Elias, por fim, parece especialmente interessado em iniciar a sacanagem à força, no Mata-Leão, como quem chama o outro pra briga, seja Dayane ou Heraldo. A violência é mesmo um circuito difícil de interromper. E que, muitas vezes, tem o poder de incendiar a fuleragem. E de transformar relações em cinzas.
E é precisamente aos extremos da destruição que nosso trisal é levado pelo destino. (Agora o spoiler vem com tudo, fica o aviso.) Na sequência final de Motel Destino, Heraldo relata a um policial que sua vida, desde que nasceu, foi fugir da morte. É talvez a primeira cena em que Heraldo consegue dizer de si. E parece que é exatamente aqui que ele decide tomar as rédeas do seu destino. Usar a raiva a seu favor. É também esse o desfecho de Dayana, que consegue falar de seus próprios demônios — mais especificamente, do demônio loiro que ela um dia chamou de marido. É como se, na cova que os dois cavaram para si, tivessem sido enterradas as versões de si que já não serviam mais.
Quando Heraldo diz “O que foi que aconteceu? Eu nasci. Pronto.”, parece que estamos diante de seu renascimento. Para Lacan, o grande trauma do nascimento é a entrada do sujeito no mundo simbólico, o mergulho acidentado na linguagem, o impacto das palavras escutadas. De certa forma, a palavra arrebenta o Real do corpo porque vai moldá-lo em sentidos. Ou pelo menos tentar. E é nessa tentativa que vamos nos despedindo do nosso casal de apaixonados, meio acidentados e meio transformados, totalmente renascidos do fogo da paixão. Tão pelados quanto Adão e Eva fugindo do paraíso, rumo às vergonhas do destino.
***
André Alves é escritor, psicanalista e pesquisador de cultura & comportamento. É cofundador do instituto floatvibes e coapresentador do Vibes em Análise, podcast que faz uso da psicanálise para elaborar as mudanças do nosso tempo. Apaixonado por filmes e séries, André criou a série Psicanálise Selvagem, um conjunto de videoinvestigações de personagens que nos oferecem linguagens e imagens para falarmos de nós.
Deixe um comentário